Boa noite, amazona, de Manoel Herzog

Por Pedro Fernandes




“Havia, na insipiência de iniciante tardio, desenvolvido um método literário que consistia em fazer uma reportagem da própria vida, um confessionário. Depois de algum tempo sacava da gaveta esse acervo e começava a enxertar de fantasias ou experiências alheias. Impessoadas assim minhas histórias, dava-lhes o rótulo de ficção, descomprometendo autor e personagens.” Essa passagem de Boa noite, Amazona é parte do capítulo referido por uma carta do tarô de Marselha intitulada “O Mago”; trata-se de um arroubo metanarrativo que oferece ao leitor alguma chave para acesso ao caudaloso e, por vezes, irreal e inverossimilhante, universo de um narrador incapaz de narrar porque tomado por uma crise de criatividade, o que é apenas uma pequena parte de outra crise de ordem pessoal.

A princípio, poderá o leitor acreditar que se situa no interior de uma confissão muito à vontade desse narrador sobre uma viagem empreendia pelas sendas da região amazônica de Manaus; mas, como nada pode ser oferecido como verdade nessa história, não tardará descobrir que todo o périplo desse ex-funcionário de banco e escritor frustrado pode ser puramente imaginativo, constituído por um itinerário interior que se agarra às possibilidades de respostas para os seus dilemas pessoais, desde quando uma  bruxa espanhola lhe revela que o segredo para a solução de todos os seus problemas poderá ser encontrada na Amazônia. O que torna a verdade narrada em verdade possível não está totalmente dito no excerto recobrado acima, mas noutra ocasião, quando o narrador se revela capaz de fabular sua presença em qualquer parte do mundo mesmo que nunca tenha ido ao lugar descrito.

Desde então, tudo nesse narrador passa-se como coisa de puro farsante e muitas ações comprovam isso: seja a profissão que então exercia, pautada em seduzir consumidores para a antecipação imediata de seus sonhos mais capitalistas, seja esse retrabalho da vida medíocre por alguma glória mais entrevista que vivida, obviamente. Alheio ao mundo, este compreendido como o que o circunda e não como lugar de pertença, o narrador de Manoel Herzog em Boa noite, amazona se oferece como alguém que possuidor de um senso extremamente aguçado está situado na melhor parte, a que não se deixa contaminar pela realidade. Sairá de seu itinerário fabricado pela via contrária, o que não faz dele, jamais, o homem à parte, mas o homem parte, uma vez ser conduzido pela mesma impostura de que acusa os demais. Sua persona sequer condiz com o que se diz: um humanista com interesses centrados apenas no seu bem-estar; um politicamente correto capaz de exercer as ações contrárias às esperadas de alguém com esse perfil; um frustrado, enfim, que tenta justificar sua presença medíocre num mundo acusado de não ser o espaço de lhe servir.

Mas, não é apenas o narrador que assume em disfarce. Ao que parece, também é o próprio Manoel Herzog. Este livro que anseia e é, de alguma maneira, um romance (uma forma tão ampla e por isso mesmo capaz de albergar mesmo a antiforma) também deve ser lido como puro disfarce. Sua grande tentativa é reatar alguns fios perdidos de outras obras literárias que estiveram na zona limite da ruptura, incluindo tema e obsessão pelo Brasil profundo, como Macunaíma, de Mário de Andrade. O território pantanoso da narrativa de Boa noite, amazona é constituído ainda pelo retrabalho de alguns elementos do nosso imaginário ancestral, acessado aqui por uma consciência em estágio de pura elucubração capaz de desterritorializá-lo como elemento participativo das existências triviais e isso reitera – como um dos méritos de Herzog – a aproximação com o tom latino-americano, que sempre insistimos negar em nossa identidade.

Justifica-se, pela natureza da tentativa de reinvenção de protótipos narrativos, porque o leitor sairá desse livro com a sensação de ter atravessado tão somente um relato descritivo sobre um conjunto de experiências que se não justificam a existência desse indivíduo também nada diz sobre o que costumamos tomar, em situações como essas, pela verdade do homem. Se o narrado existiu ou não: esse não parece ser o mérito da questão. Servirá de uma opção de leitura para cada leitor. E a leitura aqui apresentada se decide pelo traço recorrente na narrativa contemporânea: o da impossibilidade de narrar. Bom, o que se sabe é que esse relato é fomentado por um mago – para repetir a imagem disposta na abertura da estação de onde saiu o excerto apresentado no início do texto – que perfaz um périplo a partir de um trabalho de associação ou descrição das cartas do tarô de Marselha. Quer dizer, o que se oferece aqui é uma possibilidade de narrativa moldada à maneira junto de ou a partir de, o que leva o leitor a reiterar a concepção dessa história como uma elucubração em torno de um imaginário.

Mesmo com tudo isso, o que não é pouco, Boa noite, amazona é uma obra irregular e mesmo incongruente. Por um lado, encontramos ecos muito próximos de parte de algumas situações das melhores de nossa literatura; nesse mesmo lado, nota-se ainda um trabalho criativo interessante. Foi o que ressaltamos até aqui. Mas, por outro lado – se propositalmente ou não, este será um critério também variável – somos enganados. A agilidade da prosa, sempre reiterada como elemento característico da obra, é talvez seu defeito mais exposto. Saímos com a sensação de passar por uma boa ideia, uma narrativa ricamente pensada, mas gorada pela pressa. Se o leitor for à alucinatória viagem de Noite dentro da noite, de Joca Reiners Terron, por exemplo, logo entenderá, pela via contrária, o que dizemos aqui. Claro, são dois romances muito distintos, mas muito próximos, se sublinharmos o trânsito pela invenção e suas camadas de imaginação: extremamente ricas num e noutro não. Por toda parte, sobram sobreposições de situações (algumas desencontradas de uma unidade narrativa) que não são desenvolvidas, além das altas e baixas da própria dicção do narrador, ora afeita a reconstituir a sério e à maneira realista suas memórias, ora entregue à fabulação poética. Nas duas, ou por querer as duas, falta fôlego.

Sem falar que, reiteradas vezes somos tomados pela estranha sensação de que o que lemos aqui já havíamos lido, e melhor – na Plataforma de Michel Houellebecq, possivelmente pela tentativa de conseguir uma voz ácida e que não descreveríamos errada se disséssemos que mais afrancesada que áspera; nas Memórias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis pela condição do homem fracassado e pelo timbre irônico, falhado em Herzog porque eivado mais de uma sorte de preconceito que de observação descarnada do mundo.

Por fim, o escritor parece pasteurizar uma forma de narrar que o fez reconhecido: o Manoel Herzog de A jaca do cemitério é mais doce e Dec(ad)ência, para citar duas de suas melhores obras que nos encantam pela maneira rica, livre e exuberante como consegue transmutar os males de seu tempo em situações que findam por oferecer uma leitura mordaz e universal de nós mesmos. Apesar de tudo, o seu leitor deve atravessar essa selva de interrogações como e com esse pretenso escritor – e já agora nos referimos, claro está, à narrativa de Boa noite, amazona; é que tudo pode ser puro blefe de quem suspende as fronteiras entre conteúdo e forma para oferecer o tom mais autêntico possível sobre o que diz. Mas, isso só quem pode dizer é você. A leitura que aqui se propôs é mais uma, mais irregular ou incongruente que tudo.

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