A uruguaia, de Pedro Mairal
Por Pedro
Fernandes
“Conto isso
porque ultimamente andei pensando bastante no tema família e casamento. Pode
parecer que estou dando uma de liberado, mas te digo com toda a sinceridade:
precisamos pensar de um jeito novo. Crescemos imersos numa ideia de família que
nos encheu de angústia quando vimos as rachaduras.” Este excerto integra a
segunda parte de A uruguaia. Está situado nos instantes finais da
narrativa e o seu estilo é o de uma assertiva resultada de uma ampla investigação
sobre o tema discorrido; o desfecho do romance assume propriamente o tom de uma
crônica conclusiva sobre a extensa parte das ações registradas por esse narrador/
cronista. Mas, o leitor não está diante de um romance-tese ou de um ensaio
sobre uma questão e sim de uma história que recria um drama recorrente desde
sempre para os literatos: o das relações amorosas falidas.
A
uruguaia se constitui por pelo menos três principais linhas viandantes: uma
viagem de ida e volta da Argentina ao Uruguai; trânsitos de volição
psicológica; e o retorno desse narrador-personagem entre o porto e sua casa
direto pela avenida Córdoba. A primeira e a última constituem as duas partes do
romance, respectivamente, enquanto a segunda se infiltra continuamente entre elas.
Nesse sentido, pode-se dizer que Pedro Mairal se apropria do conceito de
jornada do herói, uma vez encontrarmos aqui todas suas partes funcionais: da
ascensão repentina à queda, incluindo-se nesse termo as alegrias e desesperos
do homem, a fim de alcançar outra posição, melhor, no mundo. Isto é, o excerto
apresentado acima sublinha esse instante de transformação do herói, quando extrai
do complexo emaranhado de situações vividas no tempo circular e cronológico de
dezessete horas outra alternativa de ver a si e o seus e modificar sua presença
no mundo.
Mas, quais
são os instantes, sobretudo os do primeiro périplo que conformam parte
significativa de A uruguaia? A ida de Lucas a Montevidéu se reveste de
algumas expectativas positivas para um escritor de meia-idade atravessado pela
apatia de existir, pela falta de criatividade e preso, em parte pela primeira
condição, numa relação em pleno desfazimento. No país vizinho, resgata o
dinheiro fruto do pagamento adiantado para a escrita de dois livros que lhe serviria
para cobrir os empréstimos conseguidos com sua companheira e garantiria o
sossego de pelo menos dez meses para o trabalho de escrita das obras; a ocasião
também é oportuna para se reencontrar com uma paixão que atende pelo sugestivo
nome de Guerra – Lucas a conheceu há muito num festival para escritores e
mantêm uma ligação quase monossilábica por e-mail, essa caixa de informações
secretas suas, guardada a sete chaves e, que, na ansiedade pelo Uruguai,
possivelmente esquece aberta para curiosidade de sua companheira. A ida ao país
vizinho serve ainda para rever um amigo escritor que fora professor seu num
curso de escrita criativa em Buenos Aires.
Desses
acontecimentos, o que motiva a queda do herói é o envolvimento com Guerra. Se
formos à semântica de seu nome logo encontramos claramente que sua presença, primeiro
sorrateira e constante, depois repentina e intensa, nos oferece os dois limites
da condição de Lucas: a ruína, uma vez que a personagem totalmente enredada
pela força da paixão não mede os limites do perigo desse enlace envolto na força
do desejo; e, na direção contrária, se encontra a saída para a resolução de
todo o dilema pessoal que desnutre a vida do protagonista, de sua companheira e
o filho do casal. Refaz-se aqui, inclusive, outro sentido universal: para a
maioria dos impasses, a guerra é, para mal e para bem, uma saída capaz de
realinhar forças e interesses, oferecendo, assim, a possibilidade de nova ordem.
O brilho do trabalho
do escritor argentino, no entanto, não repousa na reiteração de conceitos,
temas e formas e sim na leitura certeira que nos apresenta sobre uma forma
cujos limites nasceram degredados, mas ainda não encontramos, por muita
desordem, sangue e tinta que se tenha derramado, uma saída: a família. Não é Pedro
Mairal uma voz contrária dessa ordem– até porque a alternativa encontrada por
seu protagonista repousa justamente no refazimento do agrupamento familiar. É
que, integrados por um tempo em acentuada modificação das relações, cada vez
mais nos descobrimos (se por um egoísmo ou individualismo, não cabe aqui
problematizar) que o princípio da eternidade construído pela base cultural,
religiosa e social é a mais cruel das hipocrisias forjadas pela burguesia. Sua
tentativa aqui é, portanto, a de observar como esse modelo de organização da
família forjado pela idealização amorosa para a mera expansão da prole é mesquinho
e nocivo.
A
uruguaia recupera uma variedade de situações para legitimar a inoperância do
amor enquanto chama eterna capaz de fazer perdurar o que é simplesmente pulsão
de um corpo por outro corpo alimentada por uma durabilidade longa ou breve. Através
desse romance, que deve ser lido como uma carta na qual um narrador se confessa
para sua companheira, Pedro Mairal universaliza toda a angústia dos sujeitos
incapazes de colocar um ponto final numa relação ainda que em frangalhos e
posterga pela farsa dor e ódio. Não sobra mesmo nem para o idealismo platônico,
é claro. Lembre o leitor que o amor em ruínas que presenciamos é termo de um
romantismo que seduz a todos com sua lábia de paraíso eterno.
Assim,
porque estamos numa ficção, quando Lucas se vê integralmente arrastado pelas
mesmas artimanhas com as quais se enredou no passado na relação agora falida, o
destino se mostra implacável e o destitui de tudo. A queda do herói é o que
leva a refazer sua visão sobre o amor, não como uma instituição, mas como uma
tessitura de afetos capaz de nos colocar em irmanação com o outro. Esse modelo,
portanto, não se prende a valores idealizados ou provas materiais obrigatórias.
Assim, é simbólico a presença do uquelele: o objeto adquirido por Lucas na
viagem ao Uruguai como presente para o filho é o único troféu que sobrevive a
avalancha de situações vividas pela personagem. Renegado por Maiko entre as
coisas sem-valia, o que poderia significar outro infortúnio para o pai, é
transformado em instrumento que o salva da possibilidade de uma crise ainda
mais acentuada depois da resolução do imbróglio amoroso com sua companheira. Aqui,
A uruguaia se revela como uma narrativa sobre a capacidade humana de reinvenção
a partir das rupturas mais duras.
O ponto de
vista exclusivamente masculino realça uma condição, mas não deixa de se colocar
preso à tentativa de encontrar uma resposta ou saída para o desacerto. Embora,
se afirme em parte certa natureza da mulher enquanto desatino (talvez não
pudesse ser diferente em se tratando de um narrador preso ao universal modelo falocêntrico)
o que prevalece é o reconhecimento sobre a necessidade de revisão da maneira
conforme vimos construindo as relações amorosas. Nesse sentido, todo orgulho ferido
da personagem serve de sustentação para se abrir, ainda que involuntariamente (uma
vez que esta longa revelação não se mostra como proposital) com sua companheira,
quem movida pela mesma força que a impede de aceitar o fracasso de uma relação,
não compreende a transformação de seu companheiro em figura isolada numa
redoma.
No fim, não
será exagero pensar que este narrador-personagem se encontra envenenado por
outra droga, mais poderosa que os cigarros de maconha que fuma com Guerra e as
torrentes da idealização amorosa: a literatura. A vida de Lucas só encontra
ordem quando é capaz de ser reconduzido ao eterno paraíso da criação. E não se
chega a esse lugar pela vida ordenada ou pelo conforto propiciado pelo capital.
No auge de sua queda, a personagem escuta do seu mestre sobre a relação doentia
entre o trabalho artístico e o dinheiro: “Você ia ter de escrever um catau de
mil páginas como se estivesse pagando uma dívida. Assim é impossível escrever.”
E acrescenta que “primeiro é preciso escrever os livros para depois ver quanto
eles valem [...] livros são lapidados como diamantes e vendidos como
salsichas.” Isto é, a queda é também o impulso para a criação; é no
reconhecimento do fim que ele torna a ser tocado não só pelo espírito das
decisões que o leva a modificar toda sua existência, como a perceber, através
de seu mestre, que esse seu périplo é a história que deveria ser narrada. Essa
é a história que Lucas conta em A uruguaia. É o sentimento apaixonado e
vertiginoso, este sim inescapável e inapelável de todo escritor, pela
literatura que se revela numa trama que prima pela reinvenção de nosso ideal
amoroso. Viver é experimentar. E só se cria a partir da experiência. Se ainda
quisermos não deixar que a vida seja apenas tragada pela força inexorável do
tempo é do que precisamos.
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