Por uma aprendizagem pautada na autonomia
Por Rafael Kafka
Há quem
considere que as escolas brasileiras no geral são dominadas por um pensamento
por demais liberal, em um sentido mais libertário, e que isso tem afetado o
modo como os jovens aceitam receber ordens e reagem ao mundo exterior. A anomia
na qual vivemos – que muitos chamam de “anarquia” – seria então fruto de uma
juventude que não reconhece o poder da autoridade e não sabe reter seus
impulsos, deixando-os vagar livremente. Desses impulsos soltos de modo
irresponsável pode surgir e provavelmente surgirá a violência.
As escolas
brasileiras em geral são mal estruturadas e os professores pouco têm acesso
à formação continuada. Isso faz com que muito do ensino na educação
básica seja focado ainda em método expositivos e tecnicistas, com os estudantes
lidando com saberes os quais não fazem sentido para sua vida, fator que por si
só já seria suficiente para gerar desinteresse, um dos motivos iniciais da
cadeia de indisciplina que para muitos de nós é o motivo de casos de agressão,
por exemplo, nas escolas. Ao redor de todo um contexto de sucateamento, temos
uma realidade social extremamente atroz e muitas das vezes chegar à escola é um
imenso esforço quando se tem violência doméstica, pobreza, fome e dificuldades
de acesso ao espaço escolar concorrendo contra a força de vontade.
São esses
fatores externos os quais deveríamos analisar e muitas das vezes não o fazemos.
Hoje em dia já se fala mais na importância do papel familiar na educação dos
filhos, mas isso ainda se resume por demais à questão da disciplina como se essa questão por si só fosse resolver tudo. Há nesse discurso certa
visão do aluno e do jovem em geral como uma espécie de emissor e receptor de
estímulos e respostas que devemos tutelar da maneira mais eficaz possível. A função
do seio familiar seria fortalecer essa noção de regras e boa moral a serem
seguidas.
Não há uma
alusão mínima, frequentemente, aos fatores externos mencionados acima. A
disciplina é um elemento que por si só anulará os efeitos provocados pela
pobreza material e cultural vivenciadas pelas famílias e seus filhos. Penso que
muito desse discurso se deva à cobrança exagerada feita sobre os professores
para nós tutelarmos todas as formas possíveis os estudantes. Mesmo em um
momento em que discursos mais conservadores reafirmam o papel da família como
primordial e que professores devem apenas ensinar enquanto aquela educa, ainda
há uma responsabilização excessiva dos educadores em relação a tudo o que
ocorre nas escolas no tocante a coisas como baixo rendimento e comportamento
inadequado.
Tal cenário
me mostra a necessidade de discutirmos qual a função da escola em nossa
sociedade, algo que muitos parecem não ter a noção real. O que vejo em todo
esse panorama de sucateamento das escolas e de injustiça social reforçada por
elementos de segregação social é o reforço do tecnicismo, com o currículo
escolar sendo algo fechado e portanto sem debate com as demais instâncias
sociais, e a escola sendo um espaço de depósito de jovens por determinados
períodos de sua vida para famílias terem descanso em suas lidas difíceis.
A escola não
é vista como um espaço de aprimoramento do ser, algo que vi demais nas crônicas
de Cecília Meireles sobre educação. Fica evidente para Cecília a noção de que a
aprendizagem se dá em todos os espaços nos quais o ser vivencia sua
mundanidade, mas a escola tem uma função primordial de provocar saberes e a
autonomia dos jovens. Esta última ainda é vista como tabu no que tenho descrito
até aqui como realidade concreta, pois logo se vincula a ela um poder imenso
aos jovens que por sua vez usariam de forma abusiva desse saber.
Mas nós não
vivemos em uma sociedade que dá muito poder aos jovens. Pelo contrário. Vivemos
em uma sociedade que nega muitos direitos básicos a esses indivíduos, bem
como a todas as faixas etárias. O comportamento rebelde e agressivo da
juventude é apenas o reflexo da anomia na qual vivemos e a liberdade de ser
desses indivíduos possui horizontes minúsculos, reduzidos, fechados em ciclos
existenciais estreitos e insalubres. Cecília cita em seus textos exemplos bem
curiosos como da mãe que reclama de como sua filha criara o hábito de mentir,
algo incompreensível para ela no tocante ao modo como aprendeu essa conduta. A
poeta e educadora lembra de outro momento quando esta mesma mãe disse-lhe que
tinha o hábito de pedir à criança que quando o homem das cobranças aparecesse ela
dissesse que a mãe não estava em casa.
Os hábitos
que nós adultos temos influenciam nossos jovens e se vivemos em uma sociedade
que não lê, não discute política, não segue regras mínimas de convivência e se
afunda em corrupção temos todos os motivos do mundo para termos uma juventude
apática e gastadora de pulsões de vida com tolices e coisas não importantes.
Nesse sentido, a desestrutura familiar não é algo que se liga apenas à falta de
disciplina, mas à falta de tudo, inclusive direitos humanos básicos, como bem
apontada Antônio Cândido em seu “Direito à Literatura”. Estruturar famílias
perpassa por estruturar uma sociedade, oportunizar coisas como emprego, renda,
cultura e leitura. Por mais que se argumente que sociedades como a Alemanha
nazista eram sociedades cultas e eruditas, não devemos deixar de focar na
leitura como instrumento de entendimento da realidade e um hábito que refina e
fortalece nosso mundo emocional ao mesmo tempo que garante a possibilidade de
desenvolvimento de uma sociedade mais cheia de empatia e de capacidade de
diálogo.
Uma
sociedade estruturada garante cidadãos mais autônomos e capazes de refletir
sobre o que vivem. Vivemos em um ambiente de profunda desigualdade e
muitos de nós não conseguimos sequer refletir sobre os fatos que nos cercam. O
olhar alienado naturaliza tudo e seguimos uma lógica de absorver saberes
prontos e seguir uma lógica estabelecida. As escolas, ainda, são por demais
tecnicistas e é interessante para diversas instâncias de poder que elas sigam
assim. O tecnicismo não gera o poder de questionamento, de análise e por isso é
uma forma excelente de criar seres obedientes e que cumpram perfeitamente bem
suas ordens dentro do trabalho, naturalizando e até glamourizando o excesso de
horas laborais para compensar uma péssima remuneração.
Muito do que
falo nesse texto já envereda para um caminho mais libertador e freireano do que
propriamente humanizador e renovado próximo das teses defendidas por
intelectuais contemporâneos aos pioneiros como Cecília. Todavia, vejo nas duas
vertentes pedagógicas elementos que se complementam no processo de
desenvolvimento de uma escola que garanta liberdade de ser e de pensar aos
jovens. Infelizmente, em nossa anomia, perdemos a noção da função social da
escola é importante que professores repensem seus fazeres pedagógicos no
intuito de fomentar essa autonomia e os pais entendam a escola não como mero
depósito reprodutor das lógicas punitivas e sim como um espaço de amplo
desenvolvimento humano e epistemológico.
Muitos podem
achar que esse tipo de debate é abstrato por demais para as massas populares e
eu diria que isso é reduzir a capacidade da “massa” e querer fugir de um trabalho
importante a ser feito. É mais fácil reclamar e dizer que “alguém precisa fazer
algo”, como diria Mário Sergio Cortella, porém enquanto reclamamos e não
propomos ações e mudanças as estruturas de desigualdade seguem se reforçando lá
fora e nossa saúde física, mental e social segue se deteriorando.
É necessário
que compreendamos mais a dimensão humana de saber e pensar, de entender a
realidade e por meio desse entendimento gerar ações diretas em âmbito social e
individual no sentido da liberdade política cada vez maior. É preciso entender
que o indivíduo se torna autônomo por meio de seus saberes e que mesmo a
disciplina pode ser um elemento para a liberdade quando não imposta por
discursos que negam a realidade opressora e sim tentam dar formas de superá-la,
de vencê-la, pelo esforço, pela cooperação e pela criticidade. Enquanto não
fizermos isso, veremos “autonomia” e “liberdade” como dois imensos palavrões,
os quais na verdade deveriam ser a razão de ser toda a nossa sociedade e dos
espaços onde nossos pequenos pensadores estão aprendendo a aprender.
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