Odes a Maximin, de Ricardo Domeneck


Por Pedro Fernandes



A partir da descoberta dos versos de “Autopsicografia” em 1932 foi possível compreender um dos pontos-limite da lírica moderna; a questão, entretanto, não pode se reduzir aqui, nem começa com Fernando Pessoa e considerá-la como tal ou o poeta como a voz exclusiva de uma virada na poesia resulta em graves consequências para uma melhor compreensão sobre a própria história desse gênero literário, mesmo porque, conjeturas dessa natureza aparecem e são mais produtos das investidas para a construção de um mitologema no-do poeta de Mensagem no imaginário cultural português.

O valor dos versos de Pessoa se justifica pela ação provocativa; no contexto literário do poeta reafirma-se o ideário de uma ruptura com as formas simuladas da poesia, sobretudo, as nascidas no interior do romantismo que sedimentaram os valores de um sentimentalismo piegas corriqueiramente debandado para as rotações pessoais. Mas, no fim de tudo, não se oferece nenhuma revelação capaz de subverter os fusos da lírica; o que se lê é apenas um discurso que reafirma os valores do gênero patentes desde os tratados clássicos. Na República, de Platão, se inscreve a condição perigosa do poeta pela sua capacidade de dissimulatio, isto é, a possibilidade de uma realidade adversa e capaz de intervir na ordem.

Quer dizer, esse fingimento pessoano – que alcançou a lugares únicos na poesia, pela natureza criativa e inventiva do poeta – é puramente um retorno ao trabalho indispensável à lírica, a poiesis. A sentença paradoxal dor fingida e dor sentida afirma-se como um equilíbrio entre o vivido e o imaginado do qual deve resultar, do limiar de sobreposição do segundo elemento o produto, o poema. Isso porque todo poema se inscreve num mundo de atmosfera, natureza e formas próprias pertencente a um só tempo no lugar de sua criação e à criação singular. Essa propriedade do poema não interfere no que alguns denominam o valor da lírica visto ser a possibilidade equalizadora da boa e da má poesia. Entretanto, é do equilíbrio entre paradoxos, ou da energia concentrada no poema que se pode determinar um adjetivo do outro. O poema de Fernando Pessoa é, ao mesmo tempo que um conceito sobre o fazer poético, um perfeito exemplo desse equilíbrio. É no paradoxo fingir-sentir que o objeto poético se equilibra e resiste às intempéries corrosivas do tempo.

Dificuldade maior se verifica quando o poeta se utiliza para material de sua lírica dos temas mais próximos dos sentidos íntimos; a variação entre o sublime e o ridículo está separada por uma linha tão delicada quanto impossível de determinar. As dificuldades aqui são tantas que todos poemas de sentimento do cancioneiro universal, possivelmente, sejam piegas. Ou para se utilizar do mesmo ponto de princípio destas notas, “Todas as cartas de amor são / Ridículas. / Não seriam cartas de amor se não fossem / Ridículas”, como sublinha Álvaro de Campos num poema de 1937 tão citado quanto “Autopsiografia”. Ainda assim é possível visualizar, por princípios bastante heterogêneos, as distinções: seja pela dicção, isto é, a maneira como o poeta constitui a imposição de sua voz; seja pelo tratamento da linguagem, recurso quase sempre desperdiçado pela poesia adolescente, aquela capaz apenas de deitar no papel uma corda de volições psicológicas trazidas pelo instante de efervescência dos sentidos; seja ainda pela transformação do convencional em substrato poético, a maneira como o poeta estabelece uma coroação do individual com o universal.

Odes a Maximin, de Ricardo Domeneck, pode ser apresentado como um exercício bem-sucedido da lírica amorosa em língua portuguesa; tanto que bem poderia servir numa revisão das observações da crítica mais incauta, pretenciosa de conhecer todas as linhas da complexa tessitura poética brasileira contemporânea – para essa crítica, agora padecemos de uma lírica séria, no sentido de casta, marcada pela sisudez, por certa aridez metapoética, reflexiva ou presa à mundanidade. Esses leitores não deixarão de acusar o poeta assim que virem a presença de algumas das características que eles próprios ainda não aprenderam como recorrências inescapáveis da lírica contemporânea. Mas, como aqui nada é árido ou casto é possível que se contentem. Ainda assim é demais simplista olhar a obra do autor de Carta aos anfíbios apenas por uma grade de leitura tão reducionista.



O sentido do termo ode empregado no título do livro encontra algum traço na forma de alguns poemas, mas é propriamente o tom, embora não em sua totalidade, e não a forma o que os une. Isto é, não encontrará o leitor poemas de estilo elevado e solene, à maneira da lírica clássica. As Odes, entretanto, descrevem e celebram emocionalmente a natureza e os encantos de Maximin. E aqui reside a primeira força da poesia de Ricardo Domeneck: a transmutar sua própria voz e percepção do vivido nos interstícios ora de uma lírica praticada por outro poeta, Stefan George e suas celebrações ao jovem Maximilian Kronberger, ou de um imaginário mítico-histórico, a paixão do imperador romano Marcus Aurelius por seu servo Heriócles. Essas afinidades não apagam o imaginário do poeta e sim o integram num complexo jogo que contribuem para a universalização do seu canto. Com esse procedimento nota-se como a poesia de Ricardo Domeneck organiza e modela uma história a partir do que é também a história dos outros. O poema “Os cantores antes de mim” reforça isso:

Como aquele Oscar de Londres
e suas odes a Bosie.
Como Constantino de Alexandria
e seus cantares anônimos.
Como o tal Pedro de Casarsa
e seus hinos ao Ninetto.
Ou até certo Ricardo de Bebedouro
obcecado com O Moço,
tudo o que quero, Maximin,
é cantarolar-te.
Tira de sobre as tuas orelhas
esses cachos.
Escuta. Aplaude.

Um grupo heterogêneo de vozes motivadas pelo mesmo impulso amoroso é recuperado no poema. Mas – e isso é outra das qualidades da poesia de Ricardo Domeneck nessas Odes – a integração do poeta a esse grupo se oferece ainda por outra condição: todos os sujeitos dessas vozes são apresentados como dissimulações. Uma primeira leitura dirá que o poeta apenas reescreve aqueles que cantaram “o amor que não ousa dizer seu nome”. Também. Mas, é preciso compreender esse tratamento como algo mais complexo: no mesmo território que considera a dissimulatio enquanto princípio próprio de realização da lírica. E isso se justifica pela própria aparição do poeta transcrito nas notas oferecidas no final do livro não como tal mas referência “à péssima poeta contemporânea brasileira Rocirda Demencock, que escreveu por anos cançõezinhas idiotas sobre seu namorado / ex-namorado Jannis Birsner, a quem chamava de O Moço.” E os jogos de dissimulação não findam aqui.

O leitor deve notar que os poetas referidos no poema estão integrados a um contexto distinto do próprio Ricardo Domeneck: são sujeitos que usaram uma máscara, muitas vezes social, para dizer seus amores. No caso do poeta, repete-se, em parte – porque não mais pela determinante histórica –, o que se passa com aquele que é apresentado não gratuitamente como o primeiro: o disfarce do amor cantado. Se Bosie é um nome que integra a narrativa proibida de Oscar Wilde e aquele que não disfarçará se vestir apenas da chama do desejo como o princípio que moveu os dois, Maximin é também um nome que, no jogo poético engendrado nessas Odes, funcionará qual Bosie como disfarce, uma vez este moço enredado pelos mesmos gostos sexuais do poeta prefere não ser revelado e repele o poeta pela audácia de nomeá-lo; é o que se lê em “Texto em que o poeta faz promessas de anonimato monoglota a Maximin”. Se no poema acima, o eu-poético espera que o jovem reconheça os feitos do poeta, aqui, nota-se seu desprezo:  

Foi um erro, talvez, Maximin,
informar-te sobre estas odes,
pensava que elas inflariam
o teu ego, que é parte grande
do teu corpo,
mas perde para aquela outra,
a das cavernas
da maré do teu sangue.
De repente te puseste mui austero
e me recriminaste a falta de pudor,
temendo, eu creio, por tua reputação.

Não é ingenuidade do poeta, afinal sabe-se enredado numa narrativa situada entre impulsos do desejo e as movências do corpo: o que aparece continuamente nas Odes – pela ressalva acerca da virilidade de Maximin comparada a dos atores pornôs, como, mesmo não sendo o caso específico, se ressalta acima em “parte grande do teu corpo” que se “perde para aquela outra, / a das cavernas / da maré do teu sangue”. A relação assumida com “o menino que por vezes me visita quando se cansa de meninas”, como se mostra nesse curso, é puro jogo erótico de dominação: a princípio é o próprio poeta que se reconhece o do mando, o erastes envolvido num relacionamento com um eromenos, qual entre os gregos. Note que esse princípio de dominação se rege por outra força, a intelectual, sobre a “pujança, o tônus e a tesura” do jovem. Depois, o poeta se percebe que esse relacionamento só se realiza nas Odes; afinal, se tudo é impulso erótico, é ele sempre a figura menor, como se enxerga no fim de tudo: “Não sou eu só invólucro de um cu / e boca?”

Se para o poeta, o vivido é apenas aquilo gerado pela palavra, essas Odes, que parecem funcionar como a passagem entre a celebração e o reconhecimento, servem ao poeta para a revelação sobre o amor enquanto contínuo apagamento do sujeito, o que esclarece, inclusive, a fuga do sublime para o ridículo. Um poema que demonstra claramente esse declínio da figura amorosa é o poema propositalmente intitulado “Texto em que o poeta convida Maximin a descolonizar-se consigo”; aliás, o leitor percebe claramente esse trânsito entre o gozo, a quase idolatria por esse Davi “muitíssimo / mais bem-dotado” e sua redução ao piegas depois do poema em questão: vem Maximin / vem e lambe de mim o cheiro / de Rexona / vem Maximin / vem e lambe de mim o cheiro / de Axe / vem Maximin / vem e lambe de mim o cheiro / de Dove // na virilha / nas axilas”; “Sim, mulheres as há / que exigem retribuições / pelo labor das ventosas / de suas bocas. / Eu não, Maximin. / Toda solícita, uma lula / estendendo os braços / e como quem reparte os véus / de uma sala sagrada, / eu abro tua braguilha”; “Quisera em teu tanquinho ralar a pança. / Que o guindaste erga-se! Eu flutuo.”

Dizíamos acima ser possível perceber as variações que determinam o elevado valor do poema de sentimento pela ordem do próprio texto; e foi o que vislumbramos ao longo dessas notas. Resta, ainda, sublinhar o que nessas Odes a Maximin justifica sua força e o fôlego da lírica de Ricardo Domeneck. Fica evidente que o objeto poético aqui se equilibra entre certa felicidade pagã pela descoberta do outro e a sombra de desencanto quase contínua e acentuada nos últimos poemas – o que, de alguma maneira reabre as fronteiras do sentido principal para o termo que os enfeixa. Esse último movimento se oferece quando o poeta reanima o corriqueiro, o banal e dolorido ressaltando as multiplicidades de forças que animam os sentidos do amante. Obviamente que, não é a coita o que lhe prevalece. O jogo erótico assumido entre os dois, o poeta e a figura cantada, é autêntico e finda por expressar uma ressignificação dos sentidos da instabilidade amorosa enquanto destruição da parte incapaz de determinar os próprios limites de sua força, como foi para as vozes coirmãs da voz que apresenta nessas Odes.

Este trabalho de Ricardo Domeneck se constitui de uma riqueza criativa não apenas pela renovação da dissimulatio na lírica brasileira; as Odes oferecem ao leitor um convívio com o lado sensual da nossa língua. No mais, Maximin é já uma figura da qual não conseguimos nos separar depois de encontrá-lo nessas Odes, uma vez que reaviva no nosso imaginário as artimanhas de Eros. Não tardará integrar totalmente um imaginário simbólico constituído por outros eromenoi. Por mais que poeta assuma fora da poesia que este é uma criatura real que atiçou os desejos de muitos homens num verão berlinense de 2011 e depois o arrastou a um caso tórrido, passado à literatura e à poesia, Maximin é puramente símbolo: encarnação e celebração do desejo e das suas forças autênticas e improváveis mas realizadas ou guardadas nas vontades sub-reptícias do corpo.

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