O retrato da solidão
Por Joaquim Serra
Paul Auster
tem a notícia da morte do pai. É o gatilho necessário para tentar reconstruir
na primeira parte de A invenção da solidão partes daquele enigmático homem. À
maneira de um mosaico, a memória reconstrói a solidão dos últimos anos de vida
do pai, a relação distante com o filho, o casamento como uma interrupção da
vida que, mais tarde, depois do divórcio, ele retomaria.
O autor de O livro das ilusões, A noite do oráculo, e o mais recente 4321, já publicado no
Brasil, volta aos primeiros de vida até o presente da composição de A invenção
da solidão. O livro faz parte de suas incursões autobiográficas em que o autor
opta por uma terceira pessoa para falar de si mesmo. Isso não confere
veracidade à narrativa, mas distancia – ou às vezes aproxima – aquele que fala
daquele que age.
A primeira
parte, “retrato de um homem invisível”, é uma busca do autor pelo entendimento
da figura paterna. O pai é ausente, solitário, “o mundo ricocheteava nele, se
espatifava de encontro a ele, às vezes aderia a ele – mas nunca entrava” (p.
13). É assim também sua relação com a casa que desdém, mas preserva como
símbolo da conquista em meio a uma infância pobre e cheia de segredos.
A visita de
Paul Auster à casa onde morou na infância motiva uma reconstrução através dos
objetos. Mas acabam por refletir a solidão daquele que era seu dono, as “coisas
são inertes: só têm sentido em função da vida que faz uso delas” (p. 17). Com
isso são criados os recortes que são feitos através do ir e vir da memória. A
vergonha do filho que quando o pai decide finalmente vê-lo em um jogo de
beisebol, faz o maior papelão. A lembrança da primeira vez que seu pai viu o
neto, filho de Paul Auster, e que, para ele seria possível haver uma
aproximação, mas a distância aumenta com a frieza da recepção do descendente.
Não deixa de
haver em A invenção da solidão aquilo que extasia o leitor da Trilogia de Nova
York, o suspense sobre a origem do pai. Quem era esse homem tão distante que
custa ao filho reconstruí-lo pela memória afetiva? De onde vinha a família
judia, os Auster, como insiste o álbum de fotografias? Entre o presente e o
passado, e alguns eventos inesperados, o narrador busca entender a figura
enigmática do pai.
A segunda
parte, “O livro da memória”, introduz o jogo caraterístico da prosa de Paul
Auster, em que a linha ficcional é plana e rarefeita a ponto de confundir e
servir de exemplo para o mundo real. A mudança de foco narrativo, alguém narra
sobre alguém chamado A., e este, por sua vez, escreve um livro de memórias.
Agora é a sensação interior daquele narrador da primeira parte. É ele entrando
no quarto que é um refúgio para a escrita, para as memórias, onde ele “começa a
reconquistar o vazio” (p. 89). O vai e vem é mais intenso. Falar da memória é
assim, parece ser reconstruir através de cacos.
Passa por
Pascal, Kierkegaard, Dostoiévski, Blanchot, que aparecem na narrativa para
sintetizar alguma ideia difícil de dizer e não na chave do humor como o autor
evoca Cervantes em outras de suas obras, mas com a gravidade da existência da
memória do perdido, daquela imposta pelos fatos.
Os
fragmentos são evocados como as lembranças, não têm governo, por vezes sem
motivo explícito, até chegarem às profundezas da solidão de um homem. Refletem
aquilo que Günter Grass chama de peles da cebola: “a fim de que seja exposto o
que então pode ser lido letra por letra”, com diz Grass.
Na segunda
parte também são revividas as lacunas da primeira, já que o livro é composto de
silêncios. Mas feito de outro ponto de vista. Como se A. deixasse seu caderno
de notas aberto e olhássemos sobre o ombro e pudéssemos assim ver também os
trechos que não entrariam na obra, uma parte ou outra rabiscada que estivesse
dizendo muito.
Os
fragmentos continuam. Às vezes se parte de alguma ideia pequena para
abstrações, para a intervenção de algo sofisticado. Como quando o autor evoca,
como um espelho de si, a solidão de Hölderlin, ou capta a solidão das mulheres
de Vermeer, ou, por páginas descreve o exílio de Marina Tsvetaeva.
Aos poucos o
leitor terá uma ideia maior da solidão que compõe aquele narrador através da
invenção da língua, dos recortes, através da distância do narrador, da
realidade que não é o bastante para descrever só com palavras como o filho
agora se via na mesma situação em que descreveu o pai da primeira parte. Essa
mesma solidão é evocada por motivos e temas no romance, repetida por evento do
acaso. A., quando vai para Paris, fica hospedado no mesmo quarto que anos antes
o pai ficou e mais tarde declararia que foram anos de pura solidão. A. encontra
lá um homem solitário que, de maneira reversa, sente a apatia dos filhos. Os
dois, à sua maneira, completam um ao outro em seus encontros.
Feito As mil
e uma noites – livro que é também comentado durante a narrativa – A. encontra
semelhança com o modo de falar de sua vida, na terceira pessoa, na história de
Jonas: “não pode, portanto, falar a respeito de si mesmo, a não ser como um
outro. Tal como na expressão de Rimbaud: “Je est un autre”” (p. 140). É assim,
história dentro de história, o modus operandi da modernidade a qual A. está
inserido, na disputa por pontos de vista, na tentativa de reconstruir o passado
e deixar de ser um “Oblomov encolhido em seu sofá” (p. 141).
O livro todo
é um pêndulo – como disse Schopenhauer sobre a vida –, da memória que transita
entre o que ficou da lembrança do pai e o filho distante por uma separação. Mas
os registros são poéticos, também pelo envolvimento do autor com a poesia
francesa, a influência evidente de fragmentos e pesos definidos para a palavra
que não é o bastante para a vida. Para o narrador de A invenção da solidão, A.,
assim “como todo mundo, sua vida é tão fragmentada que, toda vez que vê uma
ligação entre dois fragmentos, fica tentado a procurar um sentido nessa
ligação” (p. 165).
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