O mundo de Eugenio Montale
Por César
Antonio Molina
A vida de
Eugenio Montale foi uma aventura tranquila, sem sobressaltos, presa em si
própria e só pouquíssimas vezes marcada em sua silenciosa busca pelo alheamento pelas conflagrações exteriores. O poeta italiano é um sujeito indiferente à profissão,
à homenagem e até mesmo aos leitores. Seu isolamento é quase total e nele, como
em quase nenhum outro escritor italiano de seu tempo, filia sua razão essencial
e única de ser poeta.
Em Montale
há uma clara consciência de renúncia à vida exterior em favor da vida interior.
“A arte é a forma de vida de quem verdadeiramente não vive: uma compensação ou um
substituto”, escreveu numa carta. Mas, não é o próprio poeta (ele se refere ao
artista no geral) quem deve “renunciar à vida”, mas é a própria vida “que se
encarrega dessa fuga”. E isso acontece precisamente por ele ser mais consciente
da vida que os demais. Os outros a vivem, o poeta ajuda a configurá-la
possivelmente através da insistência na própria melancolia, para cujo sucedâneo
está a poesia.
O ceticismo
de Montale é quase cósmico; leva-o a pensar que talvez nem sequer ele mesmo
tenha existido. E a poesia, existirá realmente? Ele, que não foi apenas poeta,
mas também um pintor apaixonado e um excelente prosador, é uma figura
contemplativa, filosófica, um poeta do conhecimento. Suas leituras vão além da própria
poesia e sua literatura se constrói, fundamentalmente, através da meditação interior
e da leitura. Mas Montale, como todo ser humano, é também uma contradição em si
mesmo. E a essa contradição não escapa sua própria vida, sempre discreta,
sempre de acordo em grande parte com seus ideais.
O autor de Ossos
de sépia nasceu em Gênova. Estudou canto, participou nas zonas de combate
da Primeira Guerra Mundial, manteve certa vida literária e ajudou a descobrir
poetas presos à província como Camillo Sbarbaro e escritores como Italo Svevo,
trabalho em editoras e bibliotecas tendo sofrido represálias dos fascistas. Também
dedicou grande parte de sua vida ao jornalismo, seja como redator, articulista
ou crítico musical no Corriere dela Sera. Por esse motivo, foi morar em
Milão depois de viver em Gênova e Florença. Em 1967 foi nomeado senador vitalício
e em 1975, quando estava perto de completar 80 anos, recebeu o Prêmio Nobel de
Literatura. Nessa ocasião leu um discurso intitulado “É ainda possível a
poesia?”
Na verdade,
a pergunta do poeta não é apenas uma, mas duas. A primeira já sabemos. A segunda:
é possível o poeta? Montale é consciente da crescente agressividade social em
relação à solidão, ao indivíduo, ao que é, em si mesmo, alheio e a sua conduta
massificada. Mas não reage violentamente contra isso; ele próprio é uma vítima que,
todavia, busca uma solução: “O poeta deve viver com os outros, vive com eles e
cumpre ofícios estranhos à poesia, mas isso não implica que não tenha um mundo
privado no qual escreverá seus poemas.”
Montale já não
acredita no poeta como um ser excepcional, isto é, como um indivíduo marginal. Está
no mundo, é sua consciência real e irracional, a consciência que não substitui
o transitório pelo essencial. E estando no mundo e em contradição com ele, a
matéria de sua inspiração (a matéria da inspiração de tantos artistas) não pode
ser outra que esse choque. A poesia, o poeta estão em crises. Talvez toda a
cultura esteja. Talvez nunca tenha deixado de estar ao longo de sua história.
Mas não em nenhum mundo como o nosso, tão agressivo, tão em vigilância contra o
espiritual.
Para Montale
o valor da poesia é precisamente sua carência de valor de troca, muito além de
sua própria autossuficiência e como resistir a isso numa sociedade que converte
a cultura, e quase tudo, num produto: “Não se pode confundir o papel impresso
com a obra poética. A literatura se industrializou. Os editores podem sobreviver
se imprimem coisas comerciais e por sua vez os diretores das grandes casas
editoriais, não direi que sejam analfabetos, não, mas não têm nenhum sentido da
literatura. Distinguem entre o autor que vende e o que não vende, embora muitas
vezes este último seja muito melhor. É um mundo econômico...”
O hermetismo
é então uma reação contra o mundo? Não acredito que Montale soubesse sequer o
que era essa palavra, pois os rótulos só existem para uso (não para serem perdidos) pelos professores, não pelos poetas ou os artistas. O poeta italiano empreende
um caminho alheio a qualquer filiação, segue seu próprio instinto, busca na
palavra o ser liberto de todo condicionamento. É a palavra livre de sua função
descritiva, de suas significações vulgares. É a palavra que expressa os
significados primordiais e, como tal, hermética, desconhecida, incompreensível já
para o homem moderno.
A obra de
Eugenio Montale é de uma estranha brevidade. Além disso, entre a publicação de cada
um de seus livros de poemas deixou passar vários anos. Ossos de sépia
apareceu em 1925; As ocasiões em 1939; A tempestade e outros poemas,
em 1956; Satura, em 1971; o Diário 1971-72 é de 1973; o Caderno
de quatro anos, de 1977; e A obra em verso, de 1981, parte dos quais
já estavam publicados na sua Obra completa. Traduções de poetas e uns
cinco livros de artigos, ensaios e prosas completam sua bibliografia.
Ossos de
sépia, seu livro mais conhecido, traduzido para quase todos os idiomas, não
é, para mim, o melhor. As ocasiões é um livro mais completo, onde seu pensamento
está mais centrado e onde também seu estilo brilha já livre de influências alheias,
as que partindo de Leopardi e atravessando o simbolismo se aproximam de
Mallarmé. Mas, em Ossos de sépia já havia deixado a impressão do que ia
ser o futuro de seu trabalho. Uma obra marcada pelo pessimismo existencial, a
recordação da infância, a recorrência temática de uma natureza que lhe escapa como referente simbólico, a valorização pelo transcendente através dos
objetos menos relevantes.
Aqui o poeta
sempre fala de coisas acessíveis, não lhe faz falta se referir a grandes
objetos para escrever boa poesia. Fala sobre o que vê, sobre o que recorda,
explica melhor o mundo, a existência, a passagem do tempo, a função da
natureza. E esse explicar o que uma vez existiu que se converte em hermetismo, em
desconhecimento. Embora Montale seja uma pessoa culta, sua poesia destituída desta
referência, é mais uma poesia da contemplação que do conhecimento, da “dor de
existir”. O poema mais famoso neste livro é “Arsênio”, uma espécie de
autorretrato em que se pinta como viajante imóvel que sucumbe dignamente ao seu
destino: “... aceno de uma / vida sufocada que para ti surgira, / e o vento a leva
na cinza dos astros.”1
Em As ocasiões,
publicado catorze anos depois, encontram-se alguns de seus melhores poemas: “Dora
Markus” ou “A casa dos aduaneiros”. Ante a desesperança e o
determinismo de seus versos anteriores, surge nesse livro a intensidade
amorosa, a presença da mulher como único anjo caído que não pode libertar
mas sim aliviar o homem. Embora Montale volte a recriar-se na recordação, na paisagem
do lugar de sua infância, no sentimento de passagem do tempo e na luta entre o
passado que não pode retornar e o presente que é fugidio e enganoso. O mundo é
para ele como uma grande noite inescrutável, um grande vazio que não tem nome e
o poeta inutilmente trata de nomeá-lo, de identificá-lo, de conhecê-lo: “Teu
desassossego me faz pensar / nas aves de arribação que se jogam contra os faróis
/ nas noites tempestuosas”2.
A tempestade
e outros poemas mostra nosso autor no enfrentamento com a guerra. De
novo Montale ratifica a “salvação” do homem, não por meio de uma coletividade
que enlouqueceu, mas através do aprofundamento do indivíduo, de seus valores
pessoais, de sua solidão. Todo o que o homem construiu só lhe serviu para sua
própria destruição. Montale, como todo poeta, deve recolher os restos desses
objetos destruídos. Talvez o mais belo poema deste livro seja “A enguia”: “A
enguia, a sereia / dos mares frios que abandona o Báltico / para alcançar os nossos
litorais...”3
Satura,
publicado quando seu autor já contava 75 anos, marca a mudança de rumo da
poesia de Montale. O obscuro, o mistério da obra anterior se mostra agora mais acessível,
mais claro, mais doutrinal e dialético, mais sensível, mas, sobretudo, mais irônico,
sarcástico e satírico. “A história” é um dos poemas mais significativos desse
livro. Montale critica seu determinismo e opta por tudo aquilo que foi deixado
pelas suas margens.
A história
não se produz
por quem pensa e nem sequer
por quem a ignora.
A história
não abre
caminho, obstina-se,
detesta o
pouco a pouco, não avança
nem recua,
muda de linha
e a sua
direção
não vem no
horário.
A história
não justifica
e não deplora,
a história não
é intrínseca
porque está
de fora.
A história não
subministra
chicotadas
nem carícias.
A histórias não
é mestra
de nada que
se respeite.
Entendê-lo não
a torna
mais justa
ou mais verdadeira.4
Nesta antologia
a linguagem é muito mais direta, imediatista. Montale, a partir de seu tempo e
depois de uma guerra tão cruel, julga sua obrigação de partícipe. Essa mesma
postura será mantida em seus livros posteriores: Diário 1971-72, Caderno
de quatro anos e A obra em verso. É uma posição determinista: “Chega
com o pior / que é infinito por natureza e tanto / o melhor dura pouco”,
escreve em “Nada grave” (Satura). É uma poesia da inutilidade do esforço
humano por lutar contra o tempo, o desconhecido que está dentro dele mesmo: “Não
se soube nunca se a vida / é o que serve ou é o que morre. / Mas também seria inútil
saber / admitindo que seja inútil o impossível” (“Opiniões”, em Diário de
1971-72). É uma poesia que nega a salvação seja por esforços do homem ou
por outra existência divina. Num de seus últimos poemas escreve: “Se foi triste
a ideia da morte / a de que Tudo dura / é a mais terrível” (“Testemunhos de Jeová”,
Cadernos de quatro anos)5.
Um destaque
especial e impossível de tratar aqui seria o estudo comparativo entre Montale,
Ungaretti e Quasímodo. Penso-os da seguinte maneira: em meio a solidão da
noite, Montale tratará de se incluir em seu vazio; Ungaretti mostrará a dor do
homem por ter sido abandonado órfão, mas buscará uma saída, terá esperança do
amanhecer; Quasímodo buscará nos objetos que o cerca, de outros tempos, uma
resposta, sua esperança é a esperança do passado, tudo passa mas tudo retorna. Na
realidade, os três poetas partem de um mesmo desassossego, mas seus pessimismos
variam.
1
Utilizamos a tradução de Renato Xavier (São Paulo, Companhia das Letras, 2002).
2
Utilizamos a tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti (Poesias: Eugenio
Montale. São Paulo Record, 1997).
3
Utilizamos a tradução de Eungénio de Andrade (Rosa do mundo. Lisboa:
Assírio & Alvim, 2001).
4 Utilizamos
a tradução de Manuel Simões, disponível aqui.
5
As traduções neste parágrafo são nossas a partir do original em espanhol.
* Este texto
é uma tradução de “El mundo de Montale” publicada aqui, no jornal La
República.
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