O Diabo em O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov


Por Davi Lopes Villaça



Em 2017 a Editora 34 publicou a mais recente edição no Brasil de O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov (1891-1940), na bela tradução de Irineu Franco Perpétuo. Escrito entre 1928 e 1940 – período que abrange o início da fase mais severa da censura na URSS e os anos da sanguinária repressão política conhecida como Terror stalinista – esse “Fausto russo”, como foi muitas vezes chamado, trata da visita de Satanás à Moscou dos anos 1920-30. Sátira mordaz da sociedade da época, expondo os interesses mesquinhos, na verdade ainda bastante burgueses, do cidadão comum, não é difícil de entender por que uma versão integral do livro só chegou às mãos do público soviético em 1973 (seu autor trabalhou nele até o fim da vida, decerto sabendo que jamais o veria publicado). Além disso, o livro fala de magia e religião, temas malquistos num tempo em que se preconizava o chamado realismo socialista, a se tornar em 1932 o estilo oficial do regime, em detrimento de todos os outros.

Abordar tal obra em seus variados aspectos é tarefa bastante ambiciosa.  Gostaria de me limitar à forma como Satanás, na figura do mago Woland, encontra-se ali representado. Não se trata de um poder a ser derrotado ou superado; antes, é ele mesmo que possibilita o caminho da redenção, fazendo jus à epígrafe do romance, extraída dos versos do Fausto I, de Goethe, em que o demônio Mefistófeles se apresenta: “Sou parte da Energia que o mal sempre pretende e que o Bem sempre cria”. Como entender, na história que se segue, essa enigmática colocação?

A trama se elabora em torno do destino infeliz do personagem apelidado de Mestre, um autor que renunciou ao próprio nome. Nós o encontramos pela primeira vez numa cela de hospício: após ser caluniado e perseguido pela crítica por escrever sobre Pôncio Pilatos e o julgamento de Ieshua Ha-Notzri (Jesus de Nazaré), acaba enlouquecendo e queimando os manuscritos de sua obra – fatos em que ecoam as desgraças verdadeiras de tantos artistas do período, além de certas passagens da vida do próprio Bulgákov, que queimara seus  manuscritos após ter seu apartamento revistado pela polícia, como nos informa o posfácio do tradutor.

Um talento arruinado, um nome apagado, uma obra destruída – a narrativa plena de humor de O Mestre e Margarida se desenvolve a partir do motivo nostálgico de uma vida arbitrariamente desviada de seu curso, que já não é mais o que era nem pode voltar a ser. Entre os infortúnios já mencionados, enquadra-se ainda outro: o do amor perdido, que nos leva a conhecer a verdadeira heroína do romance. Embora o próprio narrador chame o Mestre de herói de sua história, o personagem, conformado à própria desgraça, é antes aquele que carece de ser salvo. É à sua amada, Margarida, que desconhece o seu paradeiro, que se concede o poder de mudar o rumo da história. É a ela que se propõe o pacto demoníaco.

São vários os paralelos do romance com o Fausto de Goethe, a começar pelos nomes das personagens  (“Woland”, um dos nomes de Mefistófeles; “Margarida”, a amante de Fausto) e pelo tema do pacto. No texto que serve de orelha ao livro, Marcus Vinicius Mazzari nos apresenta uma valiosa síntese de suas alusões e questões fáusticas, enfatizando a relação conflituosa entre poder e ética – em especial, como esta última sucumbe e morre sob o efeito de regimes tirânicos ou totalitários, o que no fundo implica um esmorecimento de nossa própria humanidade. Essa questão, tão urgente nos tempos de Bulgákov, se faz sentir sobretudo na angústia do herói do romance do Mestre, Pôncio Pilatos, amarrado à sua função burocrática, reduzido a instrumento de um poder cruel e autoritário.

“Consciência e desejo do procurador da Judeia pedem a libertação de Ieshua; contudo, a sentença de morte resulta inevitavelmente de sua pregação, subversiva a qualquer governo, de um novo reino de verdade e justiça, isto é, ‘que todo poder é uma violência contra as pessoas, e que chegará o tempo em que não haverá poder nem dos césares, nem qualquer outro’” (Mazzari).

O destino do escritor que queimou seus manuscritos se reflete então no da personagem de Cristo: “Assim como Ieshua sucumbe na cruz ao Cesarismo de Roma, o Mestre vê sua existência enquanto autor aniquilada no Cesarismo Soviético, enrijecido em dogmas políticos e, no plano das artes, na doutrina do realismo socialista”.

É precisamente em oposição a esse enrijecimento que se faz valer a figura do Diabo. Mas que interesse tem ele em ser instrumento do bem? Talvez devêssemos antes perguntar: que mal se pode fazer onde o mal já foi instituído? Woland, embora representante do mal, não é responsável por ele – essa responsabilidade cabe sempre ao homem. Muito agrada ao demônio chegar a uma cidade cujos habitantes podem tranquilamente negar a existência de Jesus e pregar o ateísmo, ainda que ele mesmo faça questão de afirmar que Jesus existiu (é próprio do Diabo dizer a verdade e dar bons conselhos quando sabe que ninguém lhe dará ouvidos). Mas isso significa, antes de mais nada, que o mal o precede e se faz mesmo na sua ausência. Apesar de todo caos que promove, Woland não reserva nenhum plano maléfico para a cidade, não pretende corromper as pessoas. Acompanhado de seu pequeno séquito (“um gato falante e fanfarrão, um intérprete trapaceiro, uma bela bruxa e um capanga assustador”, como se lê na sinopse), a princípio ele se limita a ser, qual turista de passagem, um espectador dessa “nova” Moscou – para ele nem tão nova assim, ainda que bastante mudada. Após apresentar-se como mago no Teatro de Variedades e fazer chover dinheiro sobre a plateia, que freneticamente se atira sobre as notas, Woland diz consigo:

“– Bem, ora, são pessoas como as outras. Gostam de dinheiro, mas isso sempre houve... A humanidade gosta de dinheiro, não importa do que ele é feito, de couro, de papel, de bronze ou de ouro. Bem, são levianos... Bem, e daí... às vezes, a misericórdia toca-lhes o coração... São gente comum... no geral, lembram os de antes... só que a questão habitacional os estragou...”

Feita de passagem, nenhuma constatação poderia ser mais acusatória  do que esta, de que pessoas não mudaram, de que a nova ordem não garantiu o surgimento de um cidadão melhor (o tão sonhado “homo sovieticus”, como ironizou um autor da época). E ninguém mais apto a verificar isso do que o Diabo, esse eterno viajante da História, conhecedor dos povos e seus feitos. Pela mesma razão, Woland é também um profundo conhecedor do homem e da sua dualidade. Para ele, o mal integra todas as coisas, é uma das próprias condições da existência. Em resposta a certo interlocutor que com desprezo o chama de “soberano das sombras”, Woland diz que as sombras são projetadas pelos objetos e pelas pessoas – elas existem porque tudo o mais existe. “Você não estaria”, provoca ele, “querendo depenar todo o globo terrestre, ao arrancar dele todas as árvores e seres vivos com a sua fantasia de se deliciar com a luz pura?”. Woland não precisa lutar para instituir o mal, pois o mal está de antemão instituído, como premissa da própria Criação, ou como premissa do próprio bem.

O fato de Satanás assumir forma encarnada (portanto visível, aparente) comporta já algo de positivo, uma vez que não se pode duvidar da sua existência. É precisamente onde o mal é encoberto, onde o julgam superado ou suprimido, que ele se manifesta com mais força – toma corpo e passa agir por conta própria. Assim, nenhum lugar mais propício a tal manifestação do que a capital soviética, tão confiante na sua ideologia e no seu racionalismo. As bruxarias de Woland e seus asseclas causam menos transtorno pelos seus efeitos do que pelo seu caráter inexplicável e obscuro. Afinal, que coisa mais embaraçosa numa sociedade que há pouco banira toda crença e superstição, que oficializara o domínio da razão, do que a visita do mestre das trevas? No fim, as autoridades tentam explicar todos os estranhos acontecimentos decorridos durante a estadia de Woland como ilusões em massa, casos de hipnose coletiva.

Uma vez verificado na sua existência, o Diabo assume a função de desmascarar o lado oculto por trás da máscara da decência. C. G. Jung pensou o conceito de sombra como aquela parcela de nós mesmos, do inconsciente, que não admite ser apreendida pela consciência e que por isso mesmo a consciência pretende ocultar. Mas é em função mesmo desse ocultamento que nossa sombra assume o controle. Ou, como diria o narrador Riobaldo em nosso Fausto brasileiro: “O demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo”. Assim como nossa sombra não pode ser apreendida pela razão, o Diabo não pode ser submetido a qualquer tipo de controle. Seus asseclas fazem de bobos os atarantados agentes da polícia secreta – nos tempos de Bulgákov, a OGPU e, depois, a temida NKVD, responsável pela repressão política.




O Diabo é precisamente essa força irreverente, fluida e imprevisível, que vive à espreita mas que só se revela quando quer e a quem quer, impossível de ser contida. Pelo seu caráter obscuro e inapreensível, constitui uma ameaça a qualquer ordem social. Mas quando a própria ordem se torna sufocante, quando o mundo parece regido por poderes caducos e os destinos individuais se estreitam e definham, o Diabo pode então adquirir certos traços positivos. Nas primeiras páginas do romance, Woland se apresenta como um professor especialista em magia negra, mas seu atributo maior é o da magia em sentido geral: poder imperscrutável, que ignora a lógica e pode reverter ou subverter a própria realidade. Nesse sentido, o enredo da narrativa tem algo em comum com os das fábulas infantis. Para salvar o Mestre, Margarida depende da “força maligna” tanto quanto os heróis das fábulas, geralmente crianças, dependem dos benfeitores mágicos que os ajudam nos momentos de apuro ou desamparo.

Em seu ensaio “Magia e felicidade”, Giorgio Agamben, em diálogo com Walter Benjamin, afirma que “o que podemos alcançar por nossos méritos e esforço não pode nos tornar realmente felizes”. O herói dos contos infantis só é feliz de fato porque tem a magia a seu dispor – sendo bem provável que “a invencível tristeza que às vezes toma conta das crianças nasça precisamente dessa consciência de não serem capazes de magia” (Agamben). Boa parte da graça de O Mestre e Margarida decorre da magia de Woland: sobretudo, é ela que perturba e põe em movimento o mundo enrijecido em que os destinos dos antigos amantes quedam desencontrados.

Mas essa não é, evidentemente, uma obra pueril, que produza com seu traço fantástico espécie de escape da realidade árida. Consonante ao tom alegre, parece pairar a consciência melancólica de que tais reviravoltas pertencem quase exclusivamente à literatura, de que a redenção última é uma prerrogativa da ficção. Tal consciência se afirma plenamente, a meu ver, no desfecho da narrativa. Talvez também por isso esse seja um romance sobre outro romance, a busca de Margarida pelo Mestre seja também a busca pelos manuscritos queimados, pela história que não se pôde contar – a fazer par com tantas outras, reais e fictícias, silenciadas pelo totalitarismo.

Além das peripécias de Satanás e das outras personagens em Moscou, o leitor acompanha o relato do encontro entre Pôncio Pilatos e Jesus Cristo, esparsamente entremeado ao restante do texto. Ele começa a ser narrado logo no segundo capítulo, na voz do próprio Woland, que afirma a seus interlocutores a existência de Cristo (conquanto ele mesmo se rejubile com o fato de todos ali estarem dispostos a negá-la). Continuamos a escutar o relato noutros momentos, perguntando-nos se essa história, bem diferente daquela dos evangelhos e narrada em estilo sóbrio e realista (ao contrário de todo o restante do texto), será, no quadro do romance, a verdadeira história dessas duas personagens ou apenas aquela criada pelo Mestre. Talvez seja precisamente as duas coisas: um romance que narra exatamente o que aconteceu, uma história que acontece na medida mesma em que é narrada. Em O Mestre e Margarida, realidade e ficção parecem querer ir uma ao encontro da outra, nisto consistindo para ambas a esperança de salvação.

Pôncio Pilatos, instrumento mas também vítima do autoritarismo, arrependido pela execução do homem inocente que não teve coragem de salvar, aguardando eternamente o retorno desse que ele sabe que não mais existirá – essa a face da realidade desprovida de magia, do mundo confinado às suas irrevogáveis determinações. Redimir significa, propriamente, “resgatar”, “tornar a obter”; a vida redimida é aquela readmitida na sua possibilidade, não mais circunscrita a qualquer forma de determinismo. Nas narrativas religiosas, a função redentora cabe unicamente a Deus, que tudo pode. No romance de Bulgákov, esse poder (em forma bem mais limitada) é reservado à ficção ou, de modo mais geral, à arte. A passagem de Woland por Moscou é rapidamente esquecida, em nada altera o dia a dia da cidade. A literatura não pode dissipar os poderes tirânicos ou totalitários – apenas, a muito custo aliás, pode sobreviver-lhes. Mas, com sua própria existência, ela nos fala de uma vida e de um sentido que se cumprem a despeito dos estreitos limites que a realidade lhes impõe. Que o romance de Bulgákov tenha chegado aos nossos dias, atravessando os anos de censura e repressão que se estenderam para muito além da vida de seu autor, parece sugerir o poder mágico e demoníaco da própria arte, ao mesmo tempo que nos recorda a inestimável perda de vidas e obras durante os tempos de repressão e censura.    

Referências:
Bulgákov, Mikhail. O Mestre e Margarida. São Paulo: Ed. 34, 2017.
Agamben, Giorgio. “Magia e felicidade”. In: Profanações. São Paulo: Ed. Boitempo, 2017.


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