O anjo, de Luis Ortega

Por Pedro Fernandes





É verdade que as cinebiografias se inscrevem no rol das criações mais difíceis. Mas, o erro mais grotesco cometido por cineastas de toda parte é querer se aproximar ao máximo da verdade histórica e construir uma narrativa que seja estreitamente a vida do biografado e, como se isso não fosse a pura aberração, ainda insistem em obrigar todo o elenco principal a se integrar nas feições originais das figuras originais. Esquecem-se que nenhuma obra é capaz de reportar integralmente o passado; este é uma lembrança que não volta mais. O ponto de partida e situações diversas vividas no interior da ficção são originais, mas o resto será sempre produto da imaginação criadora.

Tentar alcançar o inalcançável resulta uma obra de falso brilho, caricata, e coloca em falso a própria verdade que se quer apresentar, sobretudo, se essa for o perfil biográfico de alguém. Nossa natureza é continuamente contraditória, por isso marcada por matizes discrepantes, e os autores que querem oferecer uma autêntica cópia do biografado acabam por mostrar não uma personagem e sim um tipo. Isso significa dizer que faz prevalecer apenas sua superfície, negando sua complexidade psicológica. Nas produções recentes que seguem a falsa cartilha da criação é possível citar, a título de esclarecer o que aqui se define, Bohemian Rhapsody que só terá seduzido os mais incautos por nostalgia e, claro, pela força sedutora da música do Queen.

Na direção oposta podemos citar o filme tema dessas notas. O trabalho de Luis Ortega não deixa de se guiar pelo interesse da fidelidade de imagem, e em alguns pontos, histórica, mas seu valor está na capacidade de oferecer ao espectador uma narrativa autêntica e não presa aos limites impostos pela mirada da história. O resultado é nos oferecer uma desconstrução sobre a dupla possibilidade de leitura sobre a figura retratada: certo encantamento romântico pela sua capacidade e audácia contra os sistemas de ordem social; repulsa integral pela escolha do caminho não desenhado pela sociedade e pela família e pela frieza com que executava a atividade criminosa. Entre os dois limites, saímos de O anjo enredados por uma complexa dialética que não nos permite recair numa ou noutra conclusão.

Quer dizer, o cineasta argentino possibilita reavivar o sentimento coletivo que anima o espírito universal da comunidade humana por todas aquelas criaturas que parecem picadas pelo destino com altas doses de indiferença aos padrões convencionados. Esses sujeitos com forte inspiração mítica não nos oferecem escolhas; sempre despertará entre os demais um duplo interesse: pela maneira como se portam e pelas ações que desempenham. Essas, aliás, se expandem e tomam proporções para a invenção, alimentando ora o imaginário ora o anedotário que circula em seu entorno. A condição perturbadora que a narrativa de Ortega oferece ao espectador, capaz de nos fazer atravessar dias e dias interessados em saber melhor sobre a figura retratada, é exatamente o sentimento correspondente aos sentidos que acompanham a biografia desses sujeitos excepcionais.

Tudo isso só é capaz porque se trata de uma produção que, sem esquecer o comercial, não deixa de acrescentar à história situações que se firmam como símbolos, como a dicotomia assumida na relação de Carlos com os pais e com a família do crime que o adota, ou a persistência (dedo de Almodóvar) do vermelho em todas as cenas que dissipa o espetáculo do sangue das mortes, ou ainda a dança do protagonista que inicia e encerra a narrativa, como dois pontos que se comunicam: a onipotência e a queda do herói. Além, é claro, da maneira extremamente sutil e delicada como se constrói a relação entre o anjo e seu amigo Ramón, sem, em nenhuma circunstância, oferecer uma resposta conclusiva sobre os limites assumidos entre os dois, mesmo que os mais afoitos queiram enxergar nela um caso homoerótico.

Há ainda a aposta no cuidado estético e linguístico; situado na década de 1970, todos os cenários, mesmo os externos, tratam de se igualar muito de perto aos da época. A escolha musical, o figurino, a construção do comportamento das personagens, a combinação das cores capaz de recuperar essa atmosfera, cobrem os interesses que nas ocasiões falhadas de outros filmes do gênero repousam apenas no peso da maquiagem e na transformação visível das figuras envolvidas.

Completam essa unidade a intensidade assumida pelos atores, a começar pelo adolescente Lorenzo Ferro, que interpreta o protagonista da narrativa, o sociopata Carlos Robledo Puch. É possível mesmo que a dimensão perturbadora que este filme imprime no espectador seja resultada da percepção dupla assumida pela figura e pelo ator que a incorpora: uma criança capaz das piores atitudes de um homem; um andrógino capaz de se portar como homem e despertar nos homens os desejos mais escusos de outros pelo mesmo sexo; o homem e o animal; o delicado e o grosseiro; a figura tenra e cruel; inocente e inventiva. O anjo talvez seja a criatura capaz de mexer com os nossos lugares mais ocultos, fazendo-nos viver pela sua atitude a atitude que sempre negamos porque somos comumente parte do amplo processo de domesticação dos nossos instintos.

O que chama atenção de cinebiografias bem realizadas, além da liberdade criativa não afeita à reprodução integral do histórico, é a não ambição pela cobertura integral de uma vida. Ao menos que seja uma existência curta, toda biografia é um bocado longa e ambicionar transferi-la para o ecrã tal e qual pode resultar num edifício narrativo incapaz de se sustentar. No caso de O anjo, o que se narra são os instantes de formação do protagonista, da sua inclinação pela curiosidade pelo alheio, o que leva a ter no roubo uma condição mais instintiva que uma ambição racional, aos instantes quando se coloca um ponto final na sua atuação pelo submundo de Buenos Aires. Isso é fundamental para a manutenção uma unidade narrativa, que ao lado das escolhas mais técnicas como abordadas acima fazem desse filme um retrato vivo e pungente do biografado.

Nos casos de produções que retratam sujeitos com perfis adversos como o de Carlos Robledo Puch, é comum ainda que o cineasta recaia noutro erro: a celebração ou a condenação justiceira da personagem. Aqui, o cineasta também se esquiva dessa armadilha. Seu interesse de negar, a qualquer custo, o estereótipo, nos oferece um caminho vertiginoso por entre a consciência da personagem, sua impulsividade e a contínua dialética propiciada por sua figura e seu comportamento. Nesse ínterim, a tarefa do cineasta de oferecer uma dimensão complexa do protagonista recai noutra atitude acertada: oferecer espaço na narrativa capaz de jogar luz sobre as personagens que lidam muito de perto com o rapaz que carrega o apodo de Carlos Gardel e não as tornar em meras figuras acessórias.

Por falar no ícone argentino do tango, o ritmo só se apresenta numa única passagem do filme: a cena que nos leva a vivenciar certo tom de desamparo, quando Carlos deixa correr algumas lágrimas pela sua condição desacertada no mundo. Pode-se dizer que o carrossel de situações e de sentimentos propiciados pela narrativa de O anjo funciona com a mesma força de um tango, preso numa dialética entre a inocência e a malícia. O que por fim se revela como um filme não apenas sobre uma figura complexa e contraditória; mas, reiterando certo coro da crítica, é também um filme sobre a argentinidade, esta que pode ser entendida como um produto da dialética de classes: a inocência da classe média e a corrupção da elite. O anjo alcança, assim, uma ruptura com esse jogo de forças à medida que subverte os polos dessa relação: um criminoso revestido dos mesmos modelos que determinam a ordem de poder. É, portanto, uma leitura que tenta encontrar os elos entre uma psicologia acusada de socialmente degenerada e uma sociedade compreendida como ciente da lucidez que lhe governa.


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