Joseph Conrad. O mar como uma moral
Por
Manuel Vicent
O jovem Joseph Conrad. Pelos lugares passou, restou algum registro; este foi de quando esteve em Marienbad, em 1883. |
Numa tarde
melancólica, uma criança fantasiosa, deitada de bruços na cama diante de um
atlas aberto, para de navegar com o dedo indicador todos os mares azuis para
adentrar com absoluta liberdade nas selvas mais perigosas. Com a cabeça cheia
de barcos piratas, de baús de tesouro, de leões, presas de elefantes, chega um
momento em que o menino coloca o dedo num ponto do mapa, o mais exótico, e pensa:
“Um dia, quando for mais velho, irei aqui”. Alguns conseguiram realizar este sonho,
mas só um se chamou Joseph Conrad.
Este menino não
era filho de um conde polonês nem sua tia era princesa belga nem foi
apresentado muito cedo ao imperador Francisco José numa audiência reservada no
Hofburg de Viena. Os primeiros anos deste escritor, cujo nome de batismo era Jósef
Teodor Konrad Korzeniowski, estão rodeados de sonhos aristocráticos que ele
fomentava ou não se preocupava em desmentir, sempre fantasioso e rodeado de
silhuetas fictícias. Assim deambulava pelo porto de Marselha ou pelas docas do
Támesis com as mãos nos bolsos, como um jovem sem lar, tratando de embarcar no
primeiro navio que o levaria aos mares do Sul.
Vinha do
frio, de um país de neve. Joseph Conrad havia nascido a 3 de dezembro de 1857
em Berdichev, território da Ucrânia, a 220 Km ao sudeste de Kiev. Nesse tempo,
a Polônia tinha apenas uma identidade étnica e linguística; não existia
politicamente; era um território afixado ao jugo da Rússia. Seus antepassados
foram gente disposta a libertar a pátria e por isso se alistaram no exército de
Napoleão no levante sobre Moscou e neste empenho lutou depois, como
revolucionário de esquerda, o pai de Conrad, de nome Apollo, que foi preso,
julgado e condenado ao exílio por este motivo, um dos símbolos políticos mais simples
que logo deixou órfão de pai e mãe o futuro escritor. Tinha 12 anos e ficou sob
a tutela de seu tio materno Tadeusz. Este homem metódico e pragmático não conseguiu
aprisionar os sonhos de seu sobrinho, um adolescente visionário, que na
convulsão dos ataques de epilepsia ouvia vozes imperiosas chamando-o à fuga. Um
dia de outubro de 1871 pegou o trem na estação da Cracóvia e desobedecendo um
escuro desígnio não deixou de se afastar daí até chegar a Marselha. Estava com
17 anos. Esta fuga em busca de um sonho o levou a romper com a pátria, a
religião e a família. Todo o seu passado foi substituído pelo mar.
No porto de
Marselha existiam canalhas suficientes para preencher com emoções uma vida inteira,
embora ele só esperasse um barco para ir ainda mais longe e enquanto isso não
acontecia se dedicou a naufragar por sua conta em bordéis e casas de jogo onde
algumas vezes saía depenado e noutras agarrado à cintura de uma prostituta ou
de amigo nu como o tronco de uma árvore num rio. Quando se sentia desbancado
pela própria desordem, pedia socorro ao tio e este o acudia com uma remessa de
dinheiro acompanhada sempre de muitos conselhos. No final de três anos de
perambulações em terra conseguiu finalmente embarcar como passageiro no barco
Mont-Blanc que o levou à Martinica. O calor úmido, os gritos dos papagaios e o
colorido da variada carne tropical ocuparam o vazio de sua pátria perdida e a
partir desse momento começou em definitivo sua aventura.
À hora do
embarque os marinheiros se dividem em dois: os que se fazem melancólicos porque deixam
para trás mulher, filhos, amigos e prazeres sedentários e os que sobem a bordo
felizes por terem conseguido se colocar acima de suas dívidas, pendências e
falsas promessas de amor colocando pelo meio todo um oceano durante um longo
tempo. Joseph Conrad pertencia a esse segundo grupo de marinheiros. Em terra
era um sujeito agitado pela existência, mas o mar o convertia num homem
esforçado, rigoroso e livre. No retorno dessa primeira travessia às Antilhas,
recluso de novo no porto de Marselha, a espera para entrar noutro barco o levou
a ser devorado outra vez pelas dívidas ao ponto de precisar pegar um revólver e
dar um tiro no próprio peito para resolver bravamente o problema. A bala passou
muito perto do coração, mas não quis matá-lo.
Sucessivas viagens
às Índias Ocidentais em outros navios o converteram de passageiro a aprendiz de
marinheiro metido na falsificação de rum e no contrabando de armas. Depois levou
carvão a Constantinopla e lã a Austrália. “Se for para ser marinheiro quero ser
um marinheiro inglês”, prometeu a si mesmo no hospital onde se recuperava do
ferimento causado pelo tiro. Depois de passar por toda a escala, conseguiu seu
desejo e como primeiro oficial da marinha mercante britânica navegou os mares da
China e da Nova Zelândia; incorporou ao seu espírito os nomes de Sumatra,
Bornéu e o golfo de Bengala; adentrou no coração da África pelo rio Congo e em
cada travessia compartilhou a vida com tipos heroicos e desalmados que depois se
converteriam em primeira mão nas personagens de seus romances. Havia conseguido
nacionalidade inglesa em agosto de 1886 e foi marinheiro por oito anos, mas depois
de uma grave fratura na escápula na altura de Singapura, deixou o mar definitivamente,
vestiu-se de preto, pegou um chapéu-coco e se tornou cavalheiro. Foi quando
cruzou a própria linha de sua sombra.
Em terra, afligido
pela gota, casou-se com Jessie Emmoline George, teve com ela dois filhos, Borys Leo
e John Alexander; foi quando começou a escrever contos de marinheiro com um
inglês fabricado e reverenciado que lhe vibrava o pulso com a mesma tensão da
cana dos navios que pilotou quando era capitão. Conrad converteu o mar numa
moral. A expiação e o remorsos depois de um ato de covardia em Lord Jim,
a serenidade ante a desgraça e a ânsia de poder em Nostromo, a mutação
constante das paixões como as mudanças das ondas em O negro do Narciso,
o mergulho até o fundo da miséria humana em Coração das trevas. Um
escritor se mede frente ao mar. Nesse sentido Conrad não tem uma só página
ridícula nem se permitiu uma angústia. Não foi assim em sua vida na terra.
Em meio à
fama internacional que foi dada de imediato por seus livros, precisou viver
lutando de novo contra suas dívidas e as de seu filho Borys, contra a enfermidade
de sua companheira, contra os zelos de velho apaixonado por uma ninfa, contra a
ruína de seu corpo decadente preso a uma cadeira de sua residência de Oswalds,
próximo de Canterbury, acolhido pelo amparo de seu agente literário Pinker como
quem se agarra ao mastro maior em meio de uma longa tempestade na terra. Morreu
de um ataque cardíaco a 3 de agosto de 1924, aos 67 anos. Sobre sua tumba foram
gravados estes versos de Spenser: “O sonho depois do esforço, a depois da tormenta
o porto, o repouso depois da guerra, depois a vida a morte é muito agradável”.
* Este texto
é a tradução de “El mar es una moral”, publicado aqui no jornal El País.
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