Ficção de realidade e realidade de ficção
Por Amanda Lins
Pontes de
Miranda, o professor de introdução ao direito diz incessantemente à turma
sonolenta, leiam Pontes de Miranda. Algo no tom dele faz nascer em mim um
ensaio de irritação, irritação a qual, a princípio, não consigo identificar o
motivo. Mas anoto a sugestão-barra-imposição no canto do caderno e empurro a
porta, indo em direção ao mormaço do mundo. As salas de aula no verão nunca são
convidativas.
Nascimento
em 1892... morte em 1979... escreveu diversos tratados sobre direito privado,
vou lendo enquanto passo meus dedos pelas capas empoeiradas, formando um rastro
de que estive ali, marcando-me nos sumários já comidos pelo tempo até a metade
e nas contracapas quase inexistentes. Na biblioteca, o que entra de luz
precisa antes dançar pelos resquícios de poeira, formando uma cortina que me
banha de sol aos poucos e me convida, novamente, ao calor de fora. Posso sentar-me
num banco e terminar de ler o romance que larguei durante a aula, reflito.
Ficamos
sempre, os estudantes, nós que sempre fomos ratos de biblioteca, divididos
entre ler por prazer ou ler o que nos empurram, artigos empoeirados sobre
códigos que já nem estão mais em vigência. Coisa que não faz sentido, veja bem:
preciso ler tratados de mil páginas [por volume!!!] sobre um código que
aconteceu de ser substituído há mais de década, para garimpar um ou dois
parágrafos de teoria geral e compará-los [!!] às outras mil páginas que também
[!] preciso ler sobre os códigos atuais. E então, com bastante sorte, até o fim
da faculdade esses códigos atuais que estudei também não vão ser substituídos e
não vou precisar ler outras mil páginas sobre outro novo código.
Há nisso uma
realidade pura e simples: não existe a mínima condição de sustentar tantas
dessas milhares de páginas, nas sete ou oito matérias que compõem a grade de
cada semestre. Mas minha irritação com a insistência do professor vai mais
além, percebo: há algo de datado na leitura que me faz sentir enganada, traída
pelo manual, qualquer que seja. Lê-se os comentários ao código processual de
1992, e assim que substituído, é preciso ler os comentários ao código
processual de 2015, e quando este for substituído será preciso ler os
comentários ao código de dois-mil-e-a-próxima-data-que-vier.
Mais
profundamente que a traição pelo datado, sinto-me traída pela clara ficção que
se apresenta em minhas mãos, travestida de realidade. A norma impõe, nada mais,
e justifica-se a si mesma como o deve-ser, nunca o ser. A norma nos seduz em
seu universo de perfeição e nos faz esquecer o que é real, palpável, humano. A
norma é uma porta que se pinta em muros tão claramente feitos de pedra e
tijolos, onde depois se diz “está pronto, atravesse!”. Mas é preciso romper
também este muro, respondemos inflamados. “Ah, isto fica pra depois”.
As normas
tentam maquiar um passado por tantas vezes cruel com cidadanias e
anistias & tantas dessas ias, e têm a ousadia de denominar-se realidade em
contraponto à ficção, que por sua vez segue tão sincera ao mostrar-se nada mais
que ficção. Nós, os filhos da racionalidade, tentamos tão ingenuamente
separar-nos de tudo que é teatro e encenação, ou renegar estas categorias do
conhecimento ao papel de lazer de fim-de-semana, nada-efetivamente-construtivo,
leia-isto-mas-também-leia-o-que-é-relevante tipo de coisa.
Retorno ao
romance que larguei. Constato que foi publicado em 1866, vinte e seis anos
antes de Pontes de Miranda, pontapé de minhas reflexões, sequer ter nascido.
Sigo pela angústia de Raskolnikov, eternas reflexões sobre em que, exatamente,
consiste a lei moral e o que é maldade e qual a linha entre ser criminoso e ser
um gênio, e a culpa, o pecado, o assassinato, o martírio humano. Há uma
percepção entranhada em mim de que Dostoiévski não me trai.
O absurdo
estabelecido: ficamos nós, divididos entre ler a ficção do real, porque nos é
dito que a ficção do real é o desmonte do que forma o mundo para que possamos
entendê-lo, ou ler a realidade da ficção, os textos de dois séculos atrás que
nunca foram substituídos e que não se imagina por que seriam. Fartos de
realidade maquiada, com pratos cheios de invenções do cotidiano, fugimos à
realidade da ficção, a mesma que deixamos ocupar esse local marginal de nossas
vidas racionais&ocupadas. E encontramos esse pacto silencioso onde o livro
apresenta-se enquanto teatro para que, intrincado ao enredo, encontremos a
complexidade do humano. A sabedoria holística do inventado em contraponto à
justificativa ficcional de problemas reais.
Comentários