Dor e glória, de Pedro Almodóvar
Por Pedro
Fernandes
A
consciência de que o passado está preso nas linhas do irrepetível parece ser
uma das certezas universais com a qual mais lutamos. Não é exagero dizer que a
partir da formação dessa compreensão toda nossa vida seja feita de tentativas
de nos reencontrarmos com nossos instantes de júbilo; por essas ocasiões que
somadas todas na vida de um indivíduo comum não chegaria a um terço de sua existência
total qualquer um pagaria qualquer preço incluindo uma nova vida com o mesmo
novelo de mesmices e dores. Pedro Almodóvar alcançou essa consciência sobre o
passado e transformou suas inquietações, como quem passasse a limpo sua própria
biografia, numa obra de arte capaz de atingir a todos.
Em Dor e
glória encontramos o tema do vazio criativo e o seu preenchimento com
aquilo que de melhor pode fazer um artista: multiplicar-se para ser a si e um
outro, sendo este aqueles que em toda parte padecem da impossibilidade dessa condição.
Volta à estrutura da metaficção e uma diversidade de outros matizes que
qualificam seu universo criativo, como o desejo, e compõe, certamente o mais
introspectivo dos seus trabalhos. Junta-se à maturidade criativa, há muito
alcançada, a experiência do vivido como jogo entre a exposição e a revelação. Equilibrando-se
em contradições finda por oferecer uma lição sobre o poder do amor nas
transformações individuais, para bem e para mal, ou se isso parecer muito
piegas em se tratando do modus pensante do cineasta, como as vidas alheias
interferem no curso de nossas existências, outra vez para bem e para mal.
Interagem nessa
composição três narrativas: a de Salvador Mallo, um cineasta que alcança alguma
unanimidade entre críticos e espectadores, ocasião quando se assinala a data quase
redonda de um sucesso seu, e metido com uma variedade de limitações de
saúde capaz de reduzir significativamente suas atividades se vê tomado por crise
de criatividade; a própria história de Salvador dissimulada num monólogo que
servirá para ele como acerto de contas com o ator principal do filme motivo da
efeméride; e, na mesma toada da peça para o teatro, a realização do novo
trabalho cinematográfico de Salvador depois de atravessar uma diversidade de
situações: como a perda da mãe, o reencontro ao acaso com um desenho realizado
aquando da sua infância há meio século, as motivações da efeméride de sua obra-principal,
a rememoração de seus anos de glória e da sua formação como criador, além é
claro, da presença contínua da morte como a certeza cada vez mais iminente,
ainda que essa se mostre mais como um sopro do qual ainda é possível se
desviar.
Esses três
fios que compõem a narrativa de Dor e Glória lidam, portanto com três
instantes singulares das memórias de Salvador Mallo: sua situação atual, entre
a fama, a dor, desencanto pela existência e a gênese de um novo projeto
cinematográfico; seus anos de brilho e efervescência que levaram aos momentos
de superação de todos os limites, até mesmo ao esvaziamento amoroso – há aqui
um segredo que deixamos por conta do espectador, um momento expressamente
importante desse imbróglio narrativo porque significa a recuperação de algum
alento pela vida, incluindo, a capacidade de o cineasta outra vez apostar na
sua criatividade; e uma revisitação sobre os anos de formação de seu imaginário
e de seu desejo, entre a infância em Paterna e sua estadia no seminário para os
primeiros estudos, passando pela formação da relação de afetos pela mãe, de
distanciamento pelo pai e de encantamento pelo pintor, amigo da família, a quem
ensina a ler e a escrever.
As coordenadas
para um enredo revestido desses tons mais introspectivos e logo mais emotivos
estão oferecidas no interior dessas narrativas. Vale citar aqui a passagem
quando Salvador Mallo decide por permitir a Alberto Crespo que leve adiante a
encenação de La Adicción; preferindo o pseudônimo ou o anonimato de
assinatura do texto, Salvador detalha que o cenário ideal para a peça é uma só
tela branca, que recupera dois elementos marcantes de sua vida – a cal das
paredes da vivenda onde morou na infância e o ecrã do cinema –, e que apesar do
tom um tanto melodramático do texto, seu bom desempenho se faria pela
capacidade de contenção do ator durante a representação. Essas duas observações
da personagem comungam para o desenvolvimento do filme.
O branco domina
não só a paisagem como se manifesta na extrema claridade para os momentos da
narrativa sobre a infância de Salvador; são um contraponto ao vermelho, cor
preferida do próprio Almodóvar, da narrativa de La Adicción, com se
demonstra pontualmente no diálogo de cores nesses momentos da peça, e as demais
circunstâncias da narrativa principal de Dor e glória: centradas na
ambiência do escuro. O diálogo entre cores, se fôssemos nos deter, daria uma
leitura à parte sobre o filme.
Já o tom comedido
é prevalência em todo desenvolvimento de Dor e glória e ele é o
responsável pela catarse: como descrever as emoções propiciadas pela cena de
abertura, a do canto ritmado das lavadeiras que se oferece como encantamento
aos ouvidos do pequeno Salvador; como descrever a cena em que ele oferece as aulas
de alfabetização ao rústico pintor Eduardo e toda relação de fino e inocente
amor, por entre o qual rumoreja as correntezas ainda inexplicáveis de um
erotismo gracioso, pueril e puro; como descrever a intensa relação entre mãe e
filho; como descrever o reencontro do amor e do desejo depois de sua força
febril. As situações enumeradas são apenas alguns dos momentos mais singulares,
movidos por um alto teor emotivo, mas sem descer para o piegas, o triste, o compungente.
Puro equilíbrio que nos integra às situações narradas e nos deixa esquecer que
fora desse instante de integração pulsam outras existências. Arrebatamento dos
mais difíceis para um mundo integrado a uma desordem entre imaginação e
realidade.
Parecerá repetir
um rifão, mas não sobra outra afirmativa: o cineasta espanhol supera seus
próprios limites criativos. Oferece-nos um filme de rara e singular beleza
através do qual podemos reabrir as temporadas de revisitar sua obra, no intuito
de rastrear algumas pontas que no calor do tempo e do que só agora se revela percebê-las
de maneira mais coerente. Isso dizemos pensando por exemplo, nas reiterações do
temário do desejo ou da maneira como construiu um mosaico acerca da gente comum
espanhola. Quer dizer, é uma maneira elegante de um cineasta como Almodóvar repreender
todas as falas acusatórias que não poucas vezes o tachou de narrador afeito à perversão.
No mais, o espectador pode ter certeza que encontrará uma aula sobre a criação cinematográfica,
esse exercício ainda recorrente na era quando os objetos artísticos para
ganharem alguma função na vida cotidiana precisam se reduzirem ao puro entretenimento.
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