Contos da Aldeia, de Alberto Braga
Por Pedro Belo Clara
Trazemos, nesta ocasião, à
memória dos nossos estimados leitores, mas principalmente ao seu conhecimento,
uma obra que tem permanecido oculta das grandes multidões por décadas sem conta
– esquecimento de que o seu autor compartilha, também ele bastante fustigado
pelos efeitos amnésicos do tempo.
Alberto Leal Barradas Monteiro Braga
nasceu na Foz do Douro, Porto, em 1851, e aí viria a falecer sessenta anos
depois, em 1911, tuberculoso. Apesar do anonimato vivido nos anos mais recentes
(e que largos anos esses), foi um jornalista, cronista, contista e dramaturgo
conceituado no seu tempo.
Inicialmente secretário do já
extinto Instituto Comercial Português, notabilizar-se-ia com a assinatura de
crónicas diversas, tanto em jornais portugueses como brasileiros, e em muitas
ocasiões sob pseudónimo – a saber: Diogo Mateus.
Chegou a
dirigir o suplemento A semana de Lisboa, que durou apenas dois anos (1893 –
1895), onde foi igualmente redator. Não obstante a curtíssima experiência de
vida da dita publicação, contou ainda com a colaboração de personalidades muito
distintas da época, como Bulhão Pato, João de Deus ou Teófilo Braga – que mais
tarde tornar-se-ia o segundo presidente da república portuguesa.
Ainda no campo das colaborações
mais emblemáticas, além de dois jornais parisienses da época, destacar-se-ão os
periódicos Brasil – Portugal, publicação que no seu tempo de vida excedeu os
trezentos números e que contava com um painel fixo de luxo, onde se poderiam
ler nomes como Raúl Brandão, Fialho d’Almeida, Olavo Bilac e Manuel de Arriaga,
o futuro primeiro presidente da república, e a célebre revista Ilustração
Portuguesa, extinta somente no ano de 1980.
Este tipo de trabalho que temos
vindo a citar terá sido aquele que Alberto Braga mais desenvolveu durante a sua
carreira, pelo menos em termos de número e frequência, além de algumas
traduções elaboradas de modo mais esporádico.
No que toca
ao teatro, escreveu entre 1892 e 1897 três peças, ambas representadas no teatro
nacional D. Maria II, tendo a sua estreia com A Estrada de Damasco, que obteve
um êxito razoável junto da crítica. A sua segunda peça, porém, A Irmã, foi
desdenhada pela mesma, apesar de ter merecido uma enorme atenção do público. Na
temporada em que estreou, foi em termos de bilheteira a mais bem sucedida.
Dentro do campo do teatro, o cariz das suas produções obedecia a um traço em
comum: uma forte influência romântica com um notório pendor naturalista – que,
em todo o modo, também nos seus contos se fez notar.
Na área do conto, precisamente, foi
a presente obra a segunda a ser lançada, corria o ano de 1880. Mais tarde irá colectar
os contos que a compuseram, juntando-lhes alguns inéditos e novos trabalhos,
ambos reunidos em Contos Escolhidos, de 1892.
Dada a
absoluta raridade de tais edições, e a ausência de novas nas últimas seis
décadas, pelo menos, regemos este trabalho pela mais recente que conhecemos,
elaborada pela já extinta Livraria Civilização, em 1940. Naturalmente,
considerando a data em questão, as narrativas apresentam-se no discurso habitual
daquele tempo, que já registou alterações bastante significativas,
principalmente ao nível da escrita. Não obstante, aplica-se aqui a sábia lei do
povo: para bom entendedor…
A obra, composta por catorze
contos, não passando sequer o total de cento e cinquenta páginas, apresenta o
mais característico do estilo de Alberto Braga enquanto escritor: um traço
directo e claro, muito próximo da fala – apesar da maior elaboração, muitas
vezes com laivos poéticos, do texto em momento descritivo. A isto juntou um certo
sentimentalismo que em vários momentos cruza o romantismo, mas sem cair em
domínios barrocos, como o lirismo de outros séculos mais idos ainda requeria.
Se nos debruçarmos um pouco mais
sobre eles, diremos que são contos que primam pela capacidade de captar e
oferecer a dimensão humana no seu esplendor, se bem que as áreas mais
exploradas são a tragédia e o abandono.
Dada a
antiguidade da obra, as narrativas oferecidas remetem certas vezes para um
tempo único da história portuguesa, um que, desde logo, nos chega pelas bocas
das personagens mais vividas: as invasões francesas, ocorridas no seguimento da
recusa portuguesa em fechar os seus portos aos navios ingleses, conforme
ordenara Napoleão. Decorriam os primeiros anos do século XIX, de 1807 a 1810, em
três vagas. Mas a elas não se cinge, sublinhe-se, apesar da referência poder
constituir motivo de interesse para muitos.
Ora nessa
temática da tragédia e do abandono, adicionada ao que se acabou de escrever,
desde logo sobressai o conto de abertura, de seu nome “A guerra”. Embora comece
por relatar a enternecedora amizade entre dois moleiros, Eusébio e Anselmo,
cada um com residências em margens opostas do mesmo rio, em ritmo seguro a
narrativa evolui para o acontecimento fatídico: a chegada dos franceses. Com a
guerra à porta, a recruta de soldados impõe-se. E quantos sonhos aí não se
verão quebrados? Quantas palavras não ditas darão a conhecer o seu peso a quem
as guardou imprudentemente? Será apenas um pretexto para a tragédia que marcará
o conto, o episódio da guerra, um texto onde os amores não confessados terão um
especial enfoque – e com consequências devastadoras, tanto para os amantes como
respectivas famílias.
O conto
“Está no céu” também é tecido por malha muito idêntica, embora aqui nos seja
oferecido um desenlace mais comovente ainda, pois dá a conhecer a muito humilde
família de um soldado em campanha: a jovem esposa e o pequeno filho que todas
as noites gosta de ver no mapa o lugar onde o seu pai está. Até ao momento em
que são recebidas as notícias que nenhum familiar de soldado deseja receber. O
resto será de adivinhar, certamente; a única excepção, decerto, estará na
infantil e, por isso, espontânea reacção da criança, que surpreende mãe e
qualquer leitor de coração mais sensível.
Por aqui se
vai depreendendo, assim o esperamos, que o sentimentalismo que atrás se referiu
não surge em excessos dramáticos, é antes muito bem doseado pelo seu autor – ao
invés de contido –, que sabiamente lhe confere um carácter poético e, como antes
também frisámos, romântico com tendência à melancolia. Embora não seja fórmula
aplicável ao geral apresentado no livro, é o que de modo corrente, ou comum,
acontece.
Deduzir-se-á,
e bem, que existe na obra espaço para outros exercícios. Nomeadamente, acrescentamos,
o crítico. Sobre esse tema, o conto “O sermão” assume-se como o melhor exemplo.
Nele, o autor utiliza um acontecimento tão natural nas aldeias de outrora, e
não só, para desencapotar o enorme cinismo e falsidade humanos, com especial
foco, nesta narrativa, nas entidades religiosas (e bem se sabe do seu poder nas
sociedades rurais desses tempos) e nos escalões mais abastados da sociedade,
que aqui surgem personificados na figura da viscondessa. Apenas para clarear um
pouco os contornos na gravura, falamos num sentido de apregoar algo de nobre,
louvável, humano e até cristão e, na prática, realizar actos totalmente
divergentes de tais sentidos.
Sob um ponto
de vista distinto, o conto “O retrato dos pais” também se poderá inserir nesta
intenção de crítica, uma vez que confronta o comum choque entre gerações e, de
modo mais subtil, denuncia os comportamentos censuráveis de um filho que parte
para o Brasil em busca de fortuna. Conseguindo-o, além da família que constitui,
acaba por nutrir vergonha de seus pais e consequentemente do berço que o
acarinhou, simplesmente por agora, em adulto, a sua condição social ser
diferente da de outrora. Embora escrito no século XIX, é um conto simples que
ainda encerra uma actualidade impressionante.
Poderemos
ainda frisar outros, como “O Anacreonte de Candemil” ou “Vinhos e aguardentes”,
contos que apenas oferecem a história dos seus personagens principais,
existindo assim como um retrato fiel de figuras idas e castiças, especialmente
nos ambientes em que são colocadas.
Mas não se
julgue que tal é feito somente numa atmosfera positiva, pois o segundo conto
antes anunciado apresenta um relato nu e cru de um caso de violência doméstica
levado ao extremo, onde o alcoolismo toma um papel preponderante no desenrolar
dos eventos. Infelizmente, acaba apenas por ser um caso de denúncia no seio de
milhares que, é bem sabido, assolavam em silêncio aqueles tempos mais remotos (e
os de agora igualmente, acrescente-se sem qualquer reserva – onde talvez só a
indiferença seja menor.)
No decorrer
da obra, parece-nos agora pertinente partilhá-lo, vai-se dando forma sólida à
sensação de que os relatos feitos contos curtos são reais ou, pelo menos, têm
um fundo verídico. O autor não o esclarece, embora se adicione a ele mesmo
praticamente em todas as histórias, tanto como figura presente e interventiva
ou como narrador de histórias que na infância escutara, o que faz com que certos
textos adquiram assim um face dupla de conto-crónica, dotados duma ruralidade
encantadora (em termos de cenário e vivência retratada, esclareça-se.)
Convenhamos
que muitos autores inserem-se nas suas histórias e ainda assim permanecem na
dimensão da fantasia. Contudo, há uma diferença notória: o traço sincero e
honesto em que todos se manifestam deixa a quase certeza de serem histórias
reais com pessoas reais, mesmo que os nomes tenham sido alterados, o que não é
certo. Ora isto acrescenta à obra uma dimensão humana magnífica, que fomenta um
fascínio deveras reverberante, além do extraordinário prazer que se faz sentir
ao sermos convidados para uma realidade passada, com gentes e eventos que em
algum momento foram reais. Em suma, um magnífico testemunho dum tempo perdido.
São gentes
comuns em cenário rural, é um facto, algures entre a região do Minho, no
noroeste de Portugal, e do Alto Douro, a norte da cidade do Porto; gentes que
numa brevíssima e quase anónima página duma história que os transcende tiveram
o seu lugar por direito existencial, amando e sofrendo como qualquer um de nós.
É por isso
natural que cada leitor, a seu modo, se sinta em dados momentos tão perto de
cada personagem. Pois uma das grandes maravilhas desta breve e singular obra,
cintilante de tão simples e concreta, é a sensação, como prelúdio às histórias,
de estar a percorrer as estreias ruelas duma aldeia perdida em qualquer vale ou
monte, e de pronto aceitar o convite para entrar na taberna local, tomar um
velho mocho como repouso e, de taça cheia pelo melhor vinho da terra, o dos
simples, pois claro, apurar bem o ouvido para com toda a propriedade escutar os
contos que, graças ao esforço do relatador, o tempo ainda não pôde apagar.
“O abade
abeirou-se lentamente do enfêrmo, com o cibório nas mãos. Preparou-o
solenemente para o trespasse.
Quando lhe
ungia os lábios com os santos óleos, murmurando as palavras do ritual (…), o
Ambrósio fincou os punhos na enxêrga, ergueu-se com esfôrço e ânsia, volveu os
olhos em tôrno do leito, como quem desperta de um sonho, e inclinando-se para o
abade, preguntou-lhe com voz débil e convulsa:
- É vinho?
E descaiu
lentamente para trás, com um sorriso de bem-aventurado a radiar-lhe a fronte –
como um justo que morre na esperança de encontrar na vida de além-túmulo as
adegas bem providas de Amarante! ”
(in “O
Anacreonte de Candemil”, transcrito
na grafia original da edição de 1940.)
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