As sementes da infância e a colheita amarga da velhice: a “Sinfonia em branco”, de Adriana Lisboa
Por Flaviana
Silva
O vazio é o irmão
do silêncio. Ambos escondem as palavras não pronunciadas e abrigam em si, por
mais estranho que pareça ser, um universo de lacunas. A ausência da cor
registra a sua marca na existência, é semelhante aos traumas que não receberam
a atenção da sociedade hipócrita ao longo dos anos. É preciso considerar que Sinfonia
em branco da autora brasileira Adriana Lisboa é um romance de sentidos
cortantes e poéticos.
A obra foi
publicada em 2001 e foi reconhecida com o Prêmio José Saramago no mesmo ano;
para os amantes da prosa poética, o romance é uma viagem singular e
satisfatória. O enredo é construído por um narrador onisciente que em sua
autoridade, expressa uma descrição minimalista, destacando alguns detalhes e
ocultando outros. A história das irmãs
(Clarice e Maria Inês) é guiada por uma sequência de transgressões que marcam a
vida das personagens, em um tempo narrativo psicológico que é composto por uma
dança constante entre o passado e o presente, reunimos o sentido principal do
enredo: a perda das sementes da infância.
Clarice é uma moça feliz que brinca com os
amigos durante o dia e chora escondida quando é acariciada pelos ventos frios
da noite. Diante das situações simples do cotidiano, o leitor é guiado por um
sentimento de familiaridade com a narrativa, entretanto, em momentos
inesperados é possível mergulhar em uma sensibilidade angustiante que emerge
das descrições. Maria Inês, a irmã mais nova, é vítima do próprio silêncio e
guarda o segredo que “une e separa” as duas jovens: um abuso sexual que mudaria
todo o curso de suas vidas.
A linguagem
misteriosa traduz a dualidade que existe no desenvolvimento da narrativa. O
próprio título do romance faz referência a vários significados interessantes.
No que se refere a imagem da mulher na obra, temos uma relação direta com a
tela do pintor norte-americano James Abbott McNeill Whistler produzida em 1862;
esta, composta por um estilo realista, foi inspirada na imagem da amante do
pintor. Apesar dessa relação amorosa, a jovem é apresentada com um vestido
branco, como símbolo de pureza absoluta.
No romance Sinfonia
em branco, Maria Inês é descrita pelo olhar de seu amante Tomás, como a
mulher do quadro de Whistler. Considerando que a literatura mantém diálogo
constante com as outras artes, nota-se que essa referência é digna de análise.
Torna-se visível uma mistura de indefinição que transparece na própria relação
dos personagens. Tomás é um pintor solitário que sofre com a poesia da visão:
“Tinha vinte
anos e pelo menos vinte escolhas diante de si, por isso sorriu ao divisar
aquela jovem na sacada de um apartamento no prédio mais próximo. Ela vestia
branco e tinha os cabelos soltos, como se fosse um milagre. Cabelos compridos,
grossos e escuros, ondulados demais. Não podia ser diferente: a Garota de
Branco. A sinfonia em branco de
Whisther. A poesia da visão.” (p. 42)
O branco na
narrativa também é a representação da ausência da explicação sobre os fatos,
talvez seja nesse ponto essencial que reside a beleza da obra. A imagem da
mulher sendo apresentada de uma maneira irônica é a significação do âmago de todos
os sentidos, a perda da inocência tem uma aproximação com a natureza que é
apresentada de forma bastante sútil. É possível afirmar que as personagens são
mulheres fortes, construídas pela dor e “pintadas” pela falsa ausência da
melancolia.
A sinfonia
construída pela escrita delicada e poética de Adriana Lisboa se refere aos
conflitos sociais que foram escondidos e silenciados. Através de alguns
recursos como a repetição proposital de alguns trechos e o uso constante de
metáforas, o narrador compõe “uma canção” sobre união e distância, medos e pequenas
alegrias disfarçadas pela dor. É uma história que perturba pelos seus
significados e satisfaz pelo mesmo motivo.
O abuso sexual que dilacera o corpo de Clarice
e a mente (das) personagens também agride o leitor; a falta da cronologia na
narrativa não impede as devidas sensações. Talvez seja por isso que ao concluir
a leitura, as palavras da legente são como pássaros que perdem suas asas e se
escondem. Ao perder o fôlego, percebemos o sentido do desfecho.
Inesperadamente, sem contornos, descobrimos o porquê de as sementes de cipreste
estarem jogadas no corredor escuro da casa de Clarice e Maria Inês, reunimos os
sentidos e temos a certeza que estamos diante de uma sinfonia de silêncios.
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