A promessa, de Friedrich Dürrenmatt

Por Pedro Fernandes




Algumas das expressões romanescas adquiriram um modelo repetido até a exaustão. É o caso do romance policial. Desde a publicação, em 1841, de The murders in the rue Morgue, de Edgar Allan Poe, que uma sorte de características tem servido à imaginação criativa de escritores de diferentes culturas: a cena casual de um crime, uma investigação em que todos são suspeitos e por vezes o criminoso é o menos provável, um detetive vestido dos princípios racionais capaz de desvendar o mistério com um simples ou um complexo exercício de estratagemas. A variedade de obras literárias ou de escritores que lidam com esses elementos levaram os estudiosos a compreenderem pelo menos duas categorias constitutivas do que podemos chamar por um modelo de romance: as histórias de detetives e as histórias policiais. As duas têm sua raiz na literatura criminal anglo-saxônica e se distinguem pela presença diferenciada do herói: numa, é um detetive particular e, noutra, um ou um grupo de policiais. Mas, em linhas gerais, são narrativas que partem de uma situação de desordem para alcançar um retorno à ordem e primam pelo senso universal de justiça, além de ressaltarem, entre um ponto e outro da ação, a multiplicidade de lugares possíveis da condição psíquica humana.

Trabalhar com estruturas mais ou menos sedimentadas pode parecer confortável, uma vez que resta ao escritor apenas a vivacidade da imaginação de conteúdo. Mas isso só à primeira vista; numa ocasião quando o traço inovador se constitui em elemento distintivo das expressões artístico-literárias, buscar uma alternativa não-usual no interior de uma mesma ordem se mostra muito mais problemática do que com ordens abertas. Essa é, inclusive, a primeira reflexão proposta em A promessa, de Friedrich Dürrenmatt, novela que reanima a presença do escritor suíço-alemão entre os leitores brasileiros. A obra foi publicada originalmente em 1958 e chegou até nós seguida de outro título, A pane, pela Estação Liberdade. Logo na abertura da narrativa, o narrador é confrontado com um tal doutor H.; o homem, um ex-comandante de polícia, questiona a ordem repetível das histórias policiais, sobretudo pelo desenvolvimento lógico-racional construído pelos escritores. Interessados quase exclusivamente pela verossimilhança, isto é, o que aqui poderíamos designar como a verdade da ficção, tratam sempre de encontrar, mesmo que pelos limites mais adversos, o princípio reinante da ordem. Quer dizer, a literatura policial estaria, presa a essa condição impassível da própria forma numa redoma que a coloca à parte da realidade exterior ao texto, uma vez que essa se rege muito mais pelos princípios do acaso que os da razão lógica.

A constatação do doutor H. não é gratuita. E não encerra por aí. Trata-se de uma observação que ajuda a contextualizar a história que passará a contar para esse escritor de narrativas policiais. No seu tempo de corporação conviveu com um polícia que, diante o desespero de um casal pela morte de sua única filha, renovou continuamente sua promessa de encontrar o responsável pelo crime. A destreza de Friedrich Dürrenmatt é tanta que o leitor menos atento – e porque educado numa escola que tem a narrativa policial como uma estrutura dotada de certas características reconhecíveis – logo deixará de lado a observação inicial do narrador para se aventurar na sorte de linhas possíveis para o caso narrado. Isto é, não deixará de acreditar e suspeitar do possível assassino, o caixeiro-viajante Von Gunten, como pela maneira como se desenvolve a obsessão desse polícia tornado em espécie de detetive depois de recusar uma nobre oferta para um projeto de anticrime na Jordânia; o mesmo leitor passa então a se estabelecer pelo princípio de que todos são suspeitos, desde as pessoas mais próximas à Gritle Moser, a garotinha assassinada, aquelas simples transeuntes pela narrativa.



Não há grandes volteios, nem exercícios mirabolantes que conduzam a narrativa para o fim esperado: o da solução do crime. Sobre esse desfecho só guardemos a informação de que as vias alcançadas diferem de todas as possibilidades que engendramos das histórias policiais e mesmo das possibilidades que possamos inventar a partir das obsessões de Matthäi, a personagem central dessa história narrada ao narrador de A promessa. Isso porque o escritor parece subverter o princípio básico da narrativa policial: a lógica pelo acaso, prefigurando a possibilidade ofertada pelo doutor H. O termo que dá título à novela tem papel fundamental nisso tudo uma vez que a resposta para o crime é produto de uma revelação. É possível dizer que os episódios mais marcantes da narrativa estão alinhavados pelo que essa palavra designa, seja o laço estabelecido por Matthäi com os pais de Gritle, seja o laço estabelecido desse policial para com ele próprio, dele para com o povo do vilarejo de Moosbach que a princípio quer esfolar Von Gunten reimprimindo um princípio de barbárie sem o julgamento, seja o laço da senhora Schrott com o assassino, seja ainda o dela no leito de morte para com o padre.

Friedrich Dürrenmatt é, aliás, bastante fiel ao fio temporal constitutivo do narrado. O assassinato de Gritle Moser é parte de um conjunto de três crimes idênticos realizados num intervalo de uma década, mas a história é, não esqueçamos narrada, no curto intervalo de uma viagem entre Chur e Zurique. Isto é, estamos outra vez na não menos convencional história dentro de uma história. A primeira não tem qualquer relação com a ideia de uma narrativa policial, porque estamos apenas diante de um narrador que reconstrói sua viagem a esse povoado do interior da Suíça, onde foi para uma palestra sobre o romance policial. A segunda é a história do ex-comandante H. que exerce não apenas o papel de dar voz ao episódio principal da novela como funciona como a figura que introduz um debate sobre a própria estrutura da expressão romanesca aqui em questão. O proposital desfazimento dos princípios estruturais do policialesco nos leva a concordar que o escritor produz uma antinovela policial, seu grande trunfo, aliás. A promessa pode muito bem ser lida como a palestra que este narrador poderia ter realizado, mas, afeito aos princípios comuns do que seja uma narrativa policial não realizou. A constatação não é gratuita, uma vez que podemos compreender a raiz anti do termo antinovela não propriamente como uma negação da novela, mas sua transformação numa espécie de ensaio acerca da arte de narrar e a problematização exemplar das crime stories.

A promessa também não é puro experimentalismo. Friedrich Dürrenmatt constrói um objeto ricamente envolvido pelas cores do imaginário popular e literário europeu, o que faz dessa novela um terreno pantanoso e fértil às investigações sobre determinados temas e simbologias, alguns propositalmente colocados e outros manifestados de maneira sub-reptícia. Aí encontramos, dentre outras, questões que envolvem a noção de justiça e de culpa, a obediência a uma ordem, a ética e os valores de conduta profissional e o tema da sedução e do abuso sexual de menores. Dos ricos diálogos sugeridos pela narrativa com outros textos literários o mais evidente é o estabelecido com as histórias infantis, sobretudo o conto “Chapeuzinho Vermelho”. A situação das meninas abusadas e mortas pelo assassino, por exemplo, recobram os tons da menina de capuz vermelho devorada pelo lobo: Gritle Moser veste-se de vermelho, cor comum entre as meninas do interior de Mägendorf, e todas as quartas e sábados vai ao vilarejo vizinho de Fehren visitar a avó. No desenho que realiza na escola, a única pista que servirá às obsessões de Matthäi, imagem que transita entre o imaginário infantil e a realidade da criança, a menina representa o abusador como um monstro gigante que a presenteia com pequenos porcos-espinhos. As coincidências não findam apenas no tom: a reiteração da cor vermelha, por exemplo, faz com que sua evidência se torne numa pista e ao mesmo tempo carrega as mesmas informações do campo semântico original do conto popular, tais como a premonição da perda da inocência e da violência.

A riqueza de A promessa reside na maneira como o narrador se detém não na ação, caso também recorrente nas narrativas policiais, e sim na condução do acaso. Quer dizer, não estamos diante de uma investigação, quase sempre beneficiada por uma pequena marca, hipótese ou suspeita, mas somos levados a mergulhar no interior de um dilema do homem por redescobrir outras estratégias de alcançar a compreensão sobre a realidade a partir das vias quase inacessíveis do simbólico. Nesse ínterim, o investigador precisa substituir a razão pela intuição, a precisão do cálculo pelas possibilidades de resultados oferecidas e estar preparado para o pior dos destinos: o de não desvendar a verdade que procura. Substitui-se, por fim, a própria noção do homem enquanto potência capaz de justificar sua realidade como um modelo fundado em verdades incontestes pelo homem entregue às potências do acaso, estas que são as que regem toda a existência. Friedrich Dürrenmatt aproxima a narrativa policial do lugar que qualquer obra de arte não pode deixar: sua própria natureza e as múltiplas cores que dão tom à vida corriqueira a fim de explorar nela o que de monstruoso protegemos ou como estamos fadados ao fracasso de não nos conhecermos integralmente, por mais que inventemos domínios e estratégias.

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