Selma Lagerlöf e Astrid Lindgren. Que todos saibam seus nomes


Por David Gumbarte

Selma Lagerlöf


As vidas dos grandes escritores estão marcadas por situações corriqueiras. Uma aula de ginástica, arrumar-se para um primeiro encontro, pagar contas, a dor pela perda, uma infância ao sol, lama nos sapatos. Numa entrevista publicada no jornal Clarín em 2011, o escritor brasileiro João Gilberto Noll defendia que “a literatura busca transcender a mediocridade do cotidiano. A literatura é uma forma de resistir”. Como na literatura, Selma Lagerlöf e Astrid Lindgren foram um tanto diferentes e tiveram suas vidas comuns salpicadas de acontecimentos extraordinários.

Selma Lagerlöf publicou quase quarenta títulos, entre romances e antologias de contos, de temática muito diversa. Sua obra mais conhecida é A viagem maravilhosa de Nils Holgersson através da Suécia (tradução portuguesa), traduzida para mais de sessenta idiomas. A escritora ostentou a honra de ser a escritora sueca mais traduzida até o aparecimento de Astrid Lindgren com Pippi Lånstrump (Píppi Meialonga); esta obra foi publicada em mais de setenta línguas. Astrid escreveu cerca de cinquenta obras, entre romances, livros de contos e algumas raridades; a maior parte delas de temática infantil e juvenil. E (agora é preciso respeitar) vendeu mais de cento e sessenta e cinco milhões de livros em todo o mundo.

Estamos numa fria Estocolmo de fins do ano de 1939. Astrid leu, por encomenda, Lendas de Jesus Cristo de Selma Lagerlöf e está escrevendo uma resenha para o jornal Stockholms-Tidningen. Neva forte. Vê-se pelas janelas. Sua filha Karin chora e Lasse, a mais velha, cuida dela enquanto a mãe revisa o texto que precisa entregar na primeira hora do dia seguinte. Dias depois de publicar a resenha conversa com Börje Brilioth, o chefe de redação, para que a coloque em contato com Selma. Convidará a escritora para uma entrevista. Ela aceita o convite com uma breve carta em que também diz se interessar pelos textos de Astrid. Decidem se encontrar em abril do ano seguinte no café Sundbergs Konditori de Estocolmo. Astrid só leu alguns de seus livros e está com outro título a mais para preparar a entrevista. Lê com vivo interesse O anel do general e volta a sentir uma perplexidade semelhante a que experimentou por aquela linguagem precisa, aquele estilo que transitava entre o realismo e a fantasia, quando anos antes leu Jerusalém. Mas, o encontro no Sundbergs não acontece. Selma morre em março de 1940 em sua residência natal de Mårbacka, casa que havia recuperado graças ao Prêmio Nobel de Literatura (1909). Ali passou seus últimos dias com sua irmã e com Sophie Elkan, sua amante e confidente, companheira de vida. O Nobel de Selma foi o primeiro outorgado a uma mulher e tardariam dezessete anos até que outra escritora viesse repetir o feito: Grazia Deledda. 

Passam-se os anos. A guerra ocupa tudo, inclusive um país como a Suécia, que faz malabarismos impossíveis para se manter neutra no conflito. Astrid escreve seu Diário de Guerra e trabalha secretamente para a Agência Especial de Inteligência sueca. Enquanto isso escreve, persevera e apresenta seus manuscritos a editoras e certames literários até que, em 1945, depois de ganhar o primeiro prêmio do concurso promovido pela casa editorial Rabén & Sjörgren consegue publicar Pippi Lånstrump. Na verdade, esta é a segunda obra publicada (no ano anterior a mesma editora havia apresentado Cartas de Brita-Mari), embora nada, desde então, se igualaria a Pippi.

Astrid viaja aos Estados Unidos para escrever uma série de artigos de viagem para a revista Damernas Värld. No país, presencia, dentre muitas outras coisas, uma sociedade doente pela discriminação racial. “A good negro is a negro that is five feet under ground” [Um negro bom é um negro que está sob cinco pés de terra], diz um taxista a Astrid numa viagem pelas ruas do Bairro Francês de Nova Orleans. Escreve sobre isso e toma anotações que servirão para publicar Kate in America anos mais tarde. Esta viagem acontece em 1948 e Astrid aproveita para percorrer a Costa Leste. Já em Nova York, outra personagem maravilhosa se junta neste relato. Também nascida na Suécia, Greta Lovisa Gustafsson, interpretou um papel secundário na adaptação cinematográfica do primeiro romance de Selma Lagerlöf, A saga de Gösta Berling. Quando quinze anos mais tarde deixou o cinema tinha apenas trinta e seis anos e havia se convertido numa lenda: Greta Garbo. Imagino Astrid entrando numa sala de cinema da 58, ao lado da Quinta Avenida, para ver uma refilmagem de Gösta Berling’s Saga. Algo mais que três horas de cinema mudo que Astrid passa contemplando as paisagens da província de Värmland. Tornam a se encontrar nossas protagonistas. Desta vez com o mito Garbo.

Em muitas histórias de Selma e Astrid encontra-se um vínculo com sua própria infância em que as relações entre pais e filhos se estabelecem numa fronteira entre a realidade e a imaginação. Selma constrói seus textos sem deixar de olhar para trás (o passado mais íntimo e o passado mais corriqueiro); enquanto isso, Astrid escreve suas histórias transmutando sua maneira de ver as coisas a partir dos olhos de uma criança. O discurso de Selma ao receber o Prêmio Nobel de Literatura traça uma emocionante conversa com seu pai (que morreu quando ela era jovem), como meio narrativo do qual se utiliza para agradecer às pessoas e recordar as situações de seu passado que contribuíram para ser escritora e que, por extensão, lhe oportunizou o recebimento do galardão. Quando, em 1958, Astrid recebe o Prêmio Hans Christian Andersen (considerado o Nobel para a literatura infantil) seu discurso de recepção termina com estas palavras: “Um menino sozinho com seu livro cria, em algum lugar secreto de seu espírito, suas próprias imagens que vão muito além de qualquer outra coisa. O ser humano deve possuir estas imagens. O dia em que a imaginação das crianças não possa continuar a produzi-las, será um dia em que a humanidade estará mais pobre. Todas as grandes coisas que acontecem no mundo acontecem primeiro na imaginação de alguém, e o amanhã depende em grande medida do poder da imaginação dos que hoje estão aprendendo a ler. Esta é a razão porque as crianças devem ter livros.”

Astrid Lindgren


Astrid recebe uma carta da Svensk Biblioteksförening. Abre com certa inquietude; a Associação Sueca de Livrarias concede-lhe o Nils Holgersson-Plaketten pelo livro de contos Nils Karlsson Pyssling. Astrid relembra emocionada a oportunidade malograda de entrevistar Selma; passaram-se dez anos de sua morte e este é o primeiro prêmio concedido em homenagem à escritora.

Embora os livros de aventura de Píppi sejam suas obras mais conhecidas no mundo, Astrid escreve entre os anos cinquenta e setenta cinco romances que me atreveria a considerá-los seu ponto alto na forma narrativa: Mio, meu filho; A ilha do corvo; Ronja, filha de ladrão; Os irmãos coração de leão; e Rasmus e o vagabundo, obra de quando recebe o Prêmio Hans Christian Andersen em 1958.

Astrid já se tornou uma personagem de grande relevância na vida cultural e política da Suécia. É fevereiro de 1976 e o escritório de seu apartamento está iluminado por raios de um sol cada vez mais alto que faz brilhar os amieiros de Dalagatan. Astrid está escrevendo um texto irônico, mas faz isso com algum peso. É Pomperipossa no mundo do dinheiro. Trata-se de uma história satírica que pretende denunciar que, segundo a lei estatal de impostos, alguns profissionais autônomos entre os quais se enquadra a própria escritora terminam pagando um uma margem de mais de 100% dos valores comuns. O escrito é publicado em março no jornal Expressen de Estocolmo e isso gera uma polêmica tremenda com os do seu partido político, o Socialdemocrata Sueco. Ela nunca deixará de ser socialdemocrata, mas estes perdem as eleições pela primeira vez em mais de quarenta anos.

Já em pleno anos oitenta, agora sim, por uma questão de geração me sinto legitimado a introduzir uma criança nesta história. Porque as crianças, mesmo sem ser as protagonistas, nunca deixaram de estar presentes. Chamarei essa figura de Lennart, e para ele Astrid e Selma são essas senhoras que escreveram as histórias que tanto desfruta lendo. Histórias que beberam (isso Lennart ainda não sabe) de Dumas, Andersen, Tegnér, dos Irmãos Grimm. A criança dita para seu pai cartas para Astrid que logo serão deixadas na grande caixa-postal vermelha que existe em frente à sua casa. Cartas que ela responde amavelmente, mas só uma vez ou outra. Numa dessas missivas, seu pai inclui o primeiro verso íntimo que escutou de seu filho: “Papai, quero me balançar até que venha o verão”. Seu pai também lê às escondidas Ronja e Mio, meu filho quando Lennart está ainda muito pequeno para lê-los. Lê algumas passagens com lágrimas nos olhos. Espera alguns anos, até que seu filho cresça, e lê para ele A viagem maravilhosa de Nils Holgersson (pai e filho viajam junto a Nils de sul a norte até chegar à aldeia lapona de Kiruna, e de norte a sul, de volta para casa, montado num ganso doméstico chamado Martin) e Os irmãos coração de leão (uma fábula dolorosa, difícil, belíssima). Lennart cresce, e pelas tardes frequenta a magnífica Biblioteca Pública de Estocolmo. Ali busca livros em suas estantes circulares, da mesma maneira que com toda certeza Selma e Astrid também fizeram. Em Estocolmo, a cidade do capítulo de 37 de Nils Holgersson, há um lugar chamado Junibacken, que Lennart visita para voltar às histórias de Astrid, Selma, ou mesmo Stevenson e do contemporâneo Sven Nordqvist. Não se trata de uma visita a um lugar qualquer; é abrir o um livro e entrar nele, abrir todos eles, voltar a ver com os olhos de criança, não querer sair daí. Passa o tempo e Lennart vai estudar em Uppsala. Uma noite de junho lê de uma sentada O imperador de Portugal deitado na grama do Jardim Botânico da Universidade.

Esse relato, enfim, trata de duas personagens fundamentais na sociedade sueca do século XX. Ambas foram feministas militantes. Mulheres com vozes independentes e de elevado vigor intelectual. Selma Lagerlöf se coloca na luta pela paz, pela aprovação do sufrágio feminino na Suécia em 1919 e ajuda de maneira ativa a alguns judeus fugirem da Alemanha em finais dos anos trinta. Uma delas é sua grande amiga, a escritora alemã Nelly Sachs, galardoada com o Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1966. Astrid, por sua vez, é uma incansável ativista pelos direitos das crianças, contra a violência e a discriminação racial.

Suspeito que Selma e Astrid nunca se conheceram pessoalmente (já que aquela entrevista de 1940 não aconteceu) e talvez só possamos uni-las com textos como este ou através da fantasia de uma criança (agora já falo de outra criança, porque Lennart já deve ser um crescido leitor de revistas culturais) que caminha por Odengatan olhando para o céu através dos galhos secos dos limoeiros. É o começo da primavera e se imagina o verão que virá recordando Ronja, “será uma confusão de amanheceres, e de arbustos de mirtilo cheios de frutas, e das sardas que você vê em seus braços, e da luz da lua sobre o rio à noite, e dos céus estrelados, e da floresta no calor meio-dia quando o sol brilha nos pinheiros”. Leva notas de vinte coroas no bolso com os rostos de Selma Lagerlöf e Astrid Lindgren no verso. Duas mulheres ilustres que se olham frente a frente. Sorriem com uns olhos que viram o mundo como poucos conseguiram olhar.

Delas nos restam suas personagens, suas histórias, suas militâncias feministas, Ronja jogando no bosque com Mattis, Píppi montando no cavalo Lilla Gubben, seu ativismo contra a violência, um asteroide de vinte quilômetros de diâmetro chamado 3204 Lindgren, um Nobel de Literatura, um menino que cruza a geografia sueca montado num ganso. Delas nos resta muito mais; talvez um bom pedaço de nossa própria imaginação.

Ligações a esta post:

* Este texto é uma tradução de “Selma Lagerlöff y Astrid Lindgren. Que todos sepan sus nombres”, publicado aqui em Jot Down.

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