Sagarana: meandros de uma estreia
Por Guilherme
Mazzafera
Mais de sete decênios após sua primeira edição – ao que se pode acrescentar quase uma década
de gestação subterrânea –, Sagarana volta às livrarias em novo projeto
editorial pelas mãos da editora Global, que agora detém os direitos de toda a
obra de João Guimarães Rosa, com exceção de seu único romance, Grande Sertão:
Veredas. Este, cujos direitos pertencem à família Tess, os herdeiros de Aracy
de Carvalho Guimarães Rosa, segunda esposa do escritor, está sob a guarda da
Companhia das Letras, que publicou uma belíssima edição do livro que já tive a
oportunidade de resenhar aqui no Letras.
Após
diversos anos sob a tutela da Nova Fronteira, o Sagarana da Global destaca-se
de imediato por sua capa, que recusa a iconografia tradicional no boi,
substituindo-a por uma bela fotografia de Araquém Alcântara, feita em 2012 no
município mineiro de Jaíba, na qual vemos uma árvore ramosa e quase sem folhas
contra um céu azul profundo. Essa
atualização das paisagens rosianas, que fala de sua pervivência em um mundo já
por demais demudado, não deixa constituir um belo convite à (re)leitura da obra
de estreia do autor mineiro que, em 2019, já acumula 73 edições.
Tomando por
base a décima edição, de 1968, ano seguinte à morte do autor, temos em mãos o Sagarana
mais próximo de seus últimos desejos. Vale lembrar que, após a publicação
original, Rosa continuou alterando diversas minudências ao longo das edições
subsequentes, o que faz de tal livro de estreia uma espécie de sombra inacabada
que paira sobre os variados momentos de escritura de sua obra.
Se é com
algum pesar que lamento a ausência do maravilhoso “A arte de contar em
Sagarana”, do sempre imprescindível Paulo Rónai, que figurava nas edições
anteriores, a escolha dos paratextos não poderia ser mais contundente. O breve
e inédito texto de abertura, assinado por Walnice Nogueira Galvão, destaca como
o volume circunscreveu o espaço de eleição de seu autor, espaço que “dá margem
não só a um verismo aderente à empiria, mas também a prospecções metafísicas”.
Além disso, Galvão aponta para o liame íntimo entre a construção de uma linguagem
peculiar, baseada na reelaboração da oralidade, e de um narrador sertanejo, “às
vezes mas nem sempre identificado”, que a vozeia.
O grande
trunfo da edição, no entanto, talvez seja a adição da iluminadora resenha de
Antonio Candido, disposta ao final do livro (seguida por uma breve cronologia
de vida e obra rosianas). Trata-se de um feito ainda mais notável após o
imbróglio que impugnou a inclusão de “O homem dos avessos” ao compêndio crítico
elaborado pela Companhia das Letras em sua edição de Grande Sertão: Veredas.
Candido, como de costume, é de uma lucidez impressionante, mesmo escrevendo no
calor da obra sobre livro tão singular. Para o crítico, ao contrário de uma
série de malogros regionalistas anteriores, o livro de Rosa não traz meramente
o sabor de certa região, mas acaba por literariamente construí-la, valendo-se
de “elementos caçados analiticamente e, depois, sintetizados na ecologia
belíssima de suas histórias”. O centro do volume, todavia, estaria localizado
na “paixão de contar”, lançando mão de todos os meios necessários, intercalando
estórias e afiando a retórica para transportar o leitor à “vida mais intensa da
arte”, traslado tornado possível por um “soberano desdém das convenções”. Por
fim, apesar de não constituir “bloco unido” e de seu autor não se ver
totalmente livre de certo “pendor verboso”, Sagarana realiza, para Candido, o
feito de compor em “termos brasileiros certas experiências de uma altura
encontrada geralmente apenas nas grandes literaturas estrangeiras”.
Longe de arriscar
qualquer interpretação inovadora em obra já tão devassada, minha intenção nesta
resenha é apenas delinear algumas balizas críticas para uma melhor fruição da
obra dentro de um contexto mais amplo da produção do autor. Vamos a elas.
Trabalho de parto
Como elucida
o estudo de Maria Célia Leonel, a composição de Sagarana está intimamente
ligada à gênese do livro de poemas Magma (1936), premiado pela Academia
Brasileira de Letras em 1937 e só publicado sessenta anos depois (e contra a
vontade expressa do autor)1. A partilha de temas e imagens, e uma
espécie de reescritura em prosa que tem por mira o poético – e que, em verso,
tende ao gesto narrativo, como se nota no belo “Boiada”, que prenuncia “O
burrinho pedrês” ou mesmo em “Reportagem”, que contém em germe o possível
núcleo de “Sorôco, sua mãe, sua filha” – parecem irmanar estas duas estreias
rosianas, em verso e prosa, e que, no segundo caso, gradativamente adquire, no
dizer de Oswaldino Marques, a dimensão do prosoema2.
A gestação
de Sagarana, no entanto, foi bastante longa, arrastando-se por 8 anos e sofrendo uma importante “derrota” que lhe
permitiu encontrar sua verdadeira via. “O livro foi escrito — quase todo na
cama, a lápis, em cadernos de 100 folhas — em sete meses; sete meses de
exaltação, de deslumbramento”, diz Rosa em uma famosa carta-confessional
encomendada pelo bibliófilo João Condé também recolhida nesta nova edição. O
resultado desse deslumbramento, intitulado então Contos e assinado por certo
Viator, foi remetido ao Concurso Humberto de Campos da Livraria José Olympio de
1938. Após algumas calorosas escaramuças entre os julgadores, o livro foi
preterido por Maria Perigosa, de Luis Jardim. No entanto, para um ilustre
membro daquela comissão, o autor de tal obra não poderia ficar oculto:
“apesar dos
contos ruins e das várias passagens de mau gosto, esse desconhecido é alguém de
muita força e não tem o direito de esconder-se. [...] Viator é terrivelmente
desigual: ou o namoro idiota da professorinha ou a morte do compadre Joãozinho
Bem-Bem, página admirável. [...] As histórias a que me refiro são do Brasil
inteiro: por isso não podemos saber onde vive o autor, um sujeito que sabe o
que diz e observa tudo muito direito.”3
Com sua
argúcia costumeira, já neste texto de 1939 Graciliano Ramos aponta para dois
motes que delinearão a futura recepção da obra: a desigualdade entre seus
textos e o poder minucioso e vivo de observação mobilizado por seu autor.
Essencialmente um livro pré-Segunda Guerra, Sagarana precisaria aguardar o
retorno de Rosa das plagas alemãs (1938-42) e colombianas (1942-44) para
finalmente em 1945 ser “‘retrabalhado’, em cinco meses, cinco meses de reflexão
e de lucidez.”4. O corolário dessa lucidez foi o emagrecimento do
volume, que de doze passou às nove narrativas que conhecemos, além de um maior
apuro de linguagem, evidente, por exemplo, na expressividade dos títulos, como
a permuta de “opportunidade” (então grafada assim) pelo emblemático “hora e
vez” em seu conto mais famoso, e, no caso do título, a passagem do inócuo Contos
para Sezão (que então correspondia à narrativa “Sarapalha”) e, enfim, Sagarana,
neologismo que acopla a raiz germânica “saga” ao tupi “-rana”, gestando ‘uma espécie de
canto épico’. O próprio autor, em correspondência (infelizmente ainda inédita)
com sua tradutora norte-americana Harriet de Onís, dá notícia de uma busca
incessante pelo cerne expressivo que, em guerra declarada contra o lugar-comum,
recupera uma dimensão autônoma e não fetichizada do verbo:
“[...] a
eficácia do título SAGARANA, totalmente novo, para qualquer leitor, e ainda não
explicado, virgem de visão e de entendimento. Não é? Por isto, é que eu
quereria que esse título fosse conservado, na tradução em inglês, e em todas as
outras. [...] Diz-se que ‘não é sem motivo (não é inutilmente) que as palavras
têm CANTO e PLUMAGEM’ (As palavras são comparadas aos pássaros.) Isto é: além
do seu significado, transcendendo de sua simples função instrumental de
comunicação, as palavras valem, também, por seu ASPECTO VISUAL OBJETIVO e por
sua MAGIA DE SONORIDADE.”5
O período
sabático na gaveta e a atenção aos conselhos do mestre da geração literária
anterior certamente tiveram boa paga. Sagarana emagreceu, deitando fora os
contos criticados pelo autor alagoano (“Questões de família”, “Uma história de
amor” e “Bicho mau”, este último mais tarde retrabalhado e incluído no póstumo Estas
estórias) e ampliando a coesão de sua fatura, mas sua recepção geral, a
despeito do tom congraçador, não deixou de notar certo desnível entre as
narrativas – tendendo a valorizar os textos em terceira pessoa –, além de
entabular uma diatribe geralmente improfícua entre a forma narrativa adotada,
apontando para uma oscilação constante entre novelas e contos, por meio da qual
se fazia notar em Rosa certa vocação para o romance. Presente em todos os
grandes críticos de primeira hora (Álvaro Lins, Candido, Rónai etc.), o advento
do romance em Rosa adquire dimensões proféticas em uma segunda resenha de
Graciliano, que nesse momento já conhecia a verdadeira identidade de Viator e
mostrara-se bastante satisfeito com resultado obtido após anos de anonimato:
“Certamente ele fará um romance, romance que não lerei, pois, se for começado
agora, estará pronto em 1956, quando meus ossos começarem a esfarelar-se.”6
Se tivermos em mente que Graciliano falece em 1953 e que Grande Sertão: Veredas
é publicado em 1956, o dom profético do autor alagoano não só se concretiza
como assume ares limitantes: desde então, Rosa publicou um ciclo de novelas,
muitos contos breves e brevíssimos, alguns médio-longos, e fez uma tentativa
frustrada de romance (A fazedora de velas), mas romance, mesmo, só um.
Uma espécie
de canto épico
A publicação
de Sagarana infundiu um espírito novo a uma forma tida como gasta e decadente,
o conto regionalista. A escolha de tal forma faz ecoar sua presença na tradição
literária brasileira bem como suas limitações formais e ideológicas. A priori,
tal forma procura dar voz aos que não a tem, e tal anseio advém de uma fratura
específica na vida social: a inexistência ou impossibilidade do diálogo
interclasses7. Tendo suas origens no romantismo brasileiro, o conto
regionalista desempenha, a seu modo, uma função semelhante à do romance
enquanto instrumento de descoberta e interpretação do país, em formulação
famosa de Antonio Candido8. Seu entrave maior, contudo, estava em
sua “deficiência representativa”9 no que concerne à construção da
voz do personagem rústico.
A busca por
dar voz ao outro em Rosa não se faz, no entanto, por meio do aproveitamento
direto do material coletado in loco (coleta essa que se torna procedimento e
busca após a escritura de Sezão e da experiência alemã do escritor), mas sim
por meio de elaboração estética detalhada e parcimoniosa que produz
gradualmente uma linguagem singular que tem na oralidade seu ponto de partida,
mas que uma vez enriquecida pela “categoria artística” converte-se em algo que
“antes de ser uma linguagem real, é uma linguagem ideal”. Tal linguagem se faz
pela assimilação produtiva, respeitosa e simultaneamente recriadora do
“popular, regional, do folclore, da geografia fonética, da gramática rural, da
ortografia até”, incluindo o “discernimento ético” e “a consciência metafísica”
que configuram uma visão de mundo específica10. Neste sentido, é
válido lembrar que o resultado dessa elaboração é uma postura ético-estética
que almeja sempre o falar de dentro enquanto verdade composta esteticamente. Em
outras palavras, Rosa opera com uma espécie de emulatio que lhe permite
retratar em termos estéticos o sertanejo sem imitá-lo propriamente, i.e.,
“Imita o sertanejo – sim, mas atenção: imita-o, no seu processo, mas de modo
algum copia a maneira como ele fala; imita a atitude dele para com a língua,
coloca-se no lugar dele... mas como um ‘sertanejo-erudito’, um sertanejo que
soubesse a beleza da sua fala”11.
Em contos
como “O burrinho pedrês”, “Conversa de bois” e “A hora e vez de Augusto
Matraga”, é possível discernir uma aura de exemplaridade, um sentido épico que
se vale, não raro, de elementos da ordem da fábula e do mito, integrados ao
plano histórico representado. Nota-se ainda ao longo do volume a presença de um
gozo criador, uma entrega apaixonada às impressões do mundo e de suas criaturas
por parte dos narradores – e também do autor, que “não apenas conhece todas as
riquezas do vocabulário, não apenas coleciona palavras, mas se delicia com elas
numa alegria quase sensual” – que buscam preencher todos os espaços possíveis
com uma linguagem de inegável potencial artístico e que, assim, dão corpo à
“grande arte de narrar”12.
No que
concerne mais diretamente à caracterização dos narradores e à determinação dos
pontos de vista do primeiro volume, a recepção crítica tem coisas interessantes
a dizer. Para alguns, como Lauro Escorel, Álvaro Lins e Graciliano, Rosa já é
escritor formado, encontrando-se em plena posse de seus recursos e mostrando
hábil domínio de sua matéria e linguagem13. Para críticos como
Augusto Frederico Schmidt e Jorge Aia, por exemplo, os narradores de Sagarana já
falam de dentro da matéria, como parte de si mesmos, não havendo distanciamento
(inclusive linguístico) entre narrador e personagem14. Sérgio
Milliet, por outro lado, enfatiza a distância sempre existente entre o narrador
e seus objetos de representação e caracteriza aquele como um “artista” para
quem “o episódio e o enredo são pretextos para jogar com soluções literárias”15.
Paulo Rónai, por sua vez, destaca o modo imparcial de narrar como
característica essencial da arte narrativa rosiana no livro:
“Apesar de
uma ironia fina que oscila num ritmo tão pessoal entre o humor e o cinismo, o
autor mantém-se imparcial para com as suas criaturas. Tem-se a impressão, às
vezes, de que adota a respeito delas os sentimentos do ambiente e as admira ou
despreza de acordo com esses sentimentos, partilhando das simpatias e
antipatias dos comparsas. Na realidade, trata-se de mais um meio para criar
atmosfera. O escritor conserva-se algo distante das personagens, e, quando se
apressa em adotar algum julgamento cômodo sobre elas, não sabemos com certeza
se não o faz para se divertir à custa do leitor.”16
No entanto,
mesmo nas narrativas em terceira pessoa, que correspondem a dois terços da
obra, é possível divisar momentos de maior parcialidade do narrador, com
aproximações e recuos do ponto de vista, embora nos grandes planos essa
tendência à impessoalidade pareça predominar e se articular com o anseio dos
narradores pelo domínio do narrado. Tal inclinação, mais do que um simples
modulador de ambiência, parece ser um recurso técnico que deixa menos expostas
as fraturas culturais em tensão, velando alguns meneios do ponto de vista e
redirecionando-o, muitas vezes, para um aspecto mais amplo, totalizante e
portador de um sentido exemplar. Aliás, não deixa de ser interessante pensar
nas possíveis contradições entre o modo impessoal de narrar e a predominância
do personalismo familiar nas relações interpessoais presentes em Sagarana, incluindo,
é claro, aquelas nas quais os narradores em primeira pessoa tomam parte, o que,
infelizmente, foge ao escopo desta resenha17.
As
narrativas em primeira pessoa, apresentadas em sequência no livro, oferecem um
contraste interessante com o pleno domínio dos narradores em terceira pessoa.
De fato, “Minha gente”, “São Marcos” e “Corpo fechado” já articulam formalmente
– ainda que de modo tímido –, enquanto esboçam possíveis respostas, a
dificuldade de entendimento entre cultura erudita e popular, escrita e
oralidade, cidade e sertão, algo que não só ganhará mais corpo formal como
também se converterá em inquisição temática no segundo momento de escritura
rosiano, composto pelos mais de 20 textos publicados entre 1947 e 1954 e que
culmina nos livros de 1956. A adoção da perspectiva em primeira pessoa
evidencia de modo mais contundente a fragilidade de tais relações, expondo
certa oposição entre o desejo de integração dos narradores à cultura que tomam
por matéria e a dificuldade de penetrá-la a fundo enquanto não abandonam certos
preconceitos nem vocalizam tal dificuldade.
Dentre as
três narrativas em primeira pessoa, “São Marcos” me parece a mais interessante,
pois sua exploração dos atritos e possíveis diálogos entre cultura popular e
erudita resvala em consequências efetivamente materiais. Sua possível menor
eficácia estética, em relação ao livro como um todo, parece derivar – a despeito
dos negaceios do autor sobre qualquer concepção de um programa estético a
priori – do muito de “voulu”, do desejo ostensivo de dizer que o texto traz em
si enquanto conteúdo metalinguístico18. A propalada dificuldade de
adaptação da mente citadina ao modo de pensar do sertanejo ganha poderoso
aspecto visual por meio de uma disputa poética cravada em gomos de bambu entre
o narrador e Quem-será que estabelece, em certa medida, uma possibilidade
dialógica. Marcado de modo mais ostensivo em Sezão – uma espécie de regra geral
das reescrituras rosianas, que sempre suprimem e condensam o que estava
demasiado alongado e exposto –, a disputa poética acaba por operar o fenômeno
da influência mútua de que fala o narrador: “Céus! Agora é ‘Quem-será’ que me
está tocando influência! ... Nesta gradativa dupla troca, em breve chegaremos a
um nível, à identidade musácea...”19. De modo simbólico, o diálogo
poético entabulado por lápis e faca nos gomos é interrompido pela cegueira
repentina que acomete o narrador, que dela só se livrará após um acerto de
contas violento e cordial com o feiticeiro João Mangolô.
Há que se
notar que a constituição da influência recíproca entre narrador e Quem-será se
dá pela leitura do que o outro escreve, mas sem a presença física do seu
enunciador. Em “Com o vaqueiro Mariano” (1947-48; republicado, com alterações,
em formato de livro em 1952 e, por fim, incluído no póstumo Estas estórias), um
dos primeiros textos escritos após Sagarana, a comunicação entre o vaqueiro e o
narrador é mais conflituosa, beirando o interdito, atenuado, em certa medida,
pela realização corporal da matéria narrada pelo vaqueiro, que o performa.
Assim, em um novo momento de escritura, a presença física do personagem
citadino em situação de entrevista (um ver entre) com o personagem sertanejo
torna-se uma espécie de moldura recorrentemente utilizada em diversos graus
crescentes de apagamento da voz do personagem letrado, tornado, no limite, o ouvinte
silente da travessa riobaldiana.
Representando não apenas uma súmula, mas o cerne essencial do livro de
estreia – como se torna evidente no cuidado do escritor ao falar sobre o texto
com Harriet de Onís –, “São Marcos” encena, em alguma medida, a necessidade de
uma imersão física (e não apenas intelectual) na cultura que se deseja
trabalhar literariamente.
Ascetismo
violento
De modo
geral, os textos em terceira pessoa de Sagarana delineiam uma espécie de crença
positiva nas possibilidades de figuração e uma liberdade de manejo que permite
aos narradores intervir nos contos, inserir outros veios narrativos e
clarificar pontos em busca de assegurar um sentido, como evidenciado nesta
emblemática passagem: “E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio,
direitinho deste jeito, sem tirar nem por, sem mentira nenhuma, porque esta
aqui é uma estória inventada, não é um caso acontecido, não senhor.”
Na obra de
Rosa, a presença do mitológico, do épico e do maravilhoso parece indiciar uma
necessidade interna da própria narrativa e daquele que por meio dela se perfaz,
o narrador, cuja filiação remonta a uma teia imemorial de narradores, bricoleurs
e contadores de estórias que dão corpo à “grande arte de narrar”. Sua presença,
portanto, não procura apagar o plano histórico, mas conjuga-se a ele,
vislumbrando brechas em meio a uma aparente esterilidade da história. Assim, em
“A hora e vez de Augusto Matraga”, a passagem de Augusto Esteves para Augusto
Matraga não indica uma mera troca entre o historicamente enraizado (Esteves,
proprietário, mandonista, filho de coronel) para o mitologicamente simbólico
(Matraga, mártir, guerreiro, renunciador), mas põe as duas instâncias em
diálogo na medida em que é pelo exercício da violência, redirecionada para um
fim comunal – mas que fora utilizada por satisfação individual e demonstração
de poder, sendo este uso desregrado, em um contexto no qual existe uma ética de
sua utilização, uma espécie de hybris que ocasiona a hamartía (o erro trágico) que
precipita o protagonista em uma decadência física e moral – que Nhô Augusto se
converte em Augusto Matraga20.
Esta
narrativa exemplar – em forma e sentido –, “vitória íntima” e centro
gravitacional do volume, trabalha com elementos da velha ordem patriarcal,
corporificada no coronelismo mandonista (Major Consilva e o próprio Augusto
Esteves), e que estão intimamente ligados ao exercício da violência pessoal
presente nos exércitos particulares formados por homens livres dependentes dos
favores de certos proprietários – o bando de Joãozinho Bem-Bem, que só leva a
cabo “mortes legais”. Além disso, em um curioso contraste, o conto coloca Nhô
Augusto, ex-proprietário, a trabalhar de graça para os pretos que lhe salvaram
a vida, Mãe Quitéria e Pai Serapião, moradores do brejo, excluídos de tudo, e
possivelmente ex-escravos. É no convívio com estes pais adotivos que Nhô
Augusto vai incorporando elementos da religiosidade popular, o que fomenta seu
desejo de absolvição dos pecados expressa em seu desenredo particular de
conquistar o céu a porrete.
Veio vital
da ficção rosiana, o topos do controle da natureza humana (e do aprimoramento
do homem) como meio de encontro com seu destino pessoal tem seu início
paradigmático na constituição do ascetismo violento de Matraga. A partir daqui,
entre outras irradiações, ele se desdobra a visão admirada do narrador rosiano
em face de Hans-Helmut, seu amigo alemão que “cria num destino plástico e
minucioso, retocável pelo homem” (“O mau-humor de Wotan”); no raro recurso à
citação direta, por meio do Huizinga de Nas sombras do amanhã, que culmina na
percepção da “condição primordial da cultura”: “a dominação da natureza, mas da
natureza humana” (“Pé-duro, chapéu-de-couro”); no percurso acidentado de
Riobaldo que, almejando ser “governador de si mesmo” (espécie de mote atribuído
ao vaqueiro Mariano), conduz seu dificultoso papel de chefe tendo em mente a
preciosa lição de seu mestre-aluno Zé Bebelo, de que ter raiva de alguém
implica permitir que tal pessoa “passe durante o tempo governando a ideia e o
sentir da gente”, algo a ser evitado uma vez que “o que isso era falta de
soberania, e farta bobice, e fato é”; perpassa o viver e o manejo do passado
como “plástico e contraditório rascunho”, prodigamente refeito por Jó Joaquim
(“Desenredo”); e culmina no anseio vertiginoso do atormentado protagonista de
“Páramo”, texto tardio e súmula complexa da obra: “sempre foi minha ânsia
querer acumpliciar-me com o destino.” Na busca por tal acumpliciamento, é imperioso
saber distinguir, no enlace profuso entre o histórico e o mítico, a
convergência veladamente individual entre hora e vez.
Matraga não
é nada
Mais do que
um mestre do neologismo, Rosa foi um hábil manipulador dos recursos sintáticos
da língua, criando uma fala própria da qual emerge um estilo. E o estilo, mais
do que um dicionário de bolso, é uma atitude em face das potencialidades da
língua, alimentada, no caso de Rosa, pela aversão contínua ao lugar-comum e
pelo repasto contínuo do novo que, pelo trabalho de linguagem, enraíza-se
organicamente à tradição assimilada. A passagem de um item léxico a elemento
sintático não priva o primeiro de sua imanência expressiva, pois a opção por
uma sintaxe não raro desviante acaba por catalisar, no leitor, uma recepção
gradualmente desnaturalizadora de cada vocábulo:
“[...] o conhecimento de novas palavras abre
nosso espírito, digo, abre-nos no espírito a possibilidade de novas ideias; é
uma catálise. A unção e o fervor religiosos não são despertados por explanações
claras, lógicas, da inteligência reflexiva – mas provocados pelo mistério, pelo
não-entendido, pelo absurdo (‘Credo, quia absurdum’): cujo ‘roçar’ pelo nosso
espírito permite-nos ‘desconfiar’ de novas e outras e desconhecidas ‘dimensões’,
e que, portanto, são capazes de revelarem-nos que o universo é ‘mágico’. [...]
Quando a gente repete, muitas vezes, uma palavra, ela se desprende de seu significado
– isto é, perde a sua ‘domesticidade’, volta a ser ‘selvagem’ – : passando a
ser, para nós, para quem a diz tão repetida, um estranho ‘objeto’ sonoro. Foi o que aconteceu ao
menino Francisquinho, que, com isso, se assustou e chorou.”
Elucidando
um pouco de sua poética à tradutora norte-americana, Rosa remete aqui à
experiência cotidiana, mas profundamente transfiguradora, do menino
Francisquinho narrada em “São Marcos”: “E não é sem assim que as palavras têm
canto e plumagem. [...] E que o menino Francisquinho levou susto e chorou, um
dia, com medo da toada ‘patranha’ – que ele repetira, alto, quinze ou doze
vezes, por brincadeira boba, e, pois, se desusara por esse uso e voltara a ser
selvagem.” É também, acrescentemos, o caso de Matraga, epíteto ressonante – pêndulo
entre o bode da tragédia grega e a matraca dos penitentes da semana santa21
– que Nhô Augusto adquire somente após luta de morte cordial com seu mano velho
Joãozinho Bem-Bem: “Depois, morreu”. É
este o breve e perfeito fecho da história de Nhô Augusto das Pindaíbas e do
Saco-da-Embira. Mas “Matraga não é Matraga, não é nada”, informa-nos o narrador
na frase de abertura.
Matraga.
Matraga. Matraga. Indoméstico e pungente, o símbolo-Matraga permanece,
convidando-nos ao perene “corpo-a-corpo com o mistério”22, cerne
vivo da ficção rosiana que tem em Sagarana seu alicerce de estilo e perspectiva.
Ligações a esta post:
>>> Antes de chegar às livrarias a nova edição de Sagarana pela Global Editora, postamos sobre as várias edições da obra em nosso Tumblr, aqui.
Notas
1 LEONEL,
Maria Célia de Moraes. Guimarães Rosa: Magma e gênese da obra. São Paulo:
Editora UNESP, 2000. Uma excelente apreciação da poesia de Magma pode ser
encontrada neste ensaio de Pedro Fernandes publicado aqui no Letras.
2 MARQUES,
Oswaldino. O canto e a plumagem das palavras (Análise estilística de João
Guimarães Rosa). In: Ensaios escolhidos. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1968, p. 77-148.
3 RAMOS,
Graciliano. Um livro inédito. In: Linhas tortas. Rio de Janeiro: Record, 2007.
4 Carta de
João Guimarães Rosa a João Condé, revelando segredos de Sagarana. In: ROSA,
João Guimarães. Sagarana. São Paulo: Global, 2019, p. 17-21.
5 Carta a
Harriet De Onís, 9 fev. 1965. Arquivo IEB-USP, Fundo João Guimarães Rosa,
documento JGR-CT-05,97. O leitor interessado pode encontrar uma bela
apresentação da tradutora no texto de Victoria Livingstone, publicado aqui no Letras.
6 RAMOS,
Graciliano. Conversa de bastidores. In: Linhas tortas, cit.
7 BOLLE,
Willi. grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Editora 34,
2004, p. 445.
8 CANDIDO,
Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos 1750-1880. Rio
de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2012, p. 429-437.
9 Tal
formulação, fundamental para a construção do segundo momento de escritura
rosiano, encontra-se em uma carta excepcional do autor ao tio, também escritor,
Vicente Guimarães, datada de 11 de maio de 1947. Ver: GUIMARÃES, Vicente. Joãozito: a infância
de João Guimarães Rosa. São Paulo: Panda Books, 2006.
10 As
citações desse parágrafo, até aqui, encontram-se em PORTELLA, Eduardo. Dimensões
I. Rio de Janeiro, 1958, p. 92-93, citado em DANIEL, Mary Lou. João Guimarães
Rosa: travessia literária. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1968.
11 MONTEIRO,
Adolfo Casais. O Erudito e o Popular em Grande sertão: veredas. O Estado de S.
Paulo, Suplemento Literário, 1º mar. 1958.
12 RÓNAI,
Paulo. A arte de contar em Sagarana. In: ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
13 Ver:
ESCOREL, Lauro. Nasce um escritor. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28 abr.
1946; LINS, Álvaro. Uma grande estreia. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 12
abr. 1946. No caso de Graciliano, trata-se dos textos referidos anteriormente.
14 Ver: SCHMIDT,
Augusto Frederico. Sagarana. Correio da manhã. Rio de Janeiro, 4 maio 1946;
AIA, Jorge. Sagarana. Diário Carioca. Rio de Janeiro, 2 jun. 1946.
15 Ver:
MILLIET, Sérgio. Sagarana. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 19 maio 1946;
MILLIET, Sérgio. Sagarana. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 22 dez. 1951.
16 RÓNAI,
Paulo. A arte de contar em Sagarana, cit., p. 18-19.
17 Para uma
visão mais ampla de tais questões, recomenda-se a leitura dos estudos mais
completos sobre a obra: BENEDETTI, Nildo Maximo. Sagarana: O Brasil de
Guimarães Rosa. São Paulo: Hedra/ECidade, 2010; e SERRA AZUL, Carolina.
Guimarães Rosa e o primeiro modernismo: uma leitura de Sagarana. 2014. 140f.
Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2014.
18 Fazemos
uso aqui de termo empregado pelo próprio Rosa para criticar na obra de James
Joyce (Ulisses em especial) o excesso de intenção programática: “um excesso de voulu
que me repele”. Carta a Mary Lou Daniel, 3 nov. 1964 Arquivo IEB-USP, Fundo João Guimarães Rosa,
documento JGR-CP-01,64.
19 Este
excerto corresponde à versão presente em Sezão. Arquivo IEB-USP, Fundo João
Guimarães Rosa, JGR-M-01,01.
20 A melhor
leitura desta narrativa continua sendo o incontornável “Matraga: sua marca”, de
Walnice Galvão, presente na coletânea Mínima mímica: ensaios sobre Guimarães
Rosa (Companhia das Letras, 2008).
21 Essa
oscilação encontra-se delineada no texto de Galvão indicado na nota anterior.
22 “Não
posso responder que acho que o escritor deve é escrever, escrever, e o que o
‘papel’ dele é só para ser enchido com letras e palavras. Não sou contra nem a
favor de ‘engajamento’, ‘alinhamento’, etc. Apenas, sou nada mais que um
menino, que tem medo do escuro e assovia. O mundo, para mim, é mágico,
metafísico, mental – Você sabe. Só me interessa a solução religiosa –, o
corpo-a-corpo de cada um com o mistério.” Carta a Alberto da Costa e Silva, 8
fev. 1963. Arquivo IEB-USP, Fundo João Guimarães Rosa, JGR-CP-07,34.
Comentários