O paradoxo da identidade na diversidade
Por Joaquim Serra
Marshall
Berman define e modernidade – e o sentimento da modernidade – como a
“experiência do tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e
perigos da vida” (p. 24). O crítico
conclui que para os indivíduos modernos, a alteração de todo o conjunto – que
poderíamos chamar de ambiente – e o sentimento de coletividade é que faz com
que se manifeste a modernidade. Para o crítico, a modernidade une a espécie
humana porque liquefaz as fronteiras e as experiências são coletivas, porém com
um paradoxo: as próprias experiências também são liquidadas – como disse o
sociólogo Zygmunt Bauman – o que leva a uma não possibilidade muitas vezes
material e duradoura da experiência.
De certa
maneira, o princípio básico da individualidade, aquilo que nos faz sujeitos
únicos também é posto em xeque. E é nesse sentido que nos é apresentado o
personagem Tertuliano no romance O homem duplicado (2002) de José Saramago.
Assim como Marshall Berman, Saramago também mostra a condição moderna a qual
está imerso seu personagem. Tertuliano Máximo Afonso reconhece a si mesmo em um
filme de há cinco anos quando – vítima de algo que o narrador ironicamente
classifica como uma depressão –, procura distração em meio à solidão que sente.
Berman enxerga
uma raiz para a modernidade no início do século XVI até o final do XVIII,
quando as pessoas já começam a ter as primeiras experiências daquilo que
chamamos modernidade, porém ainda “mal fazem ideia do que as atingiu” (p. 25). As ondas
revolucionárias do século XVIII, com a Revolução Francesa e todo seu ônus e
reverberação, demarca o início de uma nova fase para a modernidade que aumenta
a dicotomia entre o que era viver antes da modernidade, mas já com um pé muito
bem firme na modernidade. No século XIX, a modernidade alcança virtualmente o
mundo todo, as experiências são alteradas significativamente não só pela
industrialização que também se expande da Inglaterra para outros países, como
também a revolução científica (séculos XVI-XVIII), começa a penetrar a vida pública. Basta lembrarmos, por exemplo, da
publicação da Origem das Espécies de Charles Darwin, de 1859, que teve muitos
seguidores e divulgadores e foi amplamente comentada no mundo ocidental.
É nesse período que a fragmentação começa, por
assim dizer, a reorganizar a vida social e as linguagens confidenciais que
perdem sua nitidez e sentido para a vida. O poeta francês Charles Baudelaire
registra o sentimento em meio à modernidade no ciclo de poemas Spleen de Paris.
O flâneur, o errante que apreende a experiência da modernidade vê nas
alterações arquitetônicas modernas a melancolia das grandes cidades. Assim como
no poema “Nós”, o poeta português Cesário Verde, influenciado por Baudelaire,
enxerga as consequências da modernidade das cidades; doenças e as misérias do
homem.
Já no século
XX, Allen Ginsberg explora o sentimento da loucura nas cidades do pós-guerra no
poema “Howl” (Uivo), de 1956. Diz os primeiros versos: “I saw the best minds of
my generation destroyed by madness, starving hysterical naked [...]” [“Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura/ famintos histéricos nus [...]”. (tradução nossa)]. O sentimento de
perda de identidade social, cultural, a luta contra o fascismo – externo e
também do próprio estado, na visão do autor –, a loucura das grandes cidades, e
todo o ônus que ela carrega pela modernização que exclui grande parte daqueles
que não conseguem se transformar com ela, são exibidos por Ginsberg como os
loucos que perderam identidade social, acabaram em manicômios, e foram mortos
por aquilo que não puderam controlar.
José
Saramago lança seu personagem nas consequências da modernidade. A distância,
que antes poderia ser um problema, não é mais para Tertuliano já que ele vê
pelo televisor um homem que julga ser ele mesmo mas que sequer viu pessoalmente.
Mas se o homem rouba suas características físicas, que se alteram
concomitantemente às suas, então quem é Tertuliano Máximo Afonso? As
experiências de vida de Tertuliano podem também ser experiências tão diluídas a
ponto de outra pessoa que se parece com ele poder tomar seu lugar? O
individualismo, como sugere acima Marshall Berman, sofre uma relativização no
romance português.
Para José
Saramago, em uma entrevista em 1995, o mundo do final do milênio continha “duas
tendências contraditórias: a globalização e a fragmentação. Um homem está em
sua casa, afastado de todo o contato humano, podendo chegar pelo computador
[...], a todos os lugares”. E conclui com algo que hoje, já na segunda década
do novo milênio, é possível ver como um comportamento generalizado. Diz o autor
português: “E, se eu não estiver satisfeito com a realidade, posso viver noutra
realidade, a virtual” (in Aguilera, 2010, p. 456).
Com isso,
voltamos ao paradoxo do começo deste texto. A exposição contraditória que
Marshall Berman faz daquilo que é o homem moderno, ou contemporâneo, encaixa-se
nas palavras de Saramago, o que pode nos ajudar a entender o porquê do autor
lançar mão da tradição do duplo.
O romance de
José Saramago se insere no motivo do duplo, assim como o sósia em O Anfitrião,
de Plauto, mas que ganha força no romantismo. Fiódor Dostoiévski em seu O Duplo
(1846), também lança mão do fantástico para contar a história do conselheiro
titular Goliadkin que tem sua identidade usurpada por outro homem que toma não
só o seu posto como tudo o que é seu.
Mas em O
homem duplicado, esse valor de significação não é meramente uma questão de
identidade – afinal, quem é Tertuliano? –, mas mostra a perda do próprio eu
inserido no turbilhão da pós-modernidade, da perda da nitidez do singular, e
até da doença geral que transforma todos em mais ou menos o mesmo. O motivo do
duplo sempre nos pergunta se há espaço – e se ele não é totalmente ilusório –
para a individualidade já que o ser duplicado parece escapar de uma
singularidade.
Bibliografia
AGUILERA,
Fernando Gómez (Org.). As palavras de Saramago. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010.
BERMAN,
Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia de Bolso,
2014.
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