Leitura de Pedra Bonita
Por Davi Lopes Villaça
Creio que Pedra
Bonita (1938), um dos romances menos conhecidos de José Lins do Rego, autor
hoje também pouco lido, mereceria ser melhor compreendido, para além da chave
do regionalismo em que é facilmente enquadrado. O livro aborda dois fenômenos
sociais do interior nordestino: o cangaço e o messianismo, mas pensá-lo como
uma dramatização desses fenômenos é compreendê-lo apenas na superfície. Seu
tema não é qualquer realidade social em particular, assim como o tema de
Guimarães Rosa no Grande Sertão não é o universo jagunço. A questão que permeia
toda a obra de José Lins como romancista e que adquire expressão nova em Pedra
Bonita diz respeito à relação problemática do homem moderno – ou de certo homem
moderno – com suas origens. Dentro dessa relação podemos divisar ainda outra,
talvez até mais importante, que é a relação desse homem com o tempo e com a
memória.
Antônio
Bento, o herói da narrativa, é abandonado, ainda muito pequeno, por uma família
de retirantes aos cuidados de padre Amâncio na vila do Assu, um vilarejo
miserável no meio do sertão, de modo que cresce praticamente esquecido de sua
terra e de sua gente. Mesmo assim, o povo da vila o trata como um estranho, com
um misto de temor e desprezo, porque a cidade natal do herói, Pedra Bonita,
fora há muito tempo sede de um acontecimento nefasto, envolvendo a figura de um
santo e o sacrifício de muitos inocentes, a respeito do qual todos preferiam
calar. Bento se vê assim estigmatizado por um passado do qual não pôde participar
e cuja história ele próprio desconhece; uma história sobre a qual a gente à sua
volta, ressentida e supersticiosa, lançava a culpa pelas desgraças da terra, estagnada
na miséria, como se sofresse o castigo divino. Agora, com dezessete anos, o
herói leva uma vida mais ou menos conformada, ajudando o padrinho nos ofícios
da igreja, orgulhoso da sua intimidade com os objetos sagrados, que ninguém
mais podia tocar.
Eis que um
dia chega ao Assu o violeiro Dioclécio, que canta aos que quiserem ouvir as
histórias de suas andanças pelo sertão – seus encontros com cangaceiros, suas
noites com moças misteriosas. Antônio Bento faz amizade com o forasteiro, vai
escutá-lo todos os dias, passa a sonhar com um mundo bem mais amplo do que o
que conhecia. Ele, a quem o sexo jamais interessara, vê de noite chegar-lhe
junto à rede as mulheres das narrativas de Dioclécio. Sede de conhecimento e
devaneio erótico confundem-se na expectativa do rapaz, embriagado pelo embalo
da música e da narrativa de um homem que viera de longe. Mas chega o momento em
que o violeiro tem de partir, expulso pela gente do vilarejo, que não queria
saber daquele sujeito estranho vivendo de não fazer nada, mexendo com a cabeça
dos mais jovens.
Sem o amigo,
Antônio Bento se vê agora criticamente defrontado com a mesquinhez da gente que
o desprezava, com a aridez do mundo em que se criou. Deseja abandonar tudo,
seguir os passos de Dioclécio, tornar-se também cantador, mas falta-lhe coragem
para deixar o padrinho. Ou talvez não seja só isso: conforme o romance avança,
cresce em Bento o receio de descobrir que, aonde quer que vá, a vida com que
sonha estará sempre fechada para ele, de que tudo o que encontre seja a
reprodução da vida que conheceu em Assu, pobre e insignificante. Sente trazer
uma marca consigo, algo que o obriga a ser o que sempre foi: um enjeitado no
meio do povo, a quem todos tratam com desconfiança, por um crime que não cometeu
e sequer conhecia.
Vendo a
mudança que se operara no afilhado, cada vez mais recolhido, amuado com seus
pensamentos, padre Amâncio decide mandá-lo para uma temporada com sua família,
no rancho do Araticum, propriedade nos arredores de Pedra Bonita, para estar
outra vez com sua gente. Esse é um movimento carregado de simbolismo. Na Odisseia,
Telêmaco, filho de Odisseu, então com vinte anos, é enviado por Atena, deusa da
sabedoria, a procurar seu pai, percorrendo outras terras e escutando histórias
sobre ele. Essa busca é também uma busca por si mesmo, simboliza para o herói
jovem o assenhoreamento de sua própria identidade, sua admissão numa história
que o precede e o define. Para o homem mítico, ligado ao tempo do eterno
retorno, ao mundo arcaico em que foram imaginadas as histórias de Homero,
tornar-se quem de fato é é apenas uma forma de “recordar” – ou melhor, de
afirmar para si mesmo uma memória – e de não esquecer. A grande aventura
marítima de Odisseu tem como centro esse esforço de preservação de um eu previamente determinado. Para o herói, atirado num mundo de monstros e deuses,
aspirando a retornar à civilização, ao mundo dos homens, o grande perigo que o
ronda de todos os lados é o esquecimento. Odisseu sabe quem ele foi, sabe quem
ele é, sabe inclusive quem ele será, pois seu destino lhe foi revelado. O herói
não luta para ser, mas para continuar sendo, para continuar sabendo. Todos os
perigos e tentações querem desviá-lo do caminho para ele já estabelecido.
Quando pai e filho se encontram, passado e presente estão reunidos, assegurados
um no outro.
No mundo
moderno, com suas irremediáveis rupturas, os tempos parecem dissociados: o
passado já não diz mais para onde devemos ir, o futuro tornou-se sinônimo de
incerteza. Quando Antônio Bento se reencontra com a família, o que decorre é
tudo menos uma reconciliação. A casa onde nascera não lhe diz muito; a mãe, que
ainda o visitava de vez em quando na vila do Assu, surge-lhe como a imagem de
uma ternura passada, perdida; entre ele e seu pai, Bentão, homem seco, como que
indiferente aos sofrimentos dos seus, impõe-se um intransponível
estranhamento. O herói consola-se com a amizade dos dois irmãos mais velhos,
Aparício e Domício – este, violeiro, torna-se para ele um segundo Dioclécio.
Mas também descobre ali que, se na vila do Assu ele era desprezado por ter
vindo de Pedra Bonita, (um “ninho de cobras”, como dizia o povo da vila), em
Pedra Bonita sua família estava marcada pela história de uma traição. Bento e
Domício vão à cabana do velho Zé Pedro, espécie de santo eremita, detentor da
tradição oral, para finalmente descobrir a verdade sobre o misterioso acontecimento
que se dera há mais de um século na cidade e que ainda pesava sobre a vida de
todos. Ouvem sobre a vinda, há cerca de um século, de um suposto santo, que
prometera redimir as misérias de toda a gente, trazer para todos a riqueza,
pedindo em troca um terrível sacrifício: o sangue dos inocentes, das crianças
de colo. A desgraça que se seguiu teve como consequência o massacre, por parte
das tropas do governo, da multidão de fanáticos
e do suposto santo, “o filho de Deus”, tornando para sempre maldita
aquelas terras. O homem que saíra da cidade para denunciar os crimes dos
“beatos” era um antepassado dos Vieira, a família de Antônio Bento, que
carregava a culpa pela traição de tantos anos atrás.
Seria
verdadeira aquela história? Bento, que sempre escarnecera das crendices do povo
(iniciado, como era, na “verdadeira” fé de seu padrinho), passa a se perguntar
se não estariam mesmo marcados, ele e sua família, por algum tipo de maldição,
que fazia deles aquilo que se via: uma gente atolada na pobreza, no atraso,
como aliás eram todos os outros. Seriam
eles os culpados? Estaria ele condenado a ser, aonde quer que fosse, um “sangue
de judas”, portador da desgraça dos outros? No herói, essa dúvida tem um
sentido especial. Ao voltar para casa, Bento não pôde se reconciliar com a
família, não pôde superar o estranhamento que se pusera entre ele e suas
origens. O passado, o tempo no qual poderia ter vivido, já não lhe pertence. Na
modernidade, o passado com frequência diz menos a respeito de quem nós somos (como
dizia aos heróis de Homero) do que de quem deixamos de ser, de quem já não
podemos ser. O Hamlet de Shakespeare, uma das primeiras figuras-chave da
modernidade, deve vingar a morte de seu pai, o rei, que também se chama Hamlet
e lhe aparece como fantasma. O
compartilhamento do nome torna apenas mais acintosa a discrepância entre um
Hamlet e outro, entre pai e filho: este, intelectual e atormentado, enérgico
porém hesitante, esmagado sob o peso de suas reflexões e dilemas morais; o
outro, imponente, vestido em sua velha armadura de batalha – o ideal do rei
guerreiro da Idade Média, de que a Inglaterra dos tempos de Shakespeare já se
despedira. Mas tanto Hamlet quanto Pedra Bonita sugerem que, se o passado já
não nos pertence, nós ainda pertencemos a ele de algum modo; no mínimo, temos
com ele uma dívida. Esse tempo, do qual já não podemos participar, parece assaltar
o presente, exigir para si uma última
palavra em nosso próprio tempo.
Quem lê os
doze romances de José Lins do Rego deve perceber que a maior parte de sua obra
orbita em torno de uma problemática comum, cujo ponto central talvez seja, como
disse Luís Bueno, “a relação do homem com seu lugar de origem”. Mas sempre
implicada nessa relação, e por isso talvez até mais essencial do que ela, está
a questão do próprio tempo: a maneira como as personagens do autor se
relacionam com o passado e com a memória. Dizer-se de José Lins um memorialista
só faz jus de fato aos seus dois primeiros romances, em que o que se narra está
bem próximo das memórias (ainda que de forma bastante ficcionalizada, e com uma
boa dose de invenção). Nos outros quatro romances que compõem o famoso Ciclo da
cana de açúcar (nome que o autor deu ao conjunto de seus cinco primeiros
romances e que abrangeria mais tarde sua obra prima, Fogo Morto) trata-se ainda
de um mundo que o autor conheceu de perto e tinha como familiar – aquele
estruturado em torno dos antigos engenhos de açúcar do Nordeste, sob o mando dos
coronéis, de quem José Lins descendia.
Já em romances como Pedra Bonita,
exteriores ao Ciclo – tão relegados pela crítica, mais preocupada talvez com as
obras que lhe oferecessem, de maneira mais objetiva, uma compreensão de nossa
realidade social e nacional – o autor não visita os lugares familiares à
memória. Mas o que está ainda tematizado, talvez de forma até mais evidente, é
a própria memória. Para um romancista como José Lins do Rego, testemunha da
decadência e da morte daquele velho mundo rural, o mundo de sua infância, como
o conhecemos em Menino de engenho, o ato de recordar expressa mais do que
simples saudosismo, desejo de voltar; é também a expressão de um drama
conflituoso, que em cada obra sua é representado sob um ângulo diferente. A
relação de seus heróis com o passado é sempre ambivalente; o que eles vivem é
uma dupla impossibilidade: a de se reconciliar com o tempo que deixaram e a de
romper definitivamente com ele; se já não podem viver no passado, tampouco se
sentem capazes de afirmar-se no presente, uma vez que carregam a marca de uma
vida que para eles se perdeu. Devem, assim, lidar com a realidade de uma
história que os precede e os convida a
morrer com ela, posto que ela mesma já se encerrou. A nostalgia dos romances de
José Lins do Rego não deve ser compreendida somente como saudade do passado; é
também, em diversos momentos, um anseio do presente, da vida de agora, que a
suas personagens parece distante pelo fato de se sentirem ligadas a um tempo
que já passou, como se com ele estivessem fadadas a desaparecer.
Antônio
Bento descobre que recordar é perigoso. Depois que se inteira da história de
sua família, do acontecimento nefasto que se dera há cerca de um século
naquelas terras, o mesmo acontecimento ameaça se repetir no presente, com a
chegada de um novo santo, suscitando novamente uma legião de fanáticos na cidade
e a repetição da desgraça de outrora. Trata-se, evidentemente, de uma
coincidência, mas cujo simbolismo parece bem marcado. Recordar é trazer de novo
à tona. Quando a história que Antônio Bento por tanto tempo ignorara se lhe
torna conhecida, ameaça se transformar
no seu próprio presente. É como se a realidade imaginada por José Lins fosse de
algum modo influenciada pela vida psíquica de seu herói. Esse paralelo nos faz
talvez pensar: não será esse mundo apenas o sonho de Antônio Bento? O palco
onde se materializam seus conflitos psicológicos, o seu drama da memória?
Obviamente, não pode ser só isso: esse é um mundo independente, descrito muitas
vezes sem o auxílio da perspectiva do herói; ainda assim, é, dentro do quadro
ficcional, um mundo, uma realidade objetiva, que dialoga continuamente com a
psicologia do protagonista e, nalguma medida, até se confunde com ela. Porque
em José Lins, os dramas da memórias não se restringem à individualidade de suas
personagens, mas tomam conta da própria realidade.
Aos poucos,
a velha aspiração de Bento de sair pelo mundo vivendo aventuras, à maneira de
Dioclécio, vai ficando para trás. No lugar desse escapismo lírico, impõe-se-lhe
a realidade, árida e claustrofóbica. O mundo todo não seria diferente deste que
ele conhece. E na medida mesma que seu mundo se expande, converte-se na única
realidade conhecível, parece-se fechar-se sobre o herói, querer esmagá-lo. Não
há mais lugar para a possibilidade de criar, de viver o que ainda não foi
determinado. A bem dizer, tudo isto são impressões, hipóteses do próprio
Antônio Bento, que jamais as coloca de fato à prova. Ele não age, não interfere
no curso das ações que se desenrolam em torno dele, limita-se à condição de
espectador. Todos os seus movimentos são conduzidos por outras personagens,
como se o herói fosse uma espécie de turista em sua própria realidade. Esse
alheamento se expressa também no estilo da narrativa. Num romance já bem
escasso em diálogos, o protagonista é aquele que menos fala. E mesmo quando se
supõe que ele de fato diz alguma coisa, esse dizer fica apenas subentendido, sem
representação no discurso direto; Bento se assemelha a um eterno ouvinte, que
não atinge sequer pela palavra o campo da ação. Sua condição é a de alguém que
não começou ainda a existir para o mundo de que faz parte, não tomou qualquer
posição. Toda a sua história se assemelha ao preâmbulo de uma outra que não
sabemos sequer se irá ocorrer – aquela em que Antônio Bento deverá finalmente
tomar o rumo de suas próprias ações. Mas como tudo parece já determinado,
fadado a se repetir, ou, em outras palavras, como o próprio presente parece
transformado em passado (destituído, assim, de sua maleabilidade) o herói só
faz postergar o momento do seu agir, demorando-se num “ser ou não ser” que se
estende até os últimos momentos do romance.
Recordar, no
entanto, é mais do que sucumbir às forças paralisantes do passado. Para o
herói, conhecer a própria história, mesmo em se tratando de uma história de que
não se participou, implica assumir uma responsabilidade para com ela. Num certo
sentido, o homem está sempre em dívida com seu passado, com o tempo das
origens, que, mesmo que não se perceba, continua a se insinuar sobre o
presente. Esquecer, como tentativa de se livrar dessa responsabilidade – não só
para com o que foi, mas para com o que não deixou de ser – é muitas vezes
tentador; não seria melhor se olhássemos apenas para frente? Há muito que
narrativas nos advertem do perigo de se olhar para trás: veja-se o exemplo de
Orfeu, ou então da mulher de Ló, no Gênesis, que ao fugir da destruição de
Sodoma olhou para a cidade, contrariando a ordem dos anjos, e foi transformada
num pilar de sal. A história mata, petrifica, quando se sobrepõe à força móvel
do presente – as personagens de José Lins sabem bem disso. Por outro lado,
esquecer, deixar para trás, nunca se comprova para elas uma solução efetiva,
porque não podem romper com as marcas que o passado lhes deixou, e é
precisamente sobre aqueles que dele se esquecem que o passado mais duramente
cobra sua dívida. Como escapar ao seu efeito devastador?
Em Pedra
Bonita, tudo parece mesmo fadado a se repetir. O mundo seria o que sempre fora,
incapaz de se ajudar e de ser ajudado, mergulhado nas mesmas pobreza,
intolerância e mesquinhez. Antônio Bento vê sua gente se acabando: um dos
irmãos entra para o cangaço, o outro ingressa na multidão de fanáticos; os pais,
velhos, sem força para nada. Antes sonhara com as aventuras de Dioclécio, com
uma vida nômade, sem raízes na terra, desligada de qualquer história. Mas esta
ideia vai ficando para trás, como um devaneio infantil. Tudo o que deseja agora
é salvar a família, a mesma que antes lhe parecera de todo estranha, mas da
qual se aproximou justamente em função de seu sofrimento comum. Com isto, o
herói não deseja voltar ao passado, retornar à vida da qual se afastara, mas
sim readmitir essa vida em seu próprio presente, no tempo da possibilidade, do
que ainda não foi escrito. Atitude esta em certo sentido inesperada da parte do
herói de um autor saudosista, como José Lins é às vezes referido – e o
saudosismo chega realmente a constituir uma característica sua, ao menos nos
primeiros romances. Mas a relação de suas personagens – e a sua própria – com o
passado e a memória é, como pontuamos, ambivalente. Em Menino de engenho, o
caráter idílico da vida nos engenhos é em parte assegurado pela sua constância
e pela sua estabilidade; trata-se de uma existência sempre fresca e jovial,
a-histórica, como o tempo do mito ou da infância, baseado num ciclo de contínua
renovação. Em Pedra Bonita, por outro lado, aquilo com que se busca romper é
precisamente a repetição. O tempo que Antônio Bento deseja fundar, para si
mesmo e para os outros, é o tempo histórico, cronológico, e para isto não pode
simplesmente esquecer o passado: torna-se necessário estabelecer, entre esse
antes e o seu agora, algum tipo de ponte, de continuidade, sem o que talvez não
possa haver forma verdadeira de progresso ou mesmo diferenciação.
Se por um
lado rememorar, isto é, conscientizar-se de suas origens, significa para o
herói trazer à tona um passado que ameaça se instalar definitiva e
destrutivamente sobre o presente, por outro, na medida em que ele evoca esse
tempo e o presentifica, surge-lhe a oportunidade de finalmente se posicionar em
relação a ele, de não ser mais alguém definido por uma história já concluída, e
sim assumir dentro dela um papel ativo. Isto não necessariamente implicará um
desfecho positivo para essa história – pelo contrário, com ou sem a
participação do herói, tudo parece inclinado a acontecer tal como no passado.
Seria inútil lutar; a vida, da qual ele
ainda não decidiu tomar parte, aparece a Bento como um trabalho de Sísifo.
Enquanto pode, o herói não faz nada, adia o momento da ação. A morte chega a
tentá-lo, seria uma saída melhor, talvez, do que sofrer as “pedradas e
flechadas do destino ultrajante”, como pondera Hamlet. Mas ele aguarda. Chega
notícia da tropa do governo, que viria massacrar a gente da cidade. Na última
madrugada um céu vermelho prenuncia o sangue que mancharia a terra, o sangue de
sua gente. Já não há tempo para ponderações, o herói se vê diante de uma
encruzilhada, fatalmente confrontado com a necessidade de uma escolha: fazer ou
não fazer. Mas o romancista tem pouco interesse em nos contar quais as
consequências do gesto final de Antônio Bento. O que será dele e de sua
família, bem como de toda a gente da cidade, o romance não diz. O verdadeiro
drama, aquele que sustenta a narrativa, é o que se desenvolve em torno da
relação problemática do herói com suas origens, com uma história que ao mesmo tempo
é e não é a sua; uma história que noutros tempos teria lhe garantido sua
identidade, mas que agora só diz do que ele deveria ter sido e, com isto, como
que busca lhe negar o que talvez ainda possa ser. Essa dívida com o tempo, num
contexto de ruptura e desenraizamento típico da modernidade, é o problema com
que tragicamente se batem todos os heróis de José Lins do Rego.
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