Este livro eu não termino nunca e todo dia o inicio
Por Beatriz Martins
tenho este
livro que não consigo e não posso e ao menos se eu ainda quisesse, ainda assim,
eu não vou terminar de lê-lo. este livro, cujo lugar é a bancada da minha
estante, similar a uma mesa ou um perde-tudo-aí-em-cima, nunca vai pras
prateleiras. ele nunca descansa. está sempre ao alcance de uma estirada de
braço. vez-em-quando é ele quem me chama. precisa me falar algo, urgente, vai
ao banheiro depois ou melhor, me leva, só não me respinga d’água, não liga a
quem achar estranho tal maneirice.
às vezes se
parece a uma tradução de coisas inverbalizáveis. às vezes se parece
legitimamente a um extraterrestre extrafísico extra-alguma-coisa de vontades
próprias e desconhecidas. não gosta se atropelo suas palavras. demasiadamente
se irrita se o leio devagar demais a ponto de minha mente ir lentamente a um
outro lugar – lá foi ela e se assentou numa miudeza.
um dia me
disse algo tão profundo, mas duma profundeza tamanha o era que me obrigou a
levantar da cama e sair caminhando pela casa incessantemente dando voltas e
voltas como alguém que acaba de descobrir algo indexado ao peito. uma bola de
pelo, se eu fosse uma felina. [mas como se de onça não tenho nada.]
desfere contra humanidade: “[...] o inexpressivo
é diabólico. Se a pessoa não estiver comprometida com a esperança, vive o
demoníaco. Se a pessoa tiver coragem de largar os sentimentos, descobre a ampla
vida de um silêncio extremamente ocupado, o mesmo em si próprio – o demoníaco é
antes do humano. E se a pessoa vê essa atualidade, ela se queima como se visse
o Deus. A vida pré-humana divina é de uma atualidade que queima.” isto numa voz
rouca, pausada, feminina, contida, sabidamente em meus ouvidos e olhos e dedos
ao momento que eu olhava prum teto branco, pro Nada. e Ele também me olhava.
a uma
desesperança, a Palavra pode ser quase tudo. naquele momento eu descobria um
quase tudo nas palmas dos pés: esparramadas elas se contraíam e se esparramavam
novamente e contraíam, num movimento de querer agarrar o chão a todas às custas
e se certificar da realidade e tacteabilidade das coisas – tudo passa pela
ponta dos dedos. [um dia, muito depois, descobri que isso tinha um nome e uma
causa científica, como tudo na vida: reflexo de Babinski. algo que deve
desaparecer após os 2 anos de idade ou seria indicativo de desequilíbrio no
sistema nervoso. o que de nervoso não tem nada o meu amigo Babinski.]
não termino
de ler este livro. nunca serei capaz de lê-lo. já admito isto a ele, mesmo
sendo o livro mais importante de todos, mesmo não sendo o maior livro de todos:
eu jamais vou terminá-lo. e não posso. não posso sobretudo porque cada palavra
me dá um solavanco – e daí não posso simplesmente comer ou beber água, ou
qualquer outra fisiologia humana a mim não cabe mais, e fico caminhando
incessantemente desenhando voltas pelas pontas dos dedos esparramando pés
imersa em meu reflexo de Babinski adquirido. a carga psíquica de ser entendida
por este Outro, que não vi, que não conheço, que não me sabe. parece que ‘tá
tirando minha roupa. na verdade, parece que me flagra à janela do quarto
completamente desnuda não obstante com o dedo no nariz. não posso terminá-lo
porque depois disso não mais acontecerá de recorrer a ele e ser surpreendida
com um solavanco. não posso terminá-lo porque depois que as palmas dos meus pés
conhecerem muito o chão, não sentirão tanto suas maciezas.
este livro
eu não termino nunca e todo dia o inicio. e daí quando me perguntam sempre é
muito estranho falar: que sim, é o melhor livro que já pude ler, mas não,
jamais chegarei ao fim. sempre que avanço nas páginas, volto pras linhas que
mal compreendi. quando leio demais, esqueço o que havia descoberto em mim ao
começo – um solavanco, uma bola de pelo, a palma do pé, a Palavra.
esporadicamente vou muito ao final, pulo os meios e os intermédios de tudo.
esse processo me dá uma ideia bruta, pouco refinada, apenas o ideal para que eu
a esmiúce como se debulha um feijão e sabe, depois me alimente, com meu
tempero, com meu fogão.
“Era com
alegria infernal que eu como que ia morrer. Eu começava a sentir que meu passo
mal-assombrado seria irremediável, e que eu estava pouco a pouco abandonando a
minha salvação humana. Sentia que o meu de dentro, apesar de matéria fofa e
branca, tinha no entanto força de rebentar meu rosto de prata e beleza, adeus
beleza do mundo. Beleza que me é agora remota e que eu não quero mais – estou
sem poder querer mais a beleza talvez nunca a tivesse querido mesmo, mas era
tão bom! eu me lembro como o jogo da beleza era bom, a beleza era uma
transmutação contínua.”*
consegues
sentir a bola de pelo? estais vendo, eu não posso, tenho medo de descobrir uma
Verdade insuportável e que faça todo o sentido em mim. e sabe, como o reflexo
de Babisnki e a bola de pelo, adotar esta verdade em mim, passada pela ponta
dos pés pro mais fundo do coração. não posso decifrá-lo de todo porque este
mistério, estas ideias mal elaboradas e como elas se associam na minha grande
esfera psíquica, este processo meio colagem de revista, me vicia.
Clarice, se
pudesse me ver, teria olhos de quem enxerga a alguém ingênuo, medroso de
escuridão, uma criança que não gosta de arrancar a casca da própria ferida. ou
que não anda pelos meios-fios das calçadas. talvez ficasse entediada. talvez
Clarice também assim o fosse quando era moça e não tinha visto muita coisa –
nem pra dentro nem pra fora de si – e como uma lagarta vai rompendo um casulo.
talvez me pegasse pela mão e talvez até me assustasse, segurando-a com os dedos
rígidos e os olhos atônitos dizendo: não sê branda.
todo mundo
precisa de um livro para não terminar de lê-lo. um livro como uma alavanca
maciça. um livro como um pneumotórax saudável e diário. um livro que como
estomazil cura a azia da vida, essa apatia patológica adquirida.
este é um
livro que, de formas diferentes e a um só tempo, me diz: não morra nunca e
morra muito a cada um tanto de vida.
Notas:
* Está em A
paixão segundo G.H., de Clarice Lispector.
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