O coração das trevas
Por Antonio
Muñoz Molina
Cena de Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola |
Há uma coisa
trágica de grandes animais mortos nos velhos barcos encalhados e à beira da
ruína, como nas filas de vagões carcomidos pela intempérie e destruídos pelo
óxido que se vê em estradas mortas próximos a estações, como em paisagens de edifícios
azulejados mas em ruínas, e em céus escurecendo ao entardecer por entre cabos
de alta tensão. Os vagões de carga, os barcos velhos comidos de ferrugem, ou mesmos os carros usados pintados de um cinza de pós-guerra nos quais talvez tenhamos viajado
durante noites eternas há muito anos, contêm toda a sensação de decadência e
destruição, não suavizado pela dignidade melancólica das ruínas nobres, dos
escombros de um palácio ou de uma igreja gótica. A carcaça
côncava de um navio morto esquecido à beira-mar se parece muito com a de uma
vaca ou um cavalo morto à beira de uma estrada.
Mas há ruínas que aparecem num
porto ou nessa estação de trem que são como despojos sonâmbulos, barcos corroídos pela
ferrugem que à beira-mar parecem zumbis de barcos e grandes convés de
mercadorias que não parecem transportar nada nem ser conduzidos por ninguém. Estes cruzam a noite como vindo de explorações minerais perdidas em algum deserto,
com um hermetismo de trens secretos, de horríveis trens noturnos de
prisioneiros carregados aos campos de extermínio.
Há agora
mesmo, na costa ocidental da África, um grande barco trágico que talvez há anos
esteja condenado ao abandono, mas, continua navegando pelos mares do trópico,
um barco fantasma que não pode atracar em nenhum porto, porque não há nenhum
país que queira receber os milhares de sobreviventes, de fugitivos e de mortos
prematuros que viajam nele; milhares de homens e de mulheres de pele negra e
grandes olhos assustados que conseguiram escapar das matanças sem proporções da
Libéria para se encontrar agora lançados numa desgraça não menos cruel, a uma
travessia marítima para a qual não existem rotas de navegação nem porto de
chegada. Milhares de corpos amontoados entre cobertas escaldantes sob o sol cadente,
amontoados numa asfixia de porões escuros das quais brilham seus olhos e suas
tezes suadas tal como nos porões dos barcos negreiros que seguiram cruzando o
Atlântico durante há poucos séculos.
É a mesma
visão, o mesmo horror não suavizado pelo tempo, mas dilatado como uma epidemia
cada vez mais letal, como um apocalipse que se lança sobre a África desde que os
comerciantes europeus e árabes foram despertados pela ambição dos metais, das
peles, das madeiras preciosas, do marfim, dos escravos.
Nos porões
desse barco fantasma de mortos-vivos, desse mercante ensandecido cuja mercadoria
humana é um pântano de desespero, enfermidade, febre, sede e diarreia, o que
viaja é o coração das trevas, o espanto visto por Joseph Conrad nas sinistras
colônias do rei dos belgas, um cego desastre de exploração e maldade, de respeitáveis
de livros de contas e pescoços atados com correntes e costas esfoladas por
chicotes.
Antes de ler
Joseph Conrad, minha imaginação inocente e ávida havia se alimentado com os
romances racistas de explorações africanas que vinham conquistando tanta
popularidade desde o século XIX. Sem dúvidas, muitas das desgraças da África
vêm de despertado tantos sonhos e tantos terrores europeus: desde muito antes
de Júlio Verne inventar um voo em balão entre Zanzibar e o golfo da Guiné, a
África tem sido o destino de um número excessivo de fabulações, de desconhecidos
sonhos de aventura ou de enriquecimento, de evangelização e de busca de cidades
proibidas, de paraísos terrestres e tesouros perdidos.
Na primeira
adolescência vivia obcecado pela África dos mapas e dos romances, pelas
aventuras falsas de Alan Quattermain e as muito verdadeiras de Burton e Speeke
em busca das fontes do Nilo e de Henry Morton Stanley seguindo o rastro do
doutor Linvingstone sem outra finalidade que a de obter algumas declarações inéditas.
No cinema, a África era uma transparência em tecnicolor sobre a qual ressaltavam
a pele branca e o cabelo de cobre de Deborah Kerr e o dandismo fátuo de Stewart
Granger, que exerciam um heroísmo baseado sobretudo na indumentária e na
disponibilidade ilimitada dos ajudantes negros para caírem por desfiladeiros ou
sucumbir aos ataques das feras carnívoras e das tribos hostis. Enquanto crescemos,
tornamo-nos cinéfilos, e de As minas do rei Salomão, avançávamos para Mogambo,
e do delicado erotismo em preto-e-branco de Muareen O’Sullivan às opulências em
cinemascope de Ava Gardner, mas Clark Gable era tão fantasmagórico quanto
Stewart Granger e os africanos ainda estavam se dividindo em ajudantes negros dóceis
e ferozes nativos incivilizados.
Quando
criança ouvia vagas notícias sobre a guerra do Congo, sobre terroristas do Mau
Mau que perseguiam os europeus na escuridão densa da selva e os degolavam com
uma silenciosa eficácia de leopardos. Mas, logo a África pareceu que deixava de
existir porque já não era o destino dos sonhos de ninguém e só nos últimos anos
voltou aos noticiários e aos imaginários, despojada do prestígio das aventuras
e dos tesouros, transformada num apocalipse de miséria e de sangue do qual os
ocidentais temos que afastar os olhos como se víssemos uma grande chaga ou a mutilação
horrível de um mendigo.
Como uma
ilha de penhascos e grutas de ferro velho, esse barco dos fugitivos continuará
talvez nos próximos dias de sua viagem sem destino. Mas a África inteira é cada
vez mais um imenso barco sem rumo onde se amontoam e apertam vítimas futuras
das quais ninguém oferece piedade, nem refúgio, um continente fantasma onde já não
há lugar para as mentiras da literatura e do cinema porque sua única realidade diária
é o inferno.
* Este texto é uma tradução de "El carazón de las tinieblas", publicado aqui, no jornal El País.
Comentários