“Como se estivéssemos em palimpsesto de putas”, de Elvira Vigna. Transgressão do imaginário
Por Flaviana Silva
Elvira Vigna. Foto: Jéssica Mangaba |
O apagamento
de algumas marcas é um mistério. A dúvida entre as lacunas não permite que os
acontecimentos sejam explicados totalmente; é nesse vazio que reside a beleza. Ousamos
em assumir que não sabemos de tudo quando lidamos com o texto literário, afinal, o que sempre temos são mais perguntas e sinceramente, não é necessário ter todas as respostas. O mergulho é mais do que sentir as águas no próprio corpo.
A obra de Elvira Vigna intitulada
da melhor maneira possível de Como se estivéssemos em palimpsesto de putas foi publicada em 2016 e foi o último romance escrito pela autora um ano antes de sua
morte; ganhou o prêmio APCA de literatura no mesmo ano da publicação sendo
reconhecido por toda a riqueza de questionamentos sociais intrínsecos ao enredo,
priorizando como foco as relações humanas. Sem dúvidas, é uma escrita digna de
destaque na literatura brasileira contemporânea.
A visita do
leitor ao universo narrativo desse romance se constitui em torno de uma conversa aparentemente simples, mas dotada
de complexidade. A voz narrativa é de uma mulher sem nome, cuja identidade não
é detalhada; ela é uma ouvinte quase passiva das histórias do seu companheiro
de trabalho, João, um homem de nome comum, que apesar de ser casado
gosta de contar suas “aventuras sexuais” com garotas de programa. Nessas
conversas intercaladas e que não possui um tempo cronológico o homem descreve
várias figuras femininas de maneira bastante vazia, o que nos apresenta algo muito
pertinente na obra que é a desumanização das mulheres.
A narrativa
é norteada por uma escrita rica e ousada, que foi propositalmente organizada
para não entregar todas as nuances para o leitor; a todo tempo encontramo-nos em palimpsesto como temos referência no título: uma história sobre a outra
vai se constituindo de maneira que todas as descrições mostram o perfil de um
homem que utiliza dos momentos de prazer sexual para tentar entender a si
mesmo, o que é uma busca falida, já que ele não é capaz de entender a
individualidade de cada uma das mulheres que passam pelos seus dias. E por que? Bom, busque o leitor. Ele descreve
um detalhe qualquer e apenas deixa claro que é um ser perdido entre as suas
vontades.
Transgressão
é uma das palavras mais presentes nesse enredo. A relação dessa noção com o
próprio fazer literário é algo interessante; a maneira que as histórias são organizadas
não destaca a veracidade dos fatos, do contrário, permite diversas visões sobre as
situações, entre elas, a exposta pelo homem, a declarada pela mulher na
narrativa e a do leitor que viaja entre todas as outras possíveis.
As multidimensões do romance de Elvira Vigna faz dele uma obra
impressionante que pode não ter um tema que agrade a todos, mas, nisso também se faz sua natureza transgressora: a ruptura com os tabus de uma sociedade cujas bases foram erguidas sobre o tom da farsa machista. Como se estivéssemos em palimpsesto de putas tem em sua tessitura questões como a
masculinidade arrogante do homem que precisa ter o controle sobre as situações
e mostra a fragilidade do indivíduo sem pedir licença para a sociedade.
Essa é uma obra com frases curtas que causam um barulho agradável no ouvido do leitor. É
importante destacar que as relações de poder entre as pessoas e a própria ideia
do reconhecimento dos indivíduos é uma discussão presente. Temos acesso aos
pensamentos prévios que João tem de cada mulher, uma visão desentoada e
preconceituosa, como se as mulheres fossem apenas peças do palimpsesto, sendo
algo que mostra a busca da personagem por sua própria identidade: “João também
desenhava. Uma garota de programa por cima de outra garota de programa, sem
nunca individualizá-las, acabá-las, sempre faltando alguma coisa” (p.169).
Diante
da leitura, observa-se que o romance da Elvira Vigna é um abrigo para o leitor
atento e surpreende no final de maneira arrebatadora, somos envolvidos em um
mar de possibilidades e o que realmente determina a experiência é a verdadeira
entrega.
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