Carlos Drummond de Andrade e Machado de Assis. Registros de irmanação
Por Pedro Fernandes
É possível
dizer que um grande criador tenha consigo certa necessidade de negar seus
antecedentes imediatos. Assim pelo menos acreditam uns que compreendem o
movimento das tectônicas do sistema artístico marcado pela contínua presença da
superação pelos sucessores daqueles que formam um sol em torno do qual gravitam
outros astros de seu sistema criativo. É verdade que esse desejo de superação
só é possível de ser demonstrado pela observação de uma obsessão – tão
inovadora, quanto a formação de um novo sistema; isso implica compreender que
certas posturas de criadores que somente se debatem no trabalho de reprovação
da tradição não alcançam o efeito registrado sabiamente por pensadores como T.
S. Eliot ou Harold Bloom.
Noutras
palavras, o processo de superação só se opera não pelo apagamento do
outro, mas pela irmanação com o outro. Isso parece importante considerar
porque é uma posição construída durante todo o tempo de lida com a criação e só
concretizada por uma maturidade que está muito distante de quaisquer gestos
envenenados pela rebeldia e a petulância de jovem, ou pior, a arrogância de
adulto, capaz de encontrar a beleza apenas na destituição ou destruição de seus
pares. Quer dizer, irmanar-se é um gesto puramente consciente e não uma
consequência imposta pela ordem do destino. Mas não é sua concretização algo
que dependa exclusivamente dessa consciência.
Tudo isso
serve para dizer que quando Carlos Drummond de Andrade escreve envenenado
contra Machado de Assis nos alvores da juventude de modernista pequeno-burguês
de Belo Horizonte, quase-inocente sobre as complexas linhas dos sistemas
artísticos, está apenas tomado pelo calor da rebeldia recorrente a figuras profundamente
marcadas pelo ímpeto da criação. Escreve movido por um ódio de pôr-fogo-em-tudo
exceto em si, para utilizar um trocadilho com que escreverá mais tarde nos
versos de “A flor e a náusea”, poema de seu livro da maturidade A rosa do
povo: “Pôr fogo em tudo, inclusive em mim”. Irmanar-se pressupõe uma
dupla sutil movência: meio se apagar para se absorver na fulguração do outro enquanto
se mostra em sua força mais intensa. E, em parte, é que aí assistimos.
É bem
verdade que “Sobre a tradição em literatura”, o referido artigo que aparece em
1925 na sua Revista, expõe de maneira muito autêntica uma compreensão
sobre o termo principal a que se dedica explorar: “Os escritores que falam em
nome de uma tradição são justamente aqueles que mais fazem por destruí-la e
contribuem para a sua corrupção. Ao contrário, aqueles que não se preocupam com
os fantasmas e fantoches do passado mantêm inalterável a linha de independência
intelectual que condiciona toda criação de natureza clássica.” Dessa constatação,
o jovem Drummond compreende a tradição como um movimento contínuo do qual o
presente não consegue nem pode se afastar totalmente: “São estes últimos os
verdadeiros tradicionalistas, por isso que o próprio da tradição é renovar-se a
cada época e não permanecer unificada e catalogada.”
Mas, fica
por aí. Certo ímpeto do espírito jovem leva-o a considerar que a tradição enquanto
sucessão é pura invenção sobre a qual resta às gerações do presente trabalhar
pesadamente por “desrespeitar”. A rebeldia aqui, entretanto, não é apenas a de pequeno
escritor seduzido pelo brio do lugar central no sistema solar dos criadores;
trata-se de uma revolta fabricada com a mesma dose do mesmo veneno utilizado
por aqueles criadores contemporâneos de Drummond interessados em fazer ruir o panteão
sacrossanto dos intelectuais simplesmente por vê-los como apóstatas construídos
à base de uma celebração quase idólatra pelos do presente: “Amo tal escritor
patrício do século XIX, pela magia irreprimível de seu estilo e pela genuína
aristocracia de seu pensamento. Mas se considerar que este escritor é um desvio
na orientação que deve seguir a mentalidade de meu país, para a qual um bom
estilo é o mais vicioso dos dons, e a aristocracia um refinamento ainda
impossível e indesejável, que devo fazer? A resposta é clara e reta:
repudiá-lo. Chamemos este escritor pelo nome: é o grande Machado de Assis.”
Essa
compreensão do jovem mineiro não é ainda somente rebeldia. Nem prepotência. É a
expressão de uma consciência em plena forma sobre a irmanação. Parecerá,
à primeira vista, que essa constatação destoe um tanto daquilo que foi lido por
Hélio Seixas Guimarães em Amor nenhum dispensa uma gota de bile, livro
que reúne um conjunto de produções literárias de Carlos Drummond de Andrade que
perfazem o que o organizador chama de percursos entre negação e reafirmação de
Machado de Assis. Na antologia, o texto citado acima funciona como uma baliza
entre esses dois tempos; o outro polo são as manifestações de celebração ao Bruxo
do Cosme Velho atadas em textos como o poema “A um bruxo, com amor”, escrito
por ocasião do cinquentenário da morte de Machado, em 1958, e depois incluído
no livro A vida passada a limpo.
É que entre
a reverência e a espreita é sempre problemático reduzir esta última à mera
força da negação e os textos reunidos por Hélio Seixas Guimarães provam isso:
um Drummond impetuoso, depois reticente, mas nunca incapaz de reconhecer os
amplos limites do autor de Dom Casmurro; um escritor que espera alcançar
uma alternativa de trapacear o cânone. Se voltarmos ao artigo da Revista
não deixaremos de notar na mesma linha os termos repudiar e grande.
Ao ensaísta incomoda não propriamente o escritor, mas o adjetivo que o
acompanha, pela força que o catapulta a uma ordem do inacessível. Assim, o curioso
no texto do poeta mineiro é a precoce consciência sobre os meandros das
relações de influência criativa; repudiar não é detratar o escritor,
sobretudo porque, como ressalta o próprio organizador de Amor nenhum...,
a todo tempo o poeta de Alguma poesia tem ciência do lugar silente
ocupado por Machado entre a tradição e a renovação de seu tempo.
Assim, não
parece sensato dizer que as relações construídas por Carlos Drummond de Andrade
com a obra de Machado de Assis tenham se revestido duma inveja que o levasse
seu rival à guilhotina; também não é dessa maneira que podemos perceber esse
embate, tal como Harold Bloom, quem descodificou tais relações pelo conceito de
angústia da influência, percebe. O poeta de Itabira não é um parricida. A
complexificação do embate entre gênios, como bem observa Hélio Seixas Guimarães,
se oferece por um sentimento oscilante entre a admiração desinteressada e o reconhecimento
público – jamais em negação da influência ou mesmo morte dela. É
possível mesmo compreendê-la como uma forma antropofágica que consiste não na
deglutição do escritor, mas na reapropriação de suas nuances, reinventando inclusive
a própria noção de criação, vista pelo primeiro como negação total de si e pelo
segundo como mascaramento e revelação de si.
Um dos
princípios mais caros da literatura machadiana regeu-se pela seguinte síntese: “Se
a missão do romancista fosse copiar os fatos, tais e quais eles se dão na vida,
a arte era uma coisa inútil; a memória substituiria a imaginação”. Drummond,
que nunca se viu como romancista, pode, como poeta, posicionar-se justamente no
limite entre a vida e a imaginação. Pode, com isso, inaugurar outra linha na
tradição da literatura brasileira. E, foi apenas quando construiu essa
consciência, que passou definitivamente do lugar de admirador encabulado para o
de admirador entusiasta. A riqueza do trabalho de Hélio Seixas Guimarães é
revelar isso da forma mais natural e autêntica. O pesquisador apenas se imiscui
por entre os textos de uma vida para deixar que voz de um delineie a imagem do
outro e de si (o poeta).
O título
encontrado pelo antologista é colhido de um depoimento de Carlos Drummond de
Andrade, o leitor, apresentado em Tempo vida poesia: confissões no rádio;
é um título que remata o que aqui se definiu pela ideia de irmanação. “O
Altivo, que estudava direito no Rio e me mandava jornais, revistas, me passava
livros de Flaubert e Fialho de Almeida, os daquele traduzidos, de sorte que
fiquei conhecendo Salambô e A educação sentimental, meio
desfigurados pela operação plástico-verbal da língua, mas ainda assim dava para
farejar-lhes o cheiro original. Principalmente do segundo, pois o primeiro me
assustou um pouco, pela magnificência do espetáculo e do estilo: altas
cavalarias para o mineirinho pedestre. Passar de Fialho a Eça foi um salto de
vara curta: fiquei freguês do segundo e, pela graça de Deus, cheguei cedinho a
Machado de Assis.” Logo encontramos um poeta que compreende os seus primeiros
passos pelo universo literário, como alguém que ávido pela leitura busca, por
entre as várias possibilidades, seu próprio universo e sua própria voz.
Sobre Machado,
conclui o poeta: “Deste não me separaria nunca, embora vez por outra lhe tenha
feito umas má-criações. Justifico-me: amor nenhum dispensa uma gota de ácido. É
mesmo o sinal menos que prova, pela insignificância e transitoriedade, a
grandeza do sinal mais. Se me derem Machado na tal ilha deserta, estou
satisfeito; o resto que se dane, embora o resto seja tanta coisa amorável.” As
duas posições-limite do poeta se revelam de maneira precisa pela transposição do
senso comum segundo o qual não há amor que se sustente sem uma dose dos seus
sentimentos mais opostos. Sim, das relações pessoais às relações de criação.
Sobretudo quando tais relações se formam por pares situados em posições assemelhadas;
Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade são dois sóis dentre os vários que
constituem nosso universo literário. E, que ótimo percebê-los alinhados nestes
textos.
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