As mulheres que habitam a Maga, de O jogo da amarelinha
Por Nancy
Paola Moreno
Ilustração: Katy Horan |
Lucía, ou
melhor, Maga, se nega a aceitar o aceitável. É a revelação da desordem a causa
do fracasso das leis em sua vida. Desse caos constrói uma ordem misteriosa,
inacessível e talvez mágica. É a negação daquelas lições aprendidas e
replicadas pela maioria das meninas no mundo: deves ser virtuosa e serás uma
grande mãe e esposa. Não era ensinar. Doutrinaram, as meninas cresceram e sofrem
por causa dessa sentença imposta.
A Maga é o
retrato de uma soma de imperfeições que pode ser luz. Adora a cor amarela e os
cigarros Gitanes. Não quis acreditar naquela invenção humana da perfeição. Seu mistério
a converteu numa mulher vital e complexa. Numa eterna pergunta que jamais se
extingue. Sofre irremediavelmente ao retornar para suas recordações, mas é capaz
de nadar extensos rios metafísicos que nenhum homem compreenderia.
Nunca entende
o que é ser mãe. Mas, sem nenhuma dúvida, a carta que escreve ao seu filho
Rocamadour está repleta de uma ternura e amor transbordantes. Sua melancolia
obriga o leitor a seguir as “instruções para chorar”. É impossível não lembrar
aquele garotinho transformado em dentezinho de alho, nariz de açúcar,
arvorezinha, brinquedo de cavalinho.
Vive com Horacio
de Oliveira. Maga sofre com seus julgamentos implacáveis e dolorosos porque ela
chora ao ouvir uma canção que lhe recorda Rocamadour, sua falta de jeito em
assuntos intelectuais ou porque não entende que a vida é muito mais que aquilo
que se costuma ler nos romances. Mas, aquele homem culto não consegue dobrar o
espírito feminino do mundo Maga. E não foi necessário fazer parte das mais diferentes
discussões acadêmicas ou filosóficas para que Rosa Parks um dia não se levantasse
de um assento no ônibus porque um homem branco devia se sentar ali. E assim fez
história.
E começaram
a entender que, sem deixar de ser elas, fariam pequenas revoluções, porque só
assim não poderiam traírem a si próprias. Que uma pequena convicção era
suficiente para não renunciar e deixar de sentir as culpas herdadas, já que a
mulher devia ser perfeita para eles.
Inconscientemente,
Maga se converte em testemunha e olhar vigilante na busca do mundo da razão de Oliveira.
Muito além da ficção, algumas mulheres foram relacionadas com esta personagem
que cativou várias gerações de leitores.
Edith
Aron: Maga que nega ser Maga
No dia 6 de
janeiro de 1950 toma o barco chamado Conte Bicamano. Na mesma embarcação, viajava Julio Cortázar até Paris. Ali se viram pela primeira vez quando o
escritor argentino tocava piano. O mar ficou para trás, ela ficou em Cannes.
Tempos
depois, Edith Aron chegou a Paris. Apenas se reconheceram numa livraria. Nos dias
seguintes o acaso voltou a fazer com que se reencontrassem na bilheteria do
cinema Joana D’Arc. E depois nos Jardins de Luxemburgo. Julio Cortázar concluiu
que quatro coincidências bastavam para começar uma relação. O acaso não poderia
ser apenas acaso. “Encontraria a Maga? [...] a maga que sorria sempre, sem
surpresa, convencida, como eu também o estava, de que um encontro causal era o
menos casual em nossas vidas.”
Edith Aron
era tradutora. Ajudou Julio Cortázar a encontrar um emprego como organizador
numa exportadora de livros judeus, que ficava na esquina de sua casa. Era o pretexto
para que o escritor a visitasse na hora do almoço. “Me dizia que fizera uma
salada azul. Eu não tinha ideia do que era isso. Então ele pegava qualquer
salada e enchia de papéis azuis. A todo tempo fazia esse tipo de brincadeira, nas quais
eu nunca me sentia a par. Me incomodava porque ele sabia tanto e eu sabia tão
pouco!”, disse Aron numa entrevista enquanto menciona o nome de Aurora
Bernárdez, como o de um fantasma que Cortázar havia deixado em Buenos Aires e que sempre
esteve presente. Tinha claro que o reencontro significava, para ela, perdê-lo.
Edith Aron
comenta no jornal El Clarín: “Ele me escreveu dizendo que havia se
baseado mim para sua personagem, e entre nós aconteciam, é verdade, coisas espontâneas como
as do romance. Também alguns episódios, como esse em que encontramos um
guarda-chuva velho nas ruas de Paris e oferecemos-lhe uma cerimônia de enterro,
aconteceram mais ou menos como nos conta. Mas a Maga é uma personagem literária”.
Nega ser a
Maga e diz que Rocamadour nunca existiu, ou melhor, que foi uma metáfora
simbolizando o fim do amor entre ela e o escritor. Nunca entendeu por que
Cortázar não levou em conta que poderia ser sua tradutora. “Não necessito dizer
a você quem é Edith, você deve ter adivinhado quem é há muito, não é verdade?
Então, você imagina Rayuela traduzida por ela? [...] Em Rayuela,
você deve lembrar, a Maga confundia Tomás de Aquino com o outro Tomás. Isso aconteceria
a cada linha”, escreve Julio Cortázar ao tradutor Paco Porrúa, em 1964.
Aurora
Bernárdez: a Maga esposa
No final de
1953, Autora Bernárdez chega à França. Casa-se com Cortázar. Catorze anos
depois se divorciam. Foi reconhecida uma das melhores tradutoras para o espanhol.
Quando morreu, em 8 de novembro de 2014, o escritor nicaraguense Sérgio Ramírez
escreveu: “Morreu Aurora Bernárdez, a Maga de Rayuela, a Maga de Cortázar,
um mito da literatura que nos acompanhará”.
Alejandra
Pizarnik: muito da Maga
A escritora
argentina viaja a Paris em 1960. Dizem que conheceu Julio Cortázar sobre a Pont
de Arts, o lugar favorito da Maga. Outros asseguram que Pizarnik foi encontrá-lo
na sede da UNESCO.
O fato é que
o encontro fez nascer uma amizade cúmplice em parte por sua atração pelo surrealismo.
“Quero você viva, burra, e se dê conta que estou falando com a linguagem
própria do amor e da confiança – e tudo isso, caralho, está do lado da vida
e não da morte. Escreva-me, buceta, e perdoe o tom, mas é como desceria seu maiô
(rosa ou verde?) para lhe dar uma surra dessas que dizem te quero a cada
chicotada”, escreve Cortázar pouco antes do suicídio da poeta.
Alejandra
Pizarnik sentia que a Maga tinha muito dela. “Esquecia-me de lhe dizer que a
Maga de Rayuela me fez lhe recordar, em alguns relâmpagos”, escrevia-lhe
sua amiga Ivonne Bordelois. Depois do suicídio de Pizarnik, Cortázar disse que
a Maga foi escrita antes de conhecer a escritora.
* Este texto é uma tradução “Las mujeres que habitan a La Maga de Rayuela”, publicado aqui em El Espectador. A citação de O jogo da amarelinha apresentada neste texto é da tradução de Fernando de Castro Ferro, da edição da obra apresentada pela Civilização Brasileira.
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