A chave, de Junichiro Tanizaki

Por Joseph Lapidario



Nesta época quando os diários pessoais se tornaram semipúblicos, poderá parecer estranho o ponto de partida para A chave, grande peça da literatura erótica escrita por Junichiro Tanizaki. No romance, um casamento tradicional com vida sexual muito pobre chega em 1956 ao vigésimo aniversário. Ele é um cinquentão de saúde frágil, ela se mantém ativa e bonita aos quarenta e cinco anos. Ele decide começar a escrever um diário e flerta com a ideia de que ela leia, já que sabe perfeitamente onde os escritos estão guardados. Para não ficar por baixo, ela também começa seu próprio diário e estabelece um curioso jogo implícito repleto de ambiguidades, tensão sexual e duplos sentidos. 

Embora os dois se neguem ofendidos em seus respectivos diários, está mais ou menos claro que cada um lê o diário um do outro e aproveita para enviar mensagens, pistas sobre infidelidades mais ou menos consentidas e buscadas, suposições, medos, obsessões.  

Até que uma situação irrompe revelando o que se passará depois do imbróglio narrativo: Ikuko (a poderosa, tradicional e recatada do lar) cai inconsciente por uma mistura de álcool e tranquilizantes e o companheiro leva-a para cama. Dando-se conta que tem uma oportunidade imemorável de vê-la completamente nua pela primeira vez em toda sua vida de casados, atreve-se a despi-la das incontáveis camadas de roupa para admirar, acariciar e possuir ventre, seios, coxas, pés, pescoço... Uma coisa leva a outra; e que maneira melhor de imortalizar esse momento que trazer uma câmera fotográfica e registrar tudo sob uma potente luz elétrica?

Esta ansiedade de erotizar o corpo feminino oculto através da luz é muito significativa se levarmos em consideração que Tanizaki é o autor do famoso ensaio Em louvor da sombra, texto no qual celebra as virtudes orientais da penumbra, da sombra e da meia-luz frente à tendência ocidental da elevada iluminação. A evidente ocidentalização do marido (que é leitor de Faulkner, compra roupa inglesa e usa câmeras alemãs) acrescenta um ingrediente a mais de contraste com o mundo das restritas tradições onde Ikuko foi educada. Num matiz que é inevitável perder na tradução, as entradas de Ikuko para o seu diário estão escritas empregando o Hiragana (silabário criado originalmente por mulheres da aristocracia e considerado mais feminino, tradicional ou mesmo infantil), enquanto que o diário do companheiro emprega profusamente o Katakana (silabário criado originalmente por monges budistas e é considerado mais masculino e um pouco moderno).

À medida que avança a renovada relação erótico-sexual entre os dois vemos um progressivo toque de uma refinada crueldade nada surpreendente num autor com Tanizaki, muito hábil ao retratar com finura e elegância relações eróticas extremas. É, antes de tudo, o autor de obras como Jotaro, o masoquista ou impressionante e cruel conto Shisei.

Um dos pontos marcantes do romance é o constante ir e vir de interpretações sobre a personalidade de Ikuko à medida que avançam as páginas de seu diário: ingênua libertina, perigosa femme fatale, tímida dama vencida pelas circunstâncias? Inexplicavelmente, Tanizaki destrói essa ambiguidade nas últimas páginas de A chave, com uma entrada final de Ikuko que revela claramente muitas das suas ações anteriores. Como o mestre da sombra e da meia-luz elimina as sombras da história e não deixa o veredito sobre o “enigma Ikuko” nas mãos do leitor?

Exceto isso, A chave é um romance delicioso e sutil, que além de oferecer um cáustico retrato de uma época, mostra de forma elegante e insinuante várias facetas do erotismo à flor da pele: voyeurismo, exibicionismo, fetichismo pelos pés, traições consentidas e uma atração pela beleza adormecida semelhante ao leva Yasunari Kawabata na composição de A casa das belas adormecidas.

Em 1960, quatro anos depois da publicação do livro, o diretor japonês Kon Ichikawa realizou uma interessante adaptação do romance para o cinema que não convenceu alguns fãs da obra literária mas obteve o Prêmio do Júri no Festival de Cannes.

Algumas décadas mais tarde, em 1983, o diretor italiano Tinto Brass (sim, o autor de joias do erotismo soft-core como Salon Kitty ou Calígula) decidiu filmar uma adaptação mais livre de A chave, transferindo a ação do Japão moderno para a Itália de começo do fascismo. Longe de ser uma maravilha, o filme é muito bem realizado tanto do ponto de vista estético (ambientação, fotografia, música de Enio Morricone) como do roteiro (esses paralelismos entre a deriva de algumas personagens o auge do poder do Duce)... E permite desfrutar de uma Stefania Sandrelli no auge do esplendor sensual, antes de sua aparição em Jamón Jamón, de Bigas Luna.

Ao terminar a leitura de A chave restam ainda interesse de levar adiante um diário. Para quem se decidir por isso, é recomendável empregar um documento no Google Docs, protegido com uma senha que talvez, se tiver curiosidade, poderá ser descoberta por seu/a companheiro/a.

* Este texto é uma tradução de “La llave”, publicado aqui, em Jot Down.

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