1984, de George Orwell. 70 anos depois
Eric Arthur
Blair (mais conhecido como George Orwell) não conseguia gostar do título O
último homem na Europa. “A ideia do livro é boa, mas a execução poderia ter
sido melhor, se não tivesse escrito sob a influência da tuberculose”, advertiu
antecipadamente ao seu editor Fred Warburg, que queria um título mais
comercial. “Estou inclinado a 1984”, reagiu o autor, “embora poderia pensar
em algo diferente nas duas ou três semanas seguintes”.
Mas, não deu
mais voltas e quanto entregou o datiloscrito final – escrito numa velha máquina
de escrever ora na cama e entre nuvens de fumaça dos seus inseparáveis cigarros
– bastou inverter a data de entrega do arquivo dezembro de 1948 por 1984. Embora
exista quem defenda que o ano é também uma referência ao centenário da
Sociedade Fabiana (fundada em 1884) ou uma homenagem ao seu querido Chesterton,
que situou O Napoelão de Notting Hill numa fictícia “realidade alternativa”
de 1984 em Londres.
A sorte
literária estava lançada; o relógio marcava treze horas e Orwell não podia mais
reescrever um capítulo sequer por prescrição médica. O doutor Andrew Morland
lhe disse que esse livro havia consumido sua saúde a tal ponto que precisava
deixar de escrever durante um ano para garantir sua própria sobrevivência. Acatou
as ordens, se despediu de Londres, da ilha escocesa de Jura onde havia se
isolado do mundo para mergulhar em definitivo na maratona da escrita de seu romance
definitivo e se internou num sanatório para tuberculosos em Costwolds, onde percebeu,
na primavera de 1949: “Tudo está florescendo, menos eu”.
No dia 8 de
junho de 1949 (cinco dias depois nos Estados Unidos) veio finalmente à luz 1984
e foi logo aclamado pela crítica e pelo público. Um de seus primeiros leitores
foi Winston Churchhill, que assegurou ter lido a obra duas vezes, numa sentada.
O autor de Revolução dos bichos e Homenagem à Catalunha recebeu,
na cama do hospital, um eco do sucesso e do reconhecimento.
Conseguiu
forças para voltar do retiro e casar-se com Sonia, em quem muitos quiseram ver
Julia, a salvação pessoal de Winston em 1984: “O corpo dela parecia
transmitir ao seu um pouco de juventude e vigor”. No fim, a morte de sua
primeira esposa, Eileen, em 1945, havia acentuado em Orwell esse pessimismo vital
que arrastava desde sua experiência direta da luta fratricida da esquerda na Guerra
Civil.
“Estou
escrevendo um maldito livro que trata sobre o estado das coisas se uma guerra
atômica acabar conosco”, confessou enquanto estava no exílio literário. “Outro
problema é que o texto tem muitos neologismos”, dizia aos editores no momento
de justificar seus atrasos.
Orwell não tardou
em se render ao peso do Grande Irmão, da novilíngua, da vigilância
mental, dos “dois minutos de ódio” e de tantas descobertas verbais que formam
parte do imaginário universal. O autor de 1984 morreu em janeiro de
1950, aos 46 anos, depois de 227 dias da publicação do que desde então passou a
figurar como uma das obras imortais do século XX (mesmo que Harry Bloom e Milan
Kundera a consideram apenas “um panfleto disfarçado de romance”).
1984 não
foi a primeira distopia; o próprio Orwell reconheceu ser um devedor do russo Ievguêni
Zamiátin e seu romance Nós. Mas, o ano quando foi publicada, em pleno
pós-guerra e sob a espectro nuclear, deu-lhe um contexto que volta e meia regressa
no imaginário e nas curvaturas da história.
“Mais que
uma profecia, 1984, continua sendo uma advertência”, escreve Dorian
Lynskey em The Mistery of Truth (O mistério da verdade, em tradução livre),
livro consagrado à escrita de 1984 e a tudo o que veio depois, incluindo
a projeção de uma era da pós-verdade. “Durante a Guerra Fria se associou o medo
ao totalitarismo (“I’ll be watching you”). Hoje, em meio ao auge do populismo e
dos nacionalismos, é sobretudo uma defesa da verdade”.
“O conceito
de verdade objetiva está desaparecendo do mundo”, escreveu Orwell depois da
lacerante experiência na Guerra Civil espanhola, para onde foi impulsionado pelo
idealismo de sua juventude. “Alguém terá que conter o fascismo!” O que o autor
de 1984 não chegou a prever é esta mistura explosiva de “cinismo e
verdade” amplificada pelas redes sociais e com a generosa contribuição da
inteligência artificial. Bem-vindos à era do “Deep Fake”, quando as imagens
falsas são manipulares para parecer reais, enquanto as imagens reais são
descartadas como falsas.
Nove coisas
inquietantes que já estavam em 1984 de Orwell e agora temos em casa
Por
Eduardo Bravo
O livro já
vendeu mais de 30 milhões de exemplares e volta e meia figura entre os mais
vendidos em listas diversas: das últimas vezes, em 2013, depois das descobertas
de Snowden, e, em 2017, com a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados
Unidos. A distopia imaginada por George Orwell (Índia, 1903 – Reino Unido,
1950) em seu livro 1984 é o exemplo mais recorrente quando se quer
explicar como seria uma sociedade ditatorial do futuro. Nele se descreve um
Estado que é governado pelo Grande Irmão através de uma série de mecanismos e
dispositivos que, longe de pertencer à ficção científica, convivem conosco na
atualidade. Orwell publicou o livro em 8 de junho de 1949. A seguir,
apresentamos algumas das coisas que o escritor imaginou e já agora estão em
qualquer casa.
1.
Microfones que nos gravam com o fim de nos controlar
Todos os
lugares urbanos de 1984 estão tomados por câmeras e microfones. Mesmo
nas zonas rurais, onde se supõe que chega o controle do Grande Irmão, também se
encontra um ou outro microfone para controlar os cidadãos. A quantidade de
informação registrada era tanta que os receptores possuem um sistema de
reconhecimento de voz para facilitar a identificação dos dissidentes.
Em 1984,
o encarregado da vigilância das gravações é o Estado; hoje essas gravações
são realizadas por empresas privadas. A Google, por exemplo, espia os usuários
de seu buscador empregando o microfone do computador. Já não basta colocar algo
para esconder a câmera do computador, é preciso também tapar o microfone.
2. O falascreve
No futuro
imaginado por George Orwell as pessoas apenas escrevem. “A caneta era um A pena
era um instrumento arcaico, raramente usada, mesmo em assinaturas”, explica o
narrador, que descreve Winston Smith, o protagonista, como um homem que “não
estava habituado a escrever à mão”; “Exceto recados curtíssimos, o normal era
ditar tudo ao falascreve”. Este dispositivo, presente em escritórios e
domicílios registrava a voz humana, a convertia em texto e o arquivava.
O falascreve
parece um parente remoto das mensagens de voz de WhatsApp, embora um pouco
diferente porque o dispositivo de então não se pode levar num bolso como um
celular. Em todo caso, desde quando os desenvolvedores incorporaram a
possibilidade de mensagens de voz no aplicativo, o que mais tem acontecido é as
pessoas se esquecerem de se comunicar pela mensagem escrita.
3. Os Dois
Minutos de Ódio
O Grande
Irmão e sua estrutura opressora organizam diariamente o que chamam “Dois
Minutos de Ódio”. Durante esse tempo, as teletelas emitem informações sobre
inimigos do sistema e os membros do partido devem expressar sua raiva. Aqueles que
esses 120 segundos de linchamento ainda parecem poucos são celebrados uma vez
no ano na “Semana do Ódio”.
Os “Dois
Minutos de Ódio” de 1984 se parecem muito com as redes sociais
(especialmente o Twitter). Através de suas telas e dispositivos móveis os
usuários lançam fel contra os inimigos de Estado, contra seus vizinhos, contra aquele
artista que detesta, contra aquele jogador que falha no jogo... A diferença de 1984
é que no Twitter ainda se faz isso de forma anônima e sempre de maneira
voluntária. O ódio não como obrigação, mas como vocação.
4. A
teletela
Colocada no
interior dos domicílios ou dos recintos públicos, as teletelas transmitem
mensagens institucionais e recopiam informações do seu entorno. Segundo se
explica no livro, “A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Qualquer
barulho que Winston fizesse, mais alto que um cochicho, seria captado pelo
aparelho; além do mais, enquanto permanecesse no campo de visão da placa
metálica, poderia ser visto também.”
A teletela é
o mais parecido com a Alexa da Amazon, a Google Home, e sua evolução, Nest Hub
Max, o portal Facebook ou mesmo esses televisores inteligentes conectados à
Internet que, os usuários, sem saber, estão sendo gravados dentro de casa.
Dispositivos que ao mesmo tempo que lhe oferecem música online, fazem compra,
apagam as luzes da sala ou gravam um áudio enquanto cantas no chuveiro e ainda
um vídeo quando estamos à sua frente.
5. Alguém
controlando o correio dos cidadãos
No romance
de Orwell, o Grande Irmão controla todas as comunicações dos cidadãos,
inclusive as que se realizam por correio. Por isso, e pela existência do
falascreve, apenas escrevem cartas. Assim, o narrador explica que “Quando,
ocasionalmente, havia necessidade de se mandar uma comunicação, existiam
cartões postais impressos com longas listas de frases, e o cidadão riscava as
que não se aplicavam.”
Recentemente,
o serviço de correio do Gmail passou a oferecer a opção de responder os e-mails
com uma série de palavras ou frases que fazem referência ao conteúdo da
mensagem recebida. Graças à inteligência artificial e aos algoritmos, as opções
sugeridas pelo computador se encaixam perfeitamente no contexto de conversação.
Noutras palavras, há um algoritmo que, como acontecia com o Grande Irmão, está
lendo sua mensagem. Esperamos que seja discreto e que não conte nada a ninguém.
6. A música metálica
“O Café
Castanheira estava quase vazio. Um raio de sol, entrando em oblíqua pela
janela, caia amarelo sobre as mesas poeirentas. Era a solitária hora das
quinze. Das teletelas escorria uma música metálica”, diz o narrador. Quando o livro
foi publicado, em 1949, o comum era que nos locais públicos a música ficasse por
conta de uma pequena banda ou um grupo de músicos; assim, o fato de a música
surgir de um dispositivo eletrônico era pura ficção científica.
Atualmente,
é raro se encontrar um grupo interpretando uma música ao vivo num local. A
otimização dos custos e as leis fizeram com que a maioria dos lugares usem
música metálica (gravada). Essa música que na origem tinha um suporte, fosse
uma fita, um disco de vinil ou um CD, se reproduz agora através da Internet a
partir de plataformas como Spotify ou dispositivos conectados às redes WiFi. Isso
que se parece ficção científica, não passou pela cabeça de Orwell. Enquanto nos
shows o que mais se nota na indústria da música são os Dj de grande fama como
David Guetta atuando com música gravada de um pendrive.
7. O
Ministério da Verdade
Os lemas da
sociedade descrita em 1984 é: “GUERRA É PAZ. LIBERDADE É ESCRAVIDÃO.
IGNORÂNCIA É FORÇA.” O ministério de propaganda se denomina Ministério da Verdade.
Desta instituição procedem as declarações oficiais e é também nela onde se modificam
os fatos históricos que, seja qual for a razão, não convêm que se narrem como
realmente aconteceram.
Recentemente
e ante a avalanche de Fake News nas redes sociais, vários dirigentes
políticos investem na criação de um grupo que, a partir do próprio lugar de
administração se encarregaria de determinar quais notícias são verdadeiras e
quais são falsas. Se à primeira vista a ideia parece louvável, dizer que o
Estado se encarregue de determinar o que é ou não verdade, parece uma piada de
mau-gosto. O Ministério da Verdade e sua capacidade para mudar os fatos acontecidos,
relembra também o direito o direito ao esquecimento do Google ou mesmo de
empresas que se dedicam a pressionar os meios e associações para que eliminem
dados referentes aos seus clientes.
8. A novilíngua
Entre os
métodos utilizados Estado autoritário de 1984 para submeter seus
cidadãos se encontra a linguagem. Periodicamente se publicam dicionários que
reduzem o número de palavras por considerar que a variedade léxica complica a
comunicação ao invés de enriquecê-la. A importância da novilíngua é no universo
forjado por George Orwell tamanha que, no final do livro o escritor incluiu um
apêndice dedicado a explicar as características desta nova forma de comunicação
que, segundo as autoridades, deveria estar totalmente implantada até 2050. Para
isso, também estavam traduzindo para a novilíngua livros clássicos de autores
como Charles Dickens, William Shakespeare, John Milton ou Jonathan Swift porque,
uma vez que “a história era um palimpsesto, raspado e reescrito tantas vezes
quantas fosse necessário”
A popularização
dos emoticons e emojis na comunicação cotidiana fez com que muitos dos gurus da
Internet defendam que esses símbolos poderiam ser a linguagem do futuro porque
são fáceis de utilizar e compreensíveis por qualquer pessoa, independente do idioma
que fale. Deixando de lado que isso não é totalmente verdade, uma vez a
existência de diferenças culturais que fazem com que um mesmo emoji se
interprete de forma diferente, há os que embarcaram na ideia de traduzir clássicos
da literatura para essa forma de linguagem ou mesmo estão selecionando
tradutores de inglês-emoji emoji-inglês para suas empresas.
9. A máquina
de escrever romances
Julia, a
protagonista de 1984 juntamente com Winston Smith, trabalha para o
Departamento de Ficção manuseando uma máquina de escrever romances. Esta
invenção parte de estruturas argumentativas muito sensíveis que se enriquecem
com situações, personagens e detalhes até criar um romance que é impresso e
colocado à disposição dos leitores. A qualidade do produto não é boa, mas serve
para os fins do Grande Irmão. O mesmo método é empregado para criar narrativas
pornográficas destinadas a entreter os da prole, como se chama a classe mais baixa
da sociedade imaginada por Orwell.
Graças à inteligência artificial já se consegue
escrever notícias utilizando algoritmos que, seguido a pauta oferecida,
interpretam os diferentes dados e redigem o texto. Não é loucura pensar que,
num futuro não muito distante, essa inteligência artificial possa criar
narrativas mais extensas e complexas. No mais, não seria de duvidar que autores
de prolífica produção já tenham uma máquina de escrever e ainda não disseram
nada a ninguém...
* A primeira parte deste
texto é uma tradução de “La novela 1984 cumple 70 años en plena era de
la posverdad”, apresentado no jornal El Mundo; a segunda, de “Nueve inquietantes cosas que ya estaban en 1984 de Orwell y ahora tienes en tu casa”, apresentado no jornal El País.
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