Shane: um olhar sobre a violência no cinema western
Por Davi Lopes Villaça
Um dos
momentos-síntese do clássico cinema faroeste, Shane (1953), do diretor George
Stevens, ajudou a compor aquele vasto universo ficcional, livremente inspirado
na história da colonização do oeste dos Estados Unidos, que se enraizou no
imaginário do público (não só do americano) como mito fundador de toda uma
nação. O filme aborda uma questão bastante delicada, referente à contraditória
relação de dependência entre civilização e violência.
Uma pequena
colônia de fazendeiros é hostilizada por um bando de vaqueiros que deseja
expulsá-los da região para dar mais pasto a seus rebanhos. Os dóceis colonos não
têm força nem coragem para medir-se com seus inimigos. Além disso, recorrer à
violência implicaria trair aquilo que eles mesmos representam: o ideal de uma
sociedade pacífica, baseada na justiça e não na lei do mais forte.
Como pode o
civilizado derrotar o bárbaro, que justamente por ser bárbaro é mais forte do
que ele? Mais ainda, como pode derrotá-lo, sem para isto ter de descer ele
mesmo à barbárie? Estes são problemas antigos. Estão presentes na mitologia
grega, como nos dá a conhecer Hesíodo na Teogonia. Jean Pierre Vernant
apresentou sua leitura desse poema em O universo, os deuses, os homens, e nela nos
damos conta de que a resposta que se desenvolveu em Shane para o dilema da
violência vai, até certo, ponto, ao encontro do que os antigos gregos imaginaram.
Quando o
mundo ainda era jovem, os Olímpios, a geração mais nova e mais civilizada de
deuses, guerrearam contra seus antecessores, os Titãs, filhos diretos de Gaia,
a Terra, e portanto mais poderosos, uma vez que mais próximos das forças
caóticas e avassaladoras que deram origem ao universo. Para derrotá-los, Zeus e
seus pares tiveram de se aliar aos Ciclopes e aos Hecatônquiros, irmãos de seus
adversários, tão fortes e bárbaros quanto eles. A respeito disso, Vernant
observou:
“Esses deuses
Titãs são divindades primordiais, que ainda têm toda a brutalidade das forças
naturais, e para vencer e subjugar as forças da desordem é preciso incorporar o
poder da desordem. Seres puramente racionais, puramente ordenados, não
conseguiriam vencer; Zeus precisa contar com protagonistas que encarnem as
forças da brutalidade violenta e da desordem apaixonada, representadas pelos
Titãs”.
Que o poder
da desordem precise ser incorporado não significa que o ser racional deva
tornar-se desordenado, como aqueles que ele pretende derrotar. É o contrário: a
civilização tem que se aliar à barbárie porque não pode nem deve tornar-se
bárbara ela mesma. Nesse sentido, tampouco pode permitir que o poder que ela
incorporou possa continuar existindo dentro de suas fronteiras. Na Teogonia,
uma vez assegurada a vitória, com os
Titãs aprisionados no Tártaro, os deuses concederam aos Hecatônquiros –
gigantes de cem braços, descomunais e monstruosos – o posto de guardas da
prisão infernal. Astutamente garantiram, desse modo, que também esses seres,
símbolos de força desmedida, resquícios de uma brutalidade passada, não fossem
vistos nem tomassem parte no que se passava debaixo do sol.
Em Shane, os
vaqueiros, tal como os titãs da mitologia, são representantes de um poder mais
antigo e desordenado. Já estavam lá antes dos fazendeiros, foram os primeiros a
domesticar a região, no embate contra os índios e a natureza hostil. Mas desde
que se fixaram nada fizeram além de criar gado e disputar território. Os
colonos, por sua vez, representam o germe de uma nova fase civilizatória:
fundariam cidades e com estas viriam escolas, hospitais, a terra seria
demarcada, as velhas disputas chegariam ao fim. Mas, para isto, é preciso que o
velho ceda lugar ao novo, o que se complica quando o velho, outrora um agente
da civilização, torna-se ele mesmo uma recusa de seu desenvolvimento.
Vale lembrar
que na maior parte do cinema faroeste a figura do vaqueiro, do caubói,
desempenhou a função de mocinho (veja-se a enorme lista de filmes com John
Wayne). Ele era a junção da valores cordiais e viris, dotado de um
inquebrantável senso de honra e decência, ao mesmo tempo pronto a se bater com
os inimigos mais selvagens – como os índios em ataque às diligências. Diante
das extensas pradarias, desse vasto mundo em aberto, ele era o desbravador, o
pioneiro, expressão máxima do self-made-man, espécie de Robson Crusoé nessa
grande ilha que é a América. Mesmo em Shane, o mundo que os colonos sonham
construir seria impensável sem a existência dos vaqueiros. Da mesma forma, na Teogonia,
antes que os deuses lutassem contra os titãs, estes tiveram que derrotar um ser
ainda mais poderoso e primitivo: Urano, o céu, pai de toda a linhagem divina. Esses
poderes “antigos”, que em algum momento foram também novos, representam um
passo necessário para o desenvolvimento da ordem do mundo tal como o conhecemos.
Eles só se tornam propriamente nocivos quando passam a representar, eles
mesmos, um obstáculo a esse desenvolvimento, como agentes paralisantes do
tempo, sufocando a força viva e criadora do presente.
Para vencer
o bárbaro, o civilizado deve, como disse Vernant, “incorporar o poder da
desordem”. Mas isto, num certo sentido, fora mais fácil para os gregos do que
para os criadores de Shane, dada a sua preocupação moral. Como admitir, pois,
que aquela comunidade essencialmente boa e justa – semente da sociedade atual,
que portanto também deve ser admirada na sua bondade e justiça –, possa descer
a um nível tão baixo, incorporando a selvageria de seus inimigos? Os olímpios,
preocupados sobretudo em vencer, podiam simplesmente, uma vez terminada a
guerra, mandar seus antigos aliados para debaixo da terra, junto com tudo
aquilo que não combinasse com a nova ordem do mundo. No caso americano, a
questão era mais delicada. Fazia-se necessário que a sociedade permanecesse moralmente
imaculada pelo contato com a antiga violência, tão boa e pacífica quanto antes.
É aí que
entra em cena a figura do mocinho, Shane, o forasteiro vindo sabe-se lá de
onde, bondoso e altruísta, mas com uma misteriosa mancha em seu passado. Trata-se
de um ex-pistoleiro, arrependido de seus tempos de duelo. Ele ainda carrega sua
arma, como espécie de estigma, lembrete de uma culpa impossível de se expiar.
Emprega-se, como fazendeiro, a serviço dos colonos, aspirando assim a romper
com seu passado violento. Mas o conflito com os vaqueiros o obriga novamente a
pegar em armas, para defender a boa
gente que o acolheu. Uma vez derrotados os inimigos, ele deve partir, a
contragosto seu e daqueles cujo futuro salvou. Por quê? O herói tem uma
resposta para isto: “não há como conviver com o assassinato. Não há como voltar
atrás. Certo ou errado, é uma marca, uma marca que gruda. Não há como voltar”.
Aqui temos uma
concepção arcaica de crime, que não leva em conta o caráter do ato (“certo ou
errado”), mas apenas o ato em si mesmo. Essa concepção é anterior à existência
de sistemas judiciários, de instituições que buscam avaliar o comportamento dos
homens de forma racional. Ela está muito mais próxima de um sistema mítico e
religioso, em que determinadas ações são boas ou más em si mesmas, em função do
que atraem boa ou má sorte. A partir disso podemos pensar na semelhança de
Shane com outras personagens da Antiguidade, em especial (dentre vários heróis
trágicos) Édipo, outro forasteiro que chega à cidade para salvá-la. Pouco
importa que Édipo ignorasse que a mulher com quem se casara era sua mãe, ou que
o homem a quem matara (em legítima defesa) era seu pai e rei de Tebas. Estes
“crimes”, na verdade mais próximos de pecados, imprimem-lhe sua marca e atraem
sobre ele a ira divina, a ser compartilhada por todos os que vivem em sua
companhia. Se Édipo livra a cidade do flagelo da esfinge, ele mesmo acaba se
convertendo em sua desgraça, e tão logo o percebe tem de ir embora. Pela mesma
razão, Shane deve abandonar mundo que
ajudou a construir e que sem ele não poderia existir.
A culpa que
o herói sente trazer consigo nada tem a ver com seu caráter. Ela parece
denunciar algo em seu passado. Na verdade, a culpa de Shane, o que ele traz de
ruim, é o próprio passado, o tempo mítico da brutalidade ao qual ele
involuntariamente pertenceu e ainda pertence, a despeito de sua cordialidade.
Assim também o destino de Édipo tem menos a ver com suas próprias escolhas do
que com o passado que ele mesmo, sem saber, representa: é herdeiro dos
Labdácidas, uma família real que há muito atraíra sobre si a maldição do deus
Dionísio. As desventuras de Édipo são a continuação do sofrimento de seus
antepassados – em grande parte, a sua culpa antecede o seu pecado, como de
certa forma se dá também com Shane. Mas o mocinho do faroeste leva uma vantagem
sobre seu parente grego, que ignora a própria identidade. Ela se faz patente
numa das últimas cenas do filme, quando Shane, logo antes do duelo final,
conversa com Ryker, o líder dos vaqueiros, cuja aparência dura e envelhecida
faz pensar num patriarca do Antigo Testamento:
“Shane: Você
viveu tempo demais. Os seus dias já passaram.
Ryker: Os
meus dias! E os seus, pistoleiro?
Shane: A
diferença é que eu sei disso. ”
Toda a
virtude do herói – seu altruísmo ou, mais propriamente, sua abnegação em favor
da civilização – apoia-se nesse saber. Shane tem consciência de que está
fatalmente ligado ao passado, e de que o passado deve morrer para dar lugar a
um mundo mais racional e civilizado. Mas no faroeste a civilização não é apenas
o mundo ordenado da Teogonia, e sim um mundo regido por uma noção estranha aos
antigos: o progresso. Boa parte dos filmes de faroeste não faria muito sentido
se o progresso, esse valor instituído pela sociedade burguesa, não pudesse ser
visto como um bem em si mesmo. A ação de Shane só faz sentido porque ele crê
altruisticamente nesse bem absoluto representado pelos fazendeiros, a boa gente
que ele ama e protege.
Assim, não
apenas o herói está disposto a se livrar daqueles que representam um obstáculo
à civilização, como compreende e aceita a necessidade do próprio sacrifício.
Após derrota de seus adversários, ele parte a galope. Uma criança, filha de um
dos colonos, segue o herói, chamando seu nome. Mas Shane não para, não pode
retornar ao mundo da inocência, da não-violência, que acabou de salvar. Ao cair
da noite, o cavaleiro sobe uma colina, no topo da qual se divisam as cruzes de
um cemitério, e desaparece por trás dela, como se fosse tragado pela terra. À
semelhança dos hecatônquiros de Hesíodo, ele não verá a luz do novo mundo que
ajudou a erguer, mas se recolherá a outro, de sombras e esquecimento.
Shane é,
nesse sentido, o melhor dos bodes expiatórios: é ele quem carrega a culpa pela
violência de que o progresso e a civilização necessitam para poderem se
instituir. E faz isto de absoluta espontânea vontade, sem que ninguém lhe peça
nada – chega mesmo a impedir, no último momento, que seu anfitrião pegue em
armas contra seus inimigos. Pensada estritamente como obra de ficção, Shane é
uma narrativa bem contada e bem fechada, em que os problemas se solucionam de
forma satisfatória. Mas pensada como mito, como narrativa das origens – e não
há dúvida que filmes como Shane assumiram esse papel, ocupando o lugar da
História ou se confundindo com ela –, torna-se problemática. Não porque esse
mito não faça sentido em si mesmo, mas porque jamais poderia ser, coerentemente,
o mito da sociedade que o criou nem de qualquer outra. Teríamos, pois, que
imaginar uma sociedade que se conserva inocente, desenvolvendo-se alheia a
qualquer violência, imaculada pela brutalidade, mesmo por aquela que em algum
momento lhe foi necessária. Em Shane, o problema da violência é apresentado de
forma bastante complexa apenas para ser habilmente contornado, não propriamente
confrontado – o que, é claro, não desmerece a obra dentro de sua coerência
interna, que em princípio dispensa a veracidade histórica.
Um filme,
talvez de qualidade inferior, mas que realizou nalguma medida essa confrontação,
e ao fazê-lo estabelece um paralelo interessante com Shane e outros filmes com
enredo semelhante, foi High plains drifter (1973), dirigido e protagonizado por
Clint Eastwood. A princípio, a mesma história de sempre: forasteiro é
contratado para proteger cidadezinha de bando de malfeitores. Logo, porém, os
cidadãos se dão conta do mau negócio, pois o “mocinho” que se dispôs a
ajudá-los, e ao qual ingenuamente foram concedidos direitos ilimitados sobre os
negócios da cidade, se mostra um estorvo quase tão grande quanto os bandidos
que deveria combater. Ao mesmo tempo, o povo da cidadezinha, a “gente boa e
temente a Deus”, como diz o xerife, vai se revelando não tão inocente assim.
Sobre todos paira culpa de um antigo crime, o assassinato do último xerife, que
desvendara um esquema ilegal na cidade e, querendo denunciá-lo, ameaçava
levá-la à falência. Os bandidos que o forasteiro deve combater são os mesmos
contratados anos antes para dar cabo do xerife, e que foram depois mandados à
prisão pelas mesmas pessoas que os empregaram. Invertem-se assim os papéis: não
é o forasteiro, mas sim a cidade que carrega uma mácula em seu passado,
justamente a violência sobre a qual ela se edificou; os malfeitores que agora a
ameaçam não representam senão o fruto dessa brutalidade; e o “mocinho”, aquele
que vem supostamente para salvá-la, deverá ser antes o seu castigo. De certo
modo, esse herói, figura misteriosa e acanalhada, funciona como espécie de
duplo do povo da cidadezinha: a parcela indecente (e por isso mesmo não
assumida) de sua verdadeira identidade, que vem agora reivindicar seu
espaço.
Os dois
filmes professam uma mesma moral acerca da violência: ela não pode ser apagada
e há sempre um débito para com ela. “É uma marca, uma marca que gruda. Não há
como voltar.” Mas, enquanto em Shane se estabelece uma absoluta (e ingênua)
incompatibilidade entre civilização e violência (ainda que a primeira dependa
diretamente da segunda), em High plains drifter a sociedade é acusada, na sua
própria dependência da violência, de uma brutalidade que não é apenas a do
passado, mas também a de seu presente, ocultada sob o verniz de civilidade. O ator
John Wayne, o vaqueiro mor dos faroestes clássicos, que acreditava no ideal
desses filmes (e na coerência entre esse ideal e a realidade da História
americana), criticou o filme de Eastwood: “O Oeste não era sobre nada disso.
Não foi esse o povo americano que construiu este país” – sinal de que o filme
tocou exatamente no ponto que queria tocar. Sua ação é permeada pelo fantástico
e pelo fantasmagórico, e no entanto está muito mais próximo da realidade do que
Shane (ao menos na forma como hoje podemos sentir a realidade). Vale lembrar, High
plains é bem posterior, pertence a um momento em que o retrato idealizante dos
velhos faroestes ia ficando para trás e a sociedade despertava para uma
realidade bem mais sombria; estamos no contexto da Guerra do Vietnã, no tempo,
como observou Joseph Maddrey, “de um acerto de contas kármico e de desespero
cultural”, quando a ordenada civilização americana viu-se obrigada a
confrontar-se com sua própria e inalienável violência – como a sentença em nome
da qual Shane se sacrifica pesasse agora sobre ela mesma: “there’s no living
with a killing”. De modo a não ter sua identidade cindida (entre o que aparentávamos
ser e o que de fato somos), aos americanos se fez necessário, como ainda se
faz, o reconhecimento de sua própria brutalidade, tanto no passado como no
presente. Esse esforço de reconciliação, que obriga sempre a uma revisão da
História, impõe-se hoje a qualquer sociedade dita civilizada – e é precisamente
onde isso não ocorre que o “passado”, o tempo da barbárie, com mais força
incide sobre o presente.
Referências
STEVENS,
George. “Shane” (Os brutos também amam). 1953.
EASTWOOD,
Clint. “High Plains Drifter” (O estranho sem nome). 1973.
VERNANT,
Jean Pierre. O universo, os deuses, os homens. São Paulo: Companhia das letras.
2000.
MADDREY,
Joseph. “The Quick, the Dead, and the Revived”. Carolina do Norte: McFarland
& Company. 2016.
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