Reler Liev Tolstói
Por Luciano Lamberti
Como
resenhar um clássico, um livro que se lê com “prévio fervor” e que a história
da literatura já julgou e aprovou há muitos anos? Apesar de Anna Kariênina ser um dos romances que
reli mais vezes, seus contos e especialmente esta pequena novela intitulada A morte de Ivan Ilitch constituírem uma
espécie de bíblia para mim, nunca havia lido A sonata a Kreutzer, talvez a novela mais copiada de Tolstói,
também a mais moderna, a que deixou uma marca mais profunda. E lamento não ter
lido antes, porque me deu muito prazer, me parece terrivelmente atual e é bastante
próxima à perfeição.
Tolstói não
se preocupava, em geral, com a forma dos textos. Não lhe era sua primeira necessidade.
O experimental, pelo menos em sua superfície, não é de sua predileção. É um
narrador poderoso o suficiente para fingir certa inocência, certa crueldade das
coisas (embora é evidente que o seu narrador, como se disse reiteradas vezes, é
aparentemente sensível). Seu narrador pode assumir a terceira pessoa, ser onisciente
de um modo quase exemplar, por contar tudo e mesmo assim guardar sempre uma carta
na manga. Tolstói não é Joyce, não joga com as palavras, não introduz pontos de
vista surpreendentes ou variações temporais. Conta as histórias do começo ao fim,
com uma linguagem simples, que não se distingue muito da linguagem coloquial de
seu tempo, sem golpes de efeito nem grandes pirotecnias técnicas, e chega a
lugares que pouquíssimos alcançam chegar.
A sonata a Kreutzer, por sua vez, é uma
novela que em grande medida busca um trabalho formal um pouco mais delicado. Construída
como um relato dentro de um relato, conta a história de uma conversa e suas
derivações. Sua tensão está regida por esse princípio, seu tempo está limitado ao
percurso de uma viagem de trem em que dois viajantes começam a conversar. Sua forma
geral é a da confissão: alguém conta seu pecado, a falha o que o levou a ser
quem é. Na literatura argentina há pelo menos dois exemplos ilustres desse
formato: o conto “Cómo vuelvo?”, de Hebe Uhart, em que uma professora confessa
a outra o “pecado” que mudou completamente sua vida e A forma da espada, de Jorge Luis Borges, em que um rebelde irlandês
distorce a forma de contar uma história para que sua traição só se revele na
impressionante última linha: “Agora, me despreza”. Sándor Marai também é um dos
continuadores de Tolstói favoritos, com seus romances que narram um único encontro,
uma conversa que mudará a vida de suas personagens para sempre.
A confissão
é um grande gênero literário: se confessam segredos, e se algo é segredo, então
é interessante, e logo faz andar a maquinaria da narrativa, que sempre ronda um
ponto cego, o inominável. É, também, a grande regra moral com a qual se medem
as atitudes e suas repercussões quase cósmicas na vida das personagens. “Perdoe-me”,
é a última fala do protagonista, pedindo a mesma redenção ao seu interlocutor como
quem a pede numa confissão católica. Com esta novela, Tolstói entra em sua chamada
“terceira fase”: a de sua conversão mística, a que o levará, anos depois, a
morrer numa estação de trem como qualquer anacoreta de barba branca, embora
tenha sido em seu tempo uma celebridade.
Mas, o que
tem a dizer hoje uma novela publicada em 1889? E por que segue falando-nos ao coração
e nossa mente quando, como demonstra a mesma novela, era um livro que respondia
a debates muito específicos de seu tempo, sobre a forma de conceber o casamento,
o sexo, o prazer e a vida em sociedade? O livro conta a história de Pózdnichev,
um homem de classe alta, que viveu uma juventude de luxos, que quis encontrar
no casamento a forma de equilibrar-se, descobriu a falsidade das instituições
humanas (sobretudo o casamento) e acabou por matar sua mulher.
Lido hoje,
podemos pensar seu monólogo como o relato de um feminicida. Mas não um argumento
que busca justificar sua inocência (embora em grande medida, o vemos, seu comportamento
não foi um produto único e exclusivo de seu comportamento, mas também de uma sociedade
onde a hipocrisia e as ações são mais fortes que os próprios indivíduos), do contrário:
uma confissão, como dizíamos antes, de sua própria fragilidade, do pecado que carregará
por toda sua vida.
Em grande
medida, uma recorrência de Tolstói, de sua literatura em geral, são as
mulheres: a forma como as mulheres questionam a ordem estabelecida. Mulheres
belas e fortes, como diz a canção, que por seguir seu desejo colocam em questão
todas as certezas comodamente ajustadas sobre o gênero. A maternidade, sem ir mais
longe, esse lugar intocável do pensamento, é questionada várias vezes. E a
partir desse ponto, todas as imagens com que os homens definem as mulheres (como
virgens ou como putas, para simplificar) são postas em dúvida por suas
personagens. A mulher é um enigma, quase um objeto de estudo, ou uma alavanca capaz
de movência das forças sociais. O mundo se organiza em torno delas, de sua insatisfação
e de seus desejos, no dos homens, e são elas que nunca estarão totalmente “domesticadas”,
porque são parte da natureza.
Tolstói
tinha uma dupla capacidade: de um lado era capaz de captar as mudanças da época,
o choque entre as velhas formas de pensar e o que estava por vir; por outro,
estava fora do tempo, como fora dos condicionamentos de sua classe, da sociedade
que o cercava, capaz de ver sempre mais além. Toma questões muito problemáticas
(como se hoje falasse, por exemplo, sobre o feminismo ou sobre o aborto) e as
transforma em fábulas que podem ser lidas por qualquer um em qualquer parte.
O sexo, parece
nos dizer A sonata a Kreutzer, é o
grande problema do homem. Um desejo incontrolável que, segundo o último
Tolstói, é necessário eliminar para viver em paz. A “luxúria”, como chamava
John Irving em O mundo segundo Garp, movimenta a roda da fortuna
para levar-nos a um lugar onde sempre os que pagam são inocentes. Pózdnichev, o
protagonista da novela de Tolstói, relembra sua educação sentimental e sexual e
com ela as maneiras como a sociedade determina nossos comportamentos de forma cega,
inconsciente. Pózdnichev mata sua mulher por ciúmes, talvez por engano, nunca
se revela a verdade, e é culpado e inocente ao mesmo tempo: nessa ambiguidade
se mostra o melhor da novela.
Mas, se na
novela todos esses elementos estão colocados em tensão, se a ambiguidade e os
dilemas irresolúveis são os que complexificam e problematizam essas verdades,
no posfácio isso que está vivo se desintegra e morre¹. “Recebi e continuo recebendo
muitas cartas de pessoas desconhecidas, que me pedem para explicar, em palavras
simples e claras, o que eu penso acerca do assunto sobre o qual escrevi no
relato intitulado ‘Sonata a Kreutzer’”, inicia. Tudo o que havia de
interessante, de problemático e repulsivo na história se torna a partir desse
momento didático, moralista e um pouco bobo.
Tolstói, que
deveria, amavelmente, mandar passear todos esses desconhecidos dizendo-lhes “Se
não entenderam o livro, podem sempre lê-lo outra vez, e outra, e outra, até
memorizá-lo”, se coloca na posição contrária, na tarefa de explicar seu livro,
que é a pior coisa que um escritor pode fazer. “Então eu queria dizer que isso não
é bom, porque não é possível que para garantir a saúde de algumas pessoas,
tenha-se que sacrificar o corpo e a alma de outras, da mesma forma que não é
possível que, para a saúde de algumas pessoas seja necessário beber o sangue de
outras”, etc. etc. etc. Salvaguardando as distâncias, o mesmo acontece com o
último livro de Cortázar, o “histórico”, que pensava que seus contos tinham que
deixar bem claro quem era os bons e os maus na sociedade, para que não se façam
confusões.
Acredito que todo escritor de verdade ignora o
que escreveu, e isso é o melhor a fazê-lo. Quando moraliza, quando dá aula, o
gigantesco Tolstói torna-se um pesadelo. Quando narra uma história (que é uma
forma única de pensar, de fazer pensar, de gerar conhecimento ou melhor
interrogá-los), quando deixa ao leitor tirar suas próprias conclusões é quando
a novela volta a falar, não apenas de seu tempo, mas também do nosso. Por isso é
que recomendo: fujam do epílogo, amigos.
Notas:
¹ A edição
brasileira mais recente, aqui recomendada, de A sonata a Kreutzer foi traduzida por Boris Schaiderman e não é acompanhada
deste posfácio de Tolstói. Uma tradução deste texto foi apresentada na edição 20
dos Cadernos de Literatura em Tradução
pela Natalia Quintero. A tradução das duas passagens apresentadas aqui é dela.
* Este texto
é uma tradução de “Releer a Tolstói, 130 años después”; o original deste texto pode ser lido aqui em Eterna Cadencia.
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