Por que Calvin e Haroldo é grande literatura: sobre a ontologia de um tigre de pelúcia ou encontrando o mundo todo em um quadrinho
Por Gabrielle
Bellot
“Para um
editor”, escreveu Bill Watterson, o criador de Calvin e Haroldo em 2001,
“espaço pode ser dinheiro, mas, para um cartunista, espaço é tempo. O espaço
provê o andamento e o ritmo da tira”. Watterson estava certo, talvez em mais
formas do que imaginava. Tirinhas de jornal, escreveu, fornecem um espaço único
para muitos leitores antes de começarem o dia; conseguimos atravessar,
brevemente, uma porta que nos leva a um mundo mais calmo, simples, no qual os
personagens permanecem largamente os mesmos, inclusive em seu vestuário. Nem
todas as tirinhas de jornal são assim, é claro, em especial os quadrinhos
narrativos mais complexos do passado como Little Nemo in Slumberland ou Terry
and the Pirates, e os piores quadrinhos – dos quais há muitos – retêm o senso
de mesmice sendo formulaicos e sem inspiração. Mas isso, também, está
relacionado ao espaço. Espaço, em termos gerais, é o que define Calvin e
Haroldo.
A tira
acompanha Calvin, um americano loiro de seis anos de idade que Watterson
batizou com o nome do fundador do Calvinismo. A primeira aparição de Calvin, na
verdade, deu-se em uma tira rejeitada, anterior a Calvin e Haroldo, chamada
Critturs, na qual ele é o irmão mais novo do protagonista; o sindicato sugeriu,
ao invés disso, que ele focasse no caçula, o que levou à criação do emblemático
quadrinho. Com frequência, a imaginação de Calvin representa uma visão mais
excitante e maravilhada do mundo ao seu redor; no lugar de dar atenção a Miss
Wormwood (ela mesma batizada com o nome do diabo em formação de Cartas de um
diabo a seu aprendiz, de C.S. Lewis) na escola, ele pode estar sonhando sobre
escapar de alienígenas em outras galáxias. Filho único, o melhor amigo de
Calvin é um tigre chamado Haroldo, batizado com o nome do autor do Leviatã¹. Para
todos menos Calvin, Haroldo aparenta ser um tigre de pelúcia; para Calvin
Haroldo é um tigre real e falante. Nas palavras de Watterson, a verdadeira
natureza de Haroldo nunca chega a ser completamente definida pela tira, o que é
uma de suas belezas; Haroldo é uma espécie de maravilha ontológica, e ainda
inteiramente mundana ao mesmo tempo, pois ele é o que quer que precise ser para
quem quer que o observe.
Calvin e
Haroldo parece tão inventivo porque de fato é: as tiras nos levam a outros
planetas, a paródias de film noir, ao período Cretáceo, a encontros com
alienígenas em subúrbios americanos e bicicletas ganhando vida e a realidade
ela mesma sendo revisada em arte cubista. Calvin e Haroldo ponderam se a vida e
a arte têm ou não sentido – geralmente enquanto capotam a toda de carrinho ou
trenó do topo de um penhasco. Por vezes a tira abandona quadros e diálogos de
uma vez, usando espaço em preto e branco e narrativa muda de formas
fascinantes. Como Alice, Calvin encolhe em uma sequência, tornando-se diminuto
o suficiente para pegar carona com uma mosca que passeia pela casa; em outra,
ele se torna maior que o próprio planeta. Em “Nauseous Nocturne”, um poema em The
Essential Calvin and Hobbes que se lê levemente como uma paródia de Edgar Allan
Poe, Watterson nos regala com arte admirável e versos absurdos ainda que
brilhantes como “Oh, blood-red eyes and tentacles! / Throbbing, pulsing
ventricles! ? / Mucus-oozing pores and frightful claws! / Worse, in terms of
outright scariness, / Are the suckers multifarious / That grab and force you in
tis mighty jaws”; a “aberração
repugnante” “demonstra defenestração” diante de Haroldo. Em uma tira
gloriosamente profana, Calvin até se torna um deus ancião e vingativo que tenta
sacrificar a humanidade. Nada, a não ser a beleza da imaginação, é sagrado
aqui. Watterson dissolve as fronteiras de arte erudita e popular. A liberdade
do quadrinho é circunscrita – não é completamente aleatória – mas a
profundidade que ela pode alcançar parece de todo insondável. Poucas tiras além desta se permitem tamanha
vastidão.
Sempre amei
o modo como os melhores livros – quadrinhos inclusive – mudam como nós
mudamos. O narrador de O livro de areia,
de Jorge Luis Borges, recebe um livro inescrutável de um vendedor de bíblias
que literalmente muda cada vez que é aberto, pois é impossível encontrar a
mesma página duas vezes; pelo contrário, outro dos protagonistas de Borges, Funes,
o memorioso, do conto homônimo, é incapaz de esquecer qualquer coisa que leia
ou perceba. A realidade está em algum lugar entre esses extremos. Alguns livros
são palácios ou grandes estruturas multicamadas como as gravuras de Piranesi;
só podemos encontrar suas portas, halls e quartos secretos em nossa segunda ou
quarta leitura, e há algumas portas que um leitor pode tropeçar que nenhum
outro jamais o fará, incluindo o autor do próprio texto. “Os dias estão todos
ocupados”, Calvin diz a Haroldo em uma das tiras de Watterson, uma linha que
serviria como título para uma coletânea. E assim é o quadrinho inteiro, que
reli por completo muitas vezes, e ainda assim continuo encontrando nele pequenos
quartos secretos.
Adentrei
mais profundamente o mundo dos quadrinhos à medida que crescia, mas Calvin e
Haroldo é aquele que ficou comigo da infância à vida adulta. Embora focado em
personagens dos subúrbios norte-americanos, ele atravessou barreiras culturais
para mim em Dominica porque muito do que lá está parecia universal. Eu vivia na
borda de um vilarejo montanhoso, e nos dias em que o vento parava de soprar e
tudo parecia parado e acometido pela melancolia de um domingo demasiado
pequeno, eu gostava de me retirar para um quarto e desaparecer no mundo de uma
coleção de Calvin e Haroldo. (Eu tinha todos.) Então alguém me chamaria pelos
cômodos da casa, ou eu simplesmente olhava para cima, e era como sair de um
transe. De repente era noite, o vento sobre nossa montanha como o quebrar de
suaves ondas marinhas, as mariposas castanhas batendo-se enlouquecidas nas
lâmpadas ou morrendo no poço de cera de uma vela acesa, as folhas da fruta-pão
como as silhuetas de monstruosos morcegos no escuro, a noite já tendo começado
a vestir suas pérolas estreladas. Eu amava desaparecer em livros adorados e
reaparecer na realidade, com um choque, algumas horas depois.
Mais tarde, Calvin
e Haroldo adquiriu um novo e inesperado sentido. Eu nasci dois anos após
Watterson começar a tira. Aos 27, me assumi como uma mulher transgênero e
abandonei minha casa no Caribe porque não me sentia segura sendo abertamente
trans lá. Calvin e Haroldo certamente não é um texto sobre queerness, mas
quando retornei a ele neste ponto de mudança em minha vida, a tira repentinamente
parecia descrever coisas que ressoavam em mim agora: como era viver em um mundo
em que expressar seu eu verdadeiro é algo frequentemente penalizado, e o valor
de encontrar uma segunda família, um amigo ou amigos próximos, se sua família
de sangue falha em compreender ou aceitar sua versão mais verdadeira. Calvin,
me dei conta, nunca podia ser completamente ele; os mundos que sonhava eram
sempre mais lindos e maravilhosos que o mundo maçante em que ele deveria viver.
Isso me lembrava das pressões que senti para tentar ou fingir ser o que a
sociedade amplamente anti-queer em que cresci desejava que eu fosse: hétero,
cis. E todavia ele, como eu, encontrou fora de sua família de sangue um amigo,
Haroldo, que o entendia e lhe permitia viver seus sonhos – um análogo que
aqueles de nós queer cuja saída do armário não foi das melhores provavelmente
entenderão bem. Estes são temas abrangentes, mas a tira os contempla em
abundância. De repente, o mundo do quadrinho parecia um pouco maior, como seu
espaço em meu coração.
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Quadrinhos,
se os definirmos em sua amplitude como arte sequencial, estão conosco desde o
começo, das paredes das cavernas, nas laterais da cerâmica, e em como
traduzimos as muitas línguas dos estrelados céus noturnos nas nossas, simplificando
o caos de por-que-estamos-aqui em criações. E quando removemos suas palavras de
uma vez, os quadrinhos criam um novo potencial para linguagem: uma forma
universal, uma linguagem sem linguagem que todos podem compreender, uma
rejeição – e ressurreição – da Torre de Babel.
Em sua forma
moderna, o quadrinho mais antigo, indiscutivelmente, é de 1825, no Glasgow
Looking-Glass. Em 1837, Rodolphe Töpffer publicou The Adventures of Mr. Obadiah
Oldbuck, que alguns críticos consideram o mais antigo livro em quadrinhos, e
quadrinhos contendo crítica social e comédia tornaram-se mais comuns ao longo
do século XIX, como a séria anárquica Punch ou as ilustrações
político-satíricas de George Cruikshank. Um grande marco aparece em 1895 com a
publicação de Hogans’s Alley, de Richard Outcault, que trazia um dos primeiros
altamente reconhecíveis e recorrentes personagens dos quadrinhos dominicais. Os
quadrinhos de jornal tornaram-se muito mais populares no início do século XX e
foi então que, argumenta Watterson em Calvin e Haroldo – o livro do décimo
aniversário, eles atingiram o pico, já que o espaço dedicado a certos
quadrinhos era muito maior do que o dedicado a qualquer quadrinho moderno em
jornal. Sem este grande espaço, quadrinhos pictorialmente complexos como o
internacionalmente influente Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay não
teriam sido possíveis, e o mundo absurdo do tipo Kafka-encontra-o-Surrealismo
de Krazy Kat, de George Herriman, teria sido muito mais difícil de vender.
Um
desenvolvimento do início do século XX frequentemente negligenciado é o romance
sem palavras, um gênero poderoso, ainda que de curta duração, que é
essencialmente o proto-romance gráfico. Romances sem palavras eram assim:
longas narrativas contadas sem uma única palavra, retransmitidas inteiramente
por imagens, que eram xilogravuras [woodcuts] ou gravuras em madeira [wood
engravings]. Elas se originaram primeiramente com Frans Masereel na Alemanha e
ganharam proeminência nos Estados Unidos com a memorável publicação em 1929 do
incrível God’s Man: A Novel in Woodcuts, de Lynd Ward. Não é coincidência que
elas tenham emergido ao mesmo tempo que os quadrinhos de jornal estavam no auge
e que o cinema mudo também crescia em popularidade; o romance sem palavras, no
fim das contas, era uma espécie de filme mudo portátil. Em um Japão anterior ao
Grande Terremoto de Kanto de 1923, quadrinhos como os de McCay, assim como as
exibições de filmes animados do Ocidente, influenciaram os primeiros animadores
japoneses. Enquanto não eram propriamente quadrinhos, é evidente que estes
tiveram influência sobre tais diferentes formas de animação. Quadrinhos mais
tardios como Arzach, do artista francês Moebius, deram continuidade à tradição
de omitir palavras; Arzach, publicado em 1975, começa com diálogo, mas é
primeiramente composto por imagens sem palavra extraordinárias, entrançadas por
uma narrativa implícita. O romance gráfico, a forma criticamente mais popular
de quadrinhos hoje, advém de todas essas tradições.
Os
quadrinhos de jornal, em seu melhor, são arte e literatura combinadas, mas,
como cartuns no mundo ocidental, eles ainda sofrem do estigma de ser
entretenimento “leve”, com a única diferença de que os quadrinhos são
entretenimento “leve” destinado tanto a adultos como a crianças. Naturalmente,
esta visão é equivocada, tanto para cartuns como para quadrinhos. Contudo, talvez
um motivo para que o romance gráfico (embora não, no mesmo grau, o mangá) tenha
invadido mais distintamente o reino da crítica literária seja formal: o romance
gráfico é comumente embalado como uma série completa, um único livro contendo
uma narrativa inteira – ou, ao menos, um pedaço de uma narrativa mais vasta,
contínua. Isso, é claro, faz com que os romances gráficos pareçam mais afinados
na superfície com romances baseados em texto ou narrativas serializadas, e o
fato de que romances gráficos tornaram-se tão populares que publicações
individuais são frequentemente entendidas como textos a serem coletados
posteriormente em volumes maiores – em “romances” – significa que o romance
gráfico possui, em geral, mais espaço para contar suas histórias.
O quadrinho
de jornal, em contraste, como Watterson escreveu em 1989 no posfácio de O livro
dos domingos de preguiça de Calvin e Haroldo, está em “evolução retrógrada”;
está se tornando menor e menor, com menos espaço, em geral, para elaborar
narrativas complexas. O novo espaço para invenção – fora dos romances gráficos
– dá-se amplamente nos webcomics, que variam de preguiçosos a extremamente
inventivos, como se dá, no último caso, em Firefight Isle, de Paul Duffield.
Quadrinhos de jornal podem ser reunidos em livros, mas, diferente dos romances
gráficos, raramente se assume que haja uma vasta narrativa unificadora que os acopla.
Isso, talvez, é uma das razões pelas quais críticos literários têm sido mais
vagarosos em adotar quadrinhos de jornal como objetos de estudo ao invés de
romances gráficos. É claro, há também muitos quadrinhos de jornal ruins por aí
– e suas deficiências, como seria de esperar, são frequentemente exacerbadas ao
inseri-los forçadamente em espaços estreitos.
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Watterson é
fartamente lembrado por sua recusa em licenciar seus personagens para
merchandising fora dos quadrinhos (com poucas e raras exceções – calendários,
coleções em formato livro, uma camisa para uma exposição especial no Museu de
Arte Moderna e um selo especial para o Serviço Postal dos Estados Unidos em
2010). De fato, Watterson pode ser o nome que vem primeiro à mente hoje quando
se fala na ideia de rejeitar o merchandising de personagens de quadrinhos,
embora tais personagens tenham sido associados ao merchandising desde os
primeiros dias das tiras dominicais com Hogan’s Alley, muito antes da época de
Watterson. Para Watterson, não licenciar seus personagens significava preservar
sua integridade, bem como a do quadrinho.
Após
terminar a tira em 1995, Watterson basicamente desapareceu do olhar público,
aparecendo apenas brevemente para dar entrevistas online, escrever resenhas
sobre livros de ou sobre quadrinhos e, muito raramente, para contribuir como
novas peças artísticas. Inesperadamente, em 2011, ele pintou o protagonista de Cul
de Sac, uma das poucas tiras modernas que elogiou publicamente, e enviou o
trabalho para o criador do quadrinho. Ironicamente, Calvin e Haroldo apareceram
em toda parte desde que a tira terminou, graças aos fãs que criam seus próprios
quadrinhos, animações e muito mais; a falta de merchandising, talvez, levou os
fãs a querer mais dos personagens.
Quase vinte
anos após o término da própria tira, Watterson fez três peças encomendadas para
Pearls Before Swine, de Stephan Pastis. A segunda destas, para mim, é a mais
reveladora. Nela, um novo artista, uma garota da segunda série chamada Libby
desenha o quadrinho de Pastis para ele. Um substituto para Watterson, ela acha
a arte de Pastis horrenda. Ela usa apenas dois quadros para pular de uma cena
padrão de Porco e Rato conversando para uma cena repentina e brilhantemente apresentada
de invasão marciana, e Pastis lhe diz para “parar de se mostrar”; manhosa mas
precisa, ela retruca, “Eu podia fazer melhor se tivesse mais espaço.” Este,
talvez, é o dilema dos quadrinhos de jornal condensado.
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“A arte de
perder não é difícil de dominar”², escreve Elizabeth Bishop em “Uma arte”, um
belo e devastador poema de 1979. Ruth Ozeki, em um belíssimo ensaio
parcialmente construído em torno do poema de Bishop, astutamente observa que o
que faz o poema de Bishop funcionar é o uso da palavra perda [loss] no lugar de
deixar ir [letting go]. A diferença entre as duas, escreve Ozeki, é o controle:
“Quando deixo ir, Eu estou no controle; quando perco, não estou. Deixar ir é um
ato volitivo; perder, uma violação da minha vontade.” Às vezes, é claro, perder
e deixar ir, violação e volição, coexistem; às vezes, perdemos quando achamos
que estamos deixando ir, ou perdemos mais do que imaginávamos quando soltamos
nosso apoio. Watterson, em sua luta por espaço, licenciamento e integridade,
deixou ir sem acreditar que havia realmente perdido, e seus personagens, como
os de Ozeki em A Tale for the Time Being, perduram no melhor e pior dos
espaços: o nebuloso espaço da memória, onde as bordas constantemente se
deslocam. Calvin e Haroldo permanece como literatura e arte combinadas porque é
as duas: faz perguntas importantes sem resolvê-las simplisticamente, diverte-se
com seus próprios absurdos e é abastecido por uma profunda compreensão das
pessoas, de nossas espiralantes contradições, complexidades e enigmas. Eu amo o
quadrinho em 2016 tanto como o amava há duas décadas.
“Tudo que é familiar
desapareceu! O mundo parece novo em folha!” diz Haroldo na tira final de
Watterson, e certamente meu próprio mundo após a saída do armário parecia novo
em folha também. Mas, depois da dor e da perda, às vezes encontramos mais
beleza no mundo do que jamais esperávamos. No final das contas, o mundo pode
ser verdadeiramente mágico.
Notas:
¹ No
original, Calvin and Hobbes, daí a referência a Thomas Hobbes, autor do Leviatã.
² No
original do poema “One Art”: “The art of losing’s not hard to master”
* Tradução livre
de Guilherme Mazzafera a partir do original: “Why Calvin and Hobbes is great
literature. On the ontology of a stuffed tiger and finding the whole world in a
comic”, publicado no LiteraryHub em 18 de julho de 2016.
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