Os diários de aprendizagem como ferramenta de educação dialógica
Por Rafael Kafka
Ilustração: Miren Asiain Lora |
Tenho
trabalhado com alguns alunos um gênero textual o qual aprendi na minha segunda
graduação, em Letras com Habilitação em Língua Inglesa, e que me permite umas
reflexões bem interessantes. Por mais que ainda me falta leitura sobre o dito
gênero, já o tenho usado com base em aulas tidas em 2013/2014 na UFPA no
sentido de promover com os alunos um instrumento de auto avaliação e de
autonomia. Isso se deve pela defesa que defendo de que a reflexão crítica sobre
nossos próprios atos é um meio dos mais importantes para conseguirmos romper
barreiras acerca de nossa aprendizagem.
Por mais que
sempre tenha me incomodado um certo ar liberal, influência clara da escola
nova, os diários de aprendizagem me permitem uma provocação no sentido da
escola libertadora que almejo. Afinal, esta última nada mais é do que um
ambiente onde o sujeito consegue refletir concretamente sobre problemáticas
variadas e agir de maneira direta sobre elas. A escola libertadora é uma ação
direta.
Todavia, ao
contrário do que muitos reacionários pensam, a escola brasileira não é
plenamente libertadora. Na verdade, fica difícil dizer em que pontos ela é
libertadora. Seu ideário é por demais construtivista e sua prática muito
tecnicista, mais pela precarização que tira de nós professores recursos
importantes do que pela nossa vontade. Por esse lastro tecnicista forte, ainda
precisamos passar conteúdos de forma bastante tradicional, usando o quadro para
escrever textos e exercícios e avaliar os alunos usando uma nota de 0-10.
Muitos de nós enfrentam isso por algum tempo, mas diante de tantas demandas
fica difícil resistir e o cansaço nos vence.
Por conta
disso e de um crescente de jovens entrando nas universidades públicas ou com
bolsas para as universidades privadas, ainda não há como abrirmos mão
completamente de uma educação a qual se liberte dos traços fechados em
conteúdos pedagógicos fechados em si. Hoje, empoderar os alunos, perpassa, em
minha vida, não apenas em estimular a leitura, mas também em dar conta de
conteúdos os quais serão úteis em momentos mais práticos de sua vida.
Infelizmente, eles terão de saber o que é uma oração subordinada adverbial
temporal quando fizerem provas que garantirão a eles possibilidades maiores de
crescimento profissional.
Assim, os
instrumentos de escola libertadora e escola nova que insiro em meu cotidiano
escolar são uma brecha de progressismo dentro do conservadorismo pedagógico
ainda reinante em meu ofício. Por meio dos diários de aprendizagem e das
práticas de leitura busco levar aos estudantes a possibilidade de reflexão
sobre o currículo, sobre si mesmo em diversas dimensões – comportamento, foco,
motivação etc. – e sobre a escola e os educadores – a presença de uma sala de
leitura, a metodologia usada por mim em sala, a relação com os colegas e demais
membros da comunidade escolar etc.
Muitas das
vezes não conseguimos nos enxergar tão bem e nos colocar no papel pode ser um
elemento de concretização do nosso ser a nos ajudar a entender melhor nossas
manifestações de ser e como ela nos levam para este ou aquele caminho. Os
diários de aprendizagem servem então para meus alunos como instrumento de
concretização do ser, de reflexão no sentido de entender a si mesmo enquanto
estudante. Ao mesmo tempo, eles me permitem leituras bem curiosas e interessantes
das idiossincrasias dos meus alunos e de como elas afetam meu trabalho.
Há casos
mais claros e mais urgentes como alunos com profundas dificuldades de escrita.
Há também os casos de alunos que conseguem enxergar o fato de não terem por
diversos fatores um tempo para estudo ou para leitura. Esses alunos muitas
vezes conseguem refletir sobre os porquês de não existir esse tempo e falam de
aspectos sociais bem relevantes, como conflitos familiares ou a inexistência de
livros e bibliotecas às proximidades de sua casa. Há também momentos em que
eles conseguem refletir sobre o papel de pais, mães e outros parentes no
auxílio da aprendizagem, dando suporte e apoio no momento de tarefas e
incentivando as leituras.
Penso que os
diários de aprendizagem tenham como grande benefício justamente a possibilidade
de o aluno entender melhor as barreiras que o rodeiam. Ao mesmo tempo em que
entende não ser o estudo apenas uma questão de esforço, fugindo da lógica do
discurso meritocrático, o estudante começa a buscar formas de superar essas
barreiras ou ao menos de minimizar os seus efeitos. Assim, alguns conseguem
entender que a falta de bibliotecas perto de sua casa pode ser superada com a
ida a outras bibliotecas presentes na cidade ou a leitura usando aparelhos
eletrônicos como tablets e smartphones. Outros conseguem entender que a falta
de um horário para estudar pode estar prejudicando o grau de entendimento em
relação aos conteúdos ministrados em sala e outros tantos conseguem entender a
distinção entre a minha metodologia e outros elementos mais tradicionais que
são praticamente ausentes de minhas aulas, como o fato de eu quase não usar o
quadro.
A escrita
permite colocar a realidade em suspenso e desse modo se torna mais possível uma
análise concreta de diversos fatores os quais muitas vezes tornamos algo
absoluto, natural e imutável. Por isso os diários de aprendizagem são um gênero
que almejo tornar mais presente em minhas aulas. Mediante o seu uso, sou capaz
de fazer análises mais profundas sobre coisas que nós, em geral, rechaçamos
como insignificantes em nossa vida cotidiana.
Um exemplo
disso se deu há algumas semanas, meados da páscoa, quando recebi em meu
Facebook pessoal um comentário de um parente de estudante dizendo, insinuando, que eu estava doutrinando em sala de aula. O comentário foi feito em uma
postagem criticando a atual política econômica de Paulo Guedes e de como eu
temia, do alto de minha ignorância, os males a serem causados por essa
política. Mesmo sem ser meu contato em rede social, o senhor decidiu comentar
questionando minha posição e a conversa seguiu para rumos estranhos. O seu
perfil era cheio de postagens denunciando professores “doutrinadores” e eu
fiquei sem saber se ria ou ficava preocupado de ter de enfrentar um momento de
maior tensão.
Na mesma
semana, eu havia passado um diário de aprendizagem para a turma de sua filha
abordando diversos tópicos que vimos em sala de aula. A garota fez um texto
riquíssimo falando de diversos temas aprendidos em um mês de aula e de debates
travados em sala, com direito a filme de Charlie Chaplin, e eu fiquei surpreso
de conseguir “doutrinar” ao mesmo tempo que fazia aquela turma ter contato com
temas diversos como diários íntimos e ficcionais, comunicação, interação,
intencionalidade, histórias em quadrinhos, linguagem verbal e não verbal. O
diário feito pela aluna permitiu expor a ironia de quem fala em doutrinação sem
entender plenamente a dimensão do termo, confundindo-o com práticas educativas
mais amplas e voltadas para a realidade dos alunos, com intuito claro de
reflexão crítica e não de dogmatismo político.
Na semana
que se finda hoje, deparei-me com outra situação curiosa envolvendo os diários.
O foco dessa vez era o desempenho na primeira avaliação e os alunos precisavam
entender quais estratégias de aprendizagem haviam sido usadas por ele e se
refletiram em seu desempenho. Em dado momento, o aluno soltou uma frase na qual
dizia que apesar de um jeito claramente homossexual, eu era uma pessoa boa,
isso em uma linguagem mais coloquial. Quando li esse trecho, peguei-me rindo e
sem saber como reagir. Poderia ser o professor a chamar os pais e deixar com
eles a responsabilidade de resolverem a situação ou o que refletiria sobre essa
situação e buscaria entender os motivos por trás daquele vocabulário. Até o presente
momento, minha conversa com o aluno se limitou a pedir a ele que reflita sobre
porque me vê como um homossexual, quais as representações sociais envolvidas
nesse processo de me enxergar, qual a relevância disso para o contexto
pedagógico e, por fim, a adversidade usada, o “pessoa boa” que vem depois do
“mas”, como se ser homossexual excluísse essa qualidade ou a diminuísse.
Aprendi com
os conhecidos e pensadores liberais a ideia de não apenas reprimir quando algo
desagradável e preconceituoso é falado por alguém. Prefiro problematizar isso,
mas sem usar aquele tom politicamente correto de dedo na face. Gosto de
procurar entender por que este termo foi usado, porque esta frase se mostra
aqui, porque esse dado foi trazido à tona e os diários me servem muito nesse
sentido, pois muitas vezes os sujeitos se colocam ali de uma maneira muito mais
sincera do que se colocam em seu cotidiano.
Posso dizer
que é um grande prazer sentir de alguma forma os alunos mais próximos a mim por
meio dos diários de aprendizagem. A educação possui uma série de dificuldades e
a leitura e a escrita, ao menos dentro da área de língua portuguesa, é uma
forma que encontro de tornar tudo mais palatável. Houve um momento em que
pensei em tornar a sala de aula um ambiente de profundo diálogo e debate de
ideias para chegar mais próximo de uma atmosfera de lazer e prazer. Creio ter
conseguido bastante isso, mas hoje diante de um clima de tensão política
terrível e com tantas demandas nas quais me vejo envolvido, sinto-me mais do
que nunca em um trabalho burocrático e travado. Os diários de aprendizagem são
uma resistência a esse sentimento, são uma forma de voltar a fortalecer laços
dialógicos com meus alunos, de ouvi-los mais, de senti-los mais próximos de mim
enquanto sujeitos e não apenas estatísticas em boletim. Porque há em mim a fé
de que as coisas voltarão a ser melhores e mais leves em breve e de que esse
clima travado vai passar para eu voltar a sentar na cadeira, com um copo de
café na mãe, e discutir com meus alunos a gramática textual e as leituras como
sempre fazemos.
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