Morangos mofados, 2019
Por Amanda Lins
© David Salle |
“Eu era
apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o dele, que
por acaso era de homem também”, pensa o personagem de Caio, tranquilamente,
numa terça-feira de carnaval. Como poderíamos pensar eu, ou você. A humanidade
e absoluta simplicidade da frase assim, solta, me engancha ao conto. Há algo de
não-estou-dizendo-aqui-nada-de-extraordinário e ao mesmo tempo de
deveria-ser-simples-assim-mas-não-é nesse mundo arquitetado que lembra demais o
nosso para que passe despercebido, sem desencadear uma espécie de comichão nas
entranhas.
Continuo a ler,
já transmutada para uma festa de carnaval, uma matinê no Rio, um bloco em Olinda
um trio em Salvador, lança-perfume espalhado no ar e dois - por acaso - homens,
fantasiados. Por acaso, flertando. Algo me angustia nessa troca de olhares, na
proximidade da carne. Algo que ainda não sei racionalizar de onde vem e por que
está ali. É o mesmo comichão. A narrativa anda. O samba despreocupado. Minha
angústia. O cochichar no ouvido. Minha angústia. Escondida atrás do armário.
Embaixo das minhas unhas. Entre meus dedos dos pés. De onde vem, Caio?
Ela virá,
forte e pesada, como quem espera o momento de me agitar ao máximo, pressinto.
Ui, as loucas, os homens escutam. Aqui, então? O não-tão-simples assim. Uma
onda, eu levo uma batida de água salgada dentro dos ouvidos, em meus olhos, tão
abertos tão seguros&quase que esperando. Sei que vai arder. Ainda não sei
por quê. Mas espero. Veados, eles escutam também. Eu escuto. Eu, naquele
carnaval, bloco em São Paulo, trio em Olinda, uma festa em cidade pequena onde os
foliões brincam com farinha. Eu brincando com farinha com angústia nos ouvidos
escutando, olha as loucas. E já ameaço entender de onde vem o comichão e já o
pensamento assim que nasce em mim não o quero mais.
“Terça-feira
gorda”, é esse o nome do conto, em morangos mofados, 1982. “lembrei que tinha
lido em algum lugar que a dor é a única emoção que não usa máscara (...). Então
pensei devagar que era proibido ou perigoso não usar máscara, ainda mais no
Carnaval”.
Em 1982, era
proibido ou perigoso não usar máscara no carnaval, até que tanto não o fizeram
que se tornou menos proibido e menos perigoso. E depois, ainda, nada proibido e
um tanto perigoso.
Nesse ano,
acontecia o sétimo congresso do Partido Comunista Brasileiro, em São Paulo,
quando a polícia invadiu o local e prendeu os participantes, que foram
liberados logo depois. Essas também seriam as últimas eleições onde o partido
estaria na clandestinidade, antes da redemocratização. Também conquistamos o
voto direto para governadores, senadores, prefeitos, deputados federais e
deputados estaduais.
Sendo assim,
em 2019, já vivemos a redemocratização. Sendo assim, hoje, o caríssimo valor da
liberdade rege nossas vidas.
Obviamente.
Exceto por
uma sensação nas paredes do estômago que nos diz que não. Exceto por uma voz
que ainda grita “veados” pra ti no carnaval. Exceto por algo em nossas
glândulas de adrenalina que as deixa disparadas, como numa perene sensação de
susto, de perigo. De aproximação de predadores. Por essa atmosfera de autoritarismo
que nos circunda. É proibido ou perigoso ser muitas coisas. É proibido ou
perigoso ser comunista, transexual, mulher, sapatão, veado, estudante, preto.
Quero dizer,
um escritor provavelmente quer ser lembrado. Quer escrever uma obra que não empaque
no tempo como um instrumento obsoleto, sem utilidade futura. Deseja realizar
uma pergunta tão fundamental, tão inerente ao espírito do homem que esta
perdure por anos a fio, indagando, com toda a urgência das questões
permanentes, jovens almas após jovens almas. Provavelmente.
Mas meu palpite
é que Caio Fernando, com sua terça-feira, torceu, a cada carnaval, para que
suas indagações se tornassem como o vento que já passou pelos seus cabelos e
não mais voltará da mesma forma: lembrança. Lembrança em seu estado mais puro.
Imagino-o a confabular o dia em que um leitor buscaria suas palavras e,
irritado, largaria o livro, sem paciência sequer para terminá-lo, pensando “é
claro que eram apenas dois corpos de homem, bem como poderiam ser quaisquer
dois corpos, qual a grande questão nisso?”.
Imagino-o,
por fim, entristecer-se ao olhar para um futuro que arrepia os pêlos, ao ver
seus leitores ainda transpassados nos carnavais de 82. Chego a vê-lo baixar os
óculos, cansado. E imagino-o porque também faço o mesmo. Porque também, por
vezes, me encontro sonhando com uma geração que não sinta o comichão que senti
ao longo do conto. E a profunda tristeza que senti ao terminá-lo. Me encontro
ansiosa pelo momento em que não pensemos em acontecimentos reais e cotidianos
quando estivermos a ler sobre dois corpos de homens, sendo penalizados por
gostar de outros corpos que por acaso são de homens também.
C.F., nesse
carnaval, vamos recuperar nossos sonhos das gavetas. Não vamos usar máscaras.
E, talvez, escutemos um “ui, as bichas”. Até que um dia, espero, não escutemos
mais.
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