Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela, de Ignácio de Loyola Brandão
Por Pedro Fernandes
Na fuga
empreendida pelo protagonista de Desta
terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela, há um diálogo
entre ele e uma personagem acerca da dimensão do tempo; é uma ocasião quando lhe
revelam que a história por ele vivida se passa num tempo depois de amanhã. Espantado
com a possibilidade aparentemente impossível, reflete ainda que “As pessoas
estão perdendo a razão” e se pergunta sobre o que está acontecendo: “Andam como
zumbis, falando com ninguém, ou com alguém que não é visto. Mandam imagens para
dizer onde estão e depois não sabem onde estiveram”. A retomada dessa passagem
especificamente é uma maneira nossa de entrar no denso tecido dessa narrativa;
sua função aqui é, portanto, a de servir como chave de acesso sobre a própria
estrutura de um romance construído de forma perfeitamente ardilosa e, por isso,
capaz de favorecer o leitor a uma experimentação sobre a contínua paranoia que
tem se tornado as existências comuns desde a febre pelos universos virtuais. Este
é um livro provocativo, escarninha com as indistinções de nossos destinos ao
mesmo tempo que se propõe ser uma epopeia da pós-modernidade.
É possível,
então, que se ofereça uma variedade de formas de acessibilidade aos meandros
desta obra que amplia o universo paralelo criado pelo escritor brasileiro em Zero e Não verás país nenhum. Mas, é também possível que o acesso aqui
proposto e os demais sejam insuficientes para compreender de maneira precisa a
diversidade de questões suscitadas pela narrativa de Desta terra nada vai sobrar..., ou oferecer uma leitura definitiva.
É permitido dizer que assim acontece com toda grande obra literária e esta é
uma que se coloca, precocemente, entre as mais importantes da nossa literatura no
começo do século XXI – não apenas pela força criativa, mas pela maneira como o
escritor transforma materiais de seu tempo numa alegoria sobre a condição
alheada do homem num universo quase formado pela completa ausência de sentido;
ausência que, contraditoriamente, não é marcada pelo vazio absoluto, o escuro,
ante o qual se interroga o protagonista da narrativa, e sim pelo excesso. De maneira
que, a alternativa encontrada por Ignácio de Loyola Brandão foi a de primar pela
multiplicidade, seja de situações, seja pela sobreposição quase infinita de
substantivos; aqui, tudo se mostra como uma continuidade excessiva. Tanto que,
a narrativa tem seu princípio num já-contínuo e mesmo o fim é mera interrupção
de um fluxo que nos projeta para vermos nós próprios no contínuo degredo que
escolhemos viver.
Assim é que Desta terra nada vai sobrar... está
profundamente circunscrito no nosso tempo caótico mas deve ser lido como uma
narrativa situada num depois-de-amanhã. Isso nos impede de compreendê-lo como
um romance distópico, mesmo verificando que muitas situações aparecem corriqueiras
aparecem propositalmente ampliadas em alta escala e sem se preocupar com eventuais
estranhamentos que poderiam causar ao leitor. Diante os exageros a única emoção
que nos resta é um riso nervoso; isso significa que as evidências ficcionais formam
parte com nossas próprias vivências impedindo a plena realização do conteúdo distópico. Essa condição nos leva a
compreender a narrativa deste romance como uma crônica mordaz sobre nosso tempo
e as alternativas inexistentes no pós-tempo. Tal impossibilidade de experimentação
da distopia pela ficção é apenas um sintoma segundo o qual a barreira que nos
separa o concreto do virtual ruiu; atravessamos uma zona conflituosa capaz de nos
levar integralmente para um universo onde o incomum, o estranho, o
contraditório, o inusual, formam parte do vivido fisicamente e não apenas
imaginariamente. Talvez tenha sido assim, desde quanto a tecnologia se tornou presença
indispensável nos cotidianos mais simples, mas só agora com os seus superlativos
conseguimos perceber o quanto não passamos de narrativas e virtualidades
manipuláveis, administradas por forças das quais só temos a sombra como
materialidade.
Felipe, o
protagonista deste romance, é um jovem atormentado pelos rumos tomados pela sua
vida – o fim abrupto do relacionamento com Clara e a possibilidade de ter
cometido um crime contra ela – e pelos rumos do próprio país onde vive. Seu
itinerário preenche de alguma maneira o tema do deslocamento na literatura e
pode ser lido como o trânsito de um Dom Quixote pós-moderno num universo
cibernético. Itinerário que se faz solitário e preso a um mundo de dupla
dimensão. E itinerário interceptado (pelo fio da narrativa) por uma própria
Dulcineia, real e projeção imaginativa do herói. A constatação se oferece pelo
comportamento dele, que está continuamente integrado a um sistema de espionagem
do próprio amigo, Andreato, um hacker a quem Felipe pede (sem sucesso) o desvinculamento
total do universo virtual. É graças a essa vigilância, aliás, que o leitor,
colocado como um espectador, consegue acessar o périplo de Felipe e a uma
narrativa oferecida pela sua maneira de compreender as coisas ou mesmo
descrever suas vivências, isto é, o que lemos propriamente como o romance de Ignácio
de Loyola Brandão. Assim, toda a narrativa se constrói de maneira oscilante; é
um jogo de câmeras: ora a de Felipe e de Clara, marcados pelo discurso em
primeira pessoa, ora a de um olho indistinto, marcado pelo discurso onisciente.
A protagonista é seguida pela melhor
amiga incrédula de sua decisão em, depois de se sentir ameaçada pela presença
de Felipe, se refugiar na cidade de sua infância, uma espécie de Pasárgada
virada ao avesso: terra de ninguém, destino sem retorno, paraíso fiscal de
corruptos, enfim, o centro nevrálgico da dimensão do lugar que funciona com o
pós-tudo.
O que
chamamos por dia-depois-de-amanhã é um tempo indistinto, uma vez não podermos
acessar o futuro, mesmo pela ficção, visto que sua realidade é produto de
outras realidades, vividas ou imaginadas. Assim Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela trata-se
de um romance-parábola, uma vez que a partir dele, se oferece uma acurada
reflexão sobre nosso tempo e nosso lugar. Seu conteúdo é, aliás, a consumação
do tom profético, manifestado desde o título, este que pode ser lido como um
irônico retorno ao tempo imemorial, genesíaco. Irônico e herético porque, ao
contrário do sopro criador capaz de gerar o mundo e todas as coisas, este é um sopro
restado do fim do mundo e das coisas. Este romance se alimenta da mesma ars apocalíptica com a qual alguns importantes
escritores têm desenhado as realidades pós-humanas – pensamos em criadores como
Cormac McCarthy, Don DeLillo ou, da nova geração, Ben Lerner.
Alimentado por
um profundo desencanto no homem e na sociedade e impossível de não se deixar
afetar pelas instabilidades políticas, continuamente em ordem crescente – seja
pela corrosão das instituições democráticas, os levantes de ódios gratuitos, os
retrogradismos de toda espécie nas relações humanas, a celebração da ignorância,
a violência, a banalização do mal, a intolerância contra o diferente, a
cultura, o pensamento, o fanatismo ideológico, a derrocada do conhecimento – de
tudo cabe no romance aqui analisado. Ignácio de Loyola Brandão registra um
mundo em turbulência, fragmentado, refém de seus próprios fantasmas e da
impossibilidade de romper em definitivo com eles. Num contexto que nos remete para
a selva brasileira, cada vez mais administrada pela opção pejorativa do homem
(o inculto, o ignorante, o conservador, o bestial), o leitor é levado a
transitar por um complexo pesadelo, que diferentemente do romance, parece
vigorar só o começo. Nada escapa à baba de Caim.
E nada,
portanto, cumpre ser celebrado. Tudo aquilo que algum dia pode ter servido para
a construção de uma alternativa distinta no interior das identidades nacionais (o
cordialismo, a alegria, a malandragem, o jeitinho) foi transformado numa
excrecência perversa e brutal que alimenta de forma capciosa o embate de
classes, este que no calor tropical, se acentua pelo imperativo da dizimação daqueles
que são transformados apenas em objeto de usura pelos da mesma ordem hipócrita,
corrupta e corruptora de sempre, estes que no virar de cada tempo se apresentam
travestidos de homem-salvação de todos e findam por conduzir
para o ocaso e a inoperância. Este é um romance envenenado sobre o pior de nós;
sobre o quanto a ascensão da estupidez à ordem de mando é capaz de significar
uma reafirmação dos áureos tempos de barbárie institucionalizada.
Esta epopeia
pelos submundos da degenerescência e do horror se oferece à medida que melhor
nos aproximamos da condição esquizofrênica da personagem principal do romance,
que tematiza, em oposição ao representado, o homem capaz de preservar alguma
lucidez. Não se passará muito tempo para que o leitor compreenda que o
funcionamento da narrativa de Desta terra
nada vai sobrar... se guia por um jogo de inversões; isto é, aqueles dois
planos narrativos sobre os quais dissemos acima são, por conseguinte o real em
delírio e o delírio do real. Para tanto, Ignácio de Loyola Brandão atualiza uma
variedade de procedimentos narrativos cuja base remonta ao trabalho de
bricolagem dos discursos; notam-se claramente ou subtendidos o jornalístico, o
propagandístico, o televisivo, o bíblico, as várias formas da web e o literário que são citados, ironizados,
parodiados, pastichizados até formarem um novo caldo capaz de dizer um tempo,
como definimos, excessivo e de excessos. Quer dizer, não é apenas a diversidade
de assuntos recuperada pela narrativa, é ainda a multiplicidade de formas de
linguagem genialmente cooptadas pela força da prosa romanesca, constituindo, assim,
um objeto fragmentado, fractal e diverso como o tempo a que se refere.
É impossível
sair, ainda que se prevaleça a ironia mordaz ou mesmo o riso nervoso, o mesmo
depois de atravessar esse universo psicodélico desenhado por uma criatividade
expansiva e interessada em sacudir o leitor do seu posição de letargia que ocupa
ora ante o próprio ora ante a realidade que se desdobra diariamente na sua cara
ou mesmo a realidade desempenhada por ele mesmo. Por isso, este é um romance
que preenche ao menos duas dimensões, a de levar os mais atentos a tudo a
corroborar com aquilo que pensa sobre o que vive e vê, e a de incomodar os
ainda deitados eternamente em berço
esplêndido. Se resta ainda alguma esperança nesse universo onde tudo é tornado
coisa, é a força do amor. Claro, que não o amor romântico, mas o capaz de,
mesmo sozinho, produzir alguma luminosidade num mundo tão escuro, abjeto e adverso.
A sofrida esperança guarda ainda algum suspiro. Talvez até quando nos reste
escritores como Ignácio de Loyla Brandão, capazes de se rir da desgraça da
humanidade e ao mesmo bafejá-la como a mais enigmática das criações.
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