Varlam Chalámov, contador de histórias
Por Davi Lopes Villaça
Varlam Chalámov, nos anos 1940, depois de retornar de Kolimá |
O escritor russo
Varlam Tíkhonovitch Chalámov (1907-1982) viveu quase vinte anos como
prisioneiro em campos de trabalho forçado soviéticos. Entre 1937 e 1951 trabalhou
nos campos da região de Kolimá, na Sibéria, também conhecida como a “terra da
morte branca”. Dessa experiência recolheu o material para sua obra mais importante,
Contos de Kolimá, escrita entre 1954 e 1973.
Duas
narrativas, ambas presentes no primeiro livro da coletânea, lançam uma luz
sobre o sentido dessa extensa obra, permitindo-nos também uma reflexão sobre a
relação do autor com a literatura. Em “Pela neve” (não por acaso o primeiro
conto do livro) Chalámov descreve o movimento lento e exaustivo dos
prisioneiros que, postos a andar lado a lado, abrem caminho por entre a neve
que cobre a terra, para a passagem de pessoas, comboios de trenós, tratores.
“Se
caminhassem sobre cada uma das pegadas do primeiro, abririam uma trilha
visível, mas difícil de ser percorrida, uma senda e não uma estrada, buracos
pelos quais seria mais difícil passar do que pela terra virgem. O primeiro
cansa mais do que os outros e, quando as suas forças se esgotam, um dos cinco
restantes passa à frente. Dos que abrem caminho, todos, até o menor, o mais
fraco, em algum momento tem de pisotear um pedaço de terra virgem e coberta de
neve e não a pegada alheia. Quem vai de trator e a cavalo não são os
escritores, mas sim os leitores. ”
Nietzsche observou
que “o sofrimento profundo enobrece; coloca à parte”. Os que partilharam de uma
mesma dor estabelecem entre si laços de cumplicidade, baseados numa vivência e
num saber em comum, distinguindo-se dos que não viveram, a quem podem gritar:
“vocês não sabem nada!”. Em “Pela neve” vemos dois sofrimentos: o do
prisioneiro e o do escritor. Dois momentos diferentes de uma mesma vida ligados
por uma mesma ideia, a da abertura de um caminho difícil. O primeiro momento situa-se
no passado, o segundo no presente, isto
é, no próprio ato da escrita que se anuncia ao leitor e que este deverá seguir
nas páginas que virão.
Este trecho
é o primeiro e um dos poucos em que Chalámov olha diretamente para nós, seus
leitores, os que nada sabem. As últimas palavras do conto fazem lembrar aquelas
do início do poema introdutório de Se é isto um homem, de Primo Levi: “Vós que
viveis tranquilos/ Nas vossas casas aquecidas,/ Vós que reencontrais
regressando à noite/ Comida quente e rostos amigos...”. Como no conto de
Chalámov, a menção ao conforto do leitor pesa como uma recriminação, parece
acusá-lo de uma quase indecente ignorância a respeito do sofrimento de um outro
(ou de muitos outros). Mas o que separa Levi de nós é, à primeira vista, apenas
a experiência do campo de extermínio nazista, da qual sua obra ficou como o
mais valioso testemunho. Chalámov, por outro lado, vítima também de um dos
grandes crimes da humanidade, tinha mais forte a consciência de ser escritor,
antes mesmo de ser testemunha. E essa função, tornada indissociável para ele de
sua experiência em Kolimá, também o separava do leitor. Embora expusesse sérias
restrições à literatura – julgando, por exemplo, ultrapassado para sua época
entreter-se com a narrativa de “vidas inventadas” – não escreveu relatos nem
memórias; escreveu contos, nos quais a responsabilidade ética que o autor
assumia (de retratar com fidedignidade aquilo que tinha visto) manifestou-se sobretudo
em preocupações estéticas.
Para Chalámov,
a experiência do início do século XX havia imposto ao público novas regras de
verossimilhança. Nos leitores que passaram por guerras, revoluções e campos de
concentração “a confiança na literatura havia sido minada”. Já não poderiam se
satisfazer com vidas imaginadas para o enredo de longos romances – segundo
Chalámov, uma forma descreditada, que morrera e que nenhuma força no mundo iria
ressuscitar. Várias das opiniões do autor sobre literatura (inclusive sobre sua
própria obra) soam demasiado radicais ou restritivas, mostrando sua obsessão
por seu projeto literário; mas mais importante do que isso, elas dão a dimensão
de um traço muito característico seu: o compromisso com certa ideia de verdade.
Não a verdade a que se aspira por uma representação pretensamente direta e
impiedosa dos fatos, mas uma, bem mais pessoal, que se revela em função da
criação artística, de que Chalámov jamais abre mão. Como ele mesmo disse, ainda
que a confiança na literatura tenha sido minada, “o escritor continua
precisando de arte”.
Em “Pela
neve”, o sofrimento do prisioneiro encontra o sofrimento do escritor, os dois
se tornam um só, mantendo-se a uma mesma distância de nós, homens livres e
leitores. Mas não se trata de uma equiparação forçada de sofrimentos
absolutamente diversos e desiguais. A experiência do prisioneiro serve de
metáfora para a experiência do escritor, mas num sentido muito específico.
“Quem vai de trator e a cavalo não são os escritores, mas sim os leitores” – com
esta frase o autor transpõe duas distâncias: a que separa o passado do
presente, a realidade da ficção. Ao invés de simplesmente recordar-se de seu
caminhar pela neve, vários anos antes, o autor faz da escrita e da caminhada
ações simultâneas, paralelas, situadas num agora que é o momento mesmo da
narrativa. Eis uma das grandes apostas chalamoviana na arte: poder fazer do
passado, da vida vivida, mais do que uma experiência petrificada no tempo, algo
a ser criado, um caminho ainda a ser aberto, e por isso ainda de todo
imprevisível. Prisioneiro e escritor andam lado a lado, traçando seu rastro por
entre a neve virgem e pela página em branco. Vejamos por onde nos
conduzem.
Em “O
encantador de serpentes”, o narrador recorda a conversa que teve certa vez com
um colega do campo, Platónov, ex-roteirista, que passara pela temível lavra de
ouro de Djankhará, onde sobrevivera graças à amizade com bandidos, a quem
“prensava romances”, isto é, recontava histórias de Dumas, Conan Doyle,
Wallace...
“– Você
também, na sua época, deve ter aproveitado essa vantagem única de ser letrado
por aqui.
– Não, não – respondi. – Isso sempre me pareceu a última humilhação, o fim. Nunca contei
romances em troca de sopa. Mas sei como é. Ouvi ‘romancistas’.
– Então me
condena? – perguntou Platónov.
– Nem um
pouco – respondi. – A um homem esfomeado podemos perdoar muitas coisas.
– Se sair
vivo – pronunciou Platónov, usando a frase sagrada com que começávamos todas as
reflexões sobre o que estava além do dia de amanhã – escreverei um conto sobre
isso. Até já tenho o título: ‘O encantador de serpentes’. É bom?
– É bom. Só é
preciso viver até lá. Isso é o mais importante.”
Mas Platónov
morre poucas semanas depois dessa conversa: “Morreu como morreram muitos outros
– brandiu a picareta, oscilou e caiu de rosto na pedra”. O narrador põe-se então
a falar sobre o colega, de quem gostava por jamais ter perdido o interesse pela
vida além dos campos, cuja existência se transformara para os outros em mera abstração.
Por fim, anuncia: “Eu amava Platónov, e tentarei agora escrever o seu conto ‘o
encantador de serpentes’”. É o que ele faz.
A personagem
do prisioneiro no campo de Djankhará é uma versão decaída da Sherazade das Mil
e uma noites. Também Platónov conta histórias para sobreviver, também ele tem o
poder da sedução pela narrativa. Mas não tem aquele dom tão fundamental de sua
parente árabe: a astúcia, que é arma do fraco contra o forte, conferindo ao
primeiro uma dignidade própria. Pela astúcia, Sherazade submete o sultão, seu
marido, e posterga a cada noite a hora de sua morte; mais do que isso, ela
acaba por vencer em definitivo o perigo que a espreita, e assim salva não só a si
mesma, mas todas aquelas que deveriam sofrer o mesmo destino. Essa é a história
de uma mulher ardilosa, cuja ação acaba sendo antes de mais nada redentora. Bem
outra é a história de Platónov. Seu talento lhe permite realizar apenas mais um
dos pequenos e degradantes favores que os prisioneiros comuns se viam obrigados
a prestar aos verdadeiros criminosos do campo, em troca de um mínimo de
comodidade e segurança – outra forma de favor muito popular consistia em coçar
os calcanhares dos bandidos. Platónov quer se iludir, afirma estar trazendo
para o campo o “iluminismo”, despertando naquelas almas duras o interesse pelas
artes e pelas letras. Mas no fundo ele sabe que contar histórias nessas
circunstâncias está “mais próximo de coçar os calcanhares sujos de um ladrão do
que do iluminismo”. Valeria ainda argumentar que a literatura, isto é, a
prática de contar histórias, continua a representar aqui, como sempre
representou para leitores e ouvintes de todos os tempos, uma forma de enganar a
morte e mantê-la afastada. Mas o alcance desse feito, no caso de Platónov, parece
bastante limitado; afinal, o autor anunciou a morte da personagem nas minas
antes mesmo de começar a contar sua história.
“O
encantador de serpentes” é um conto dentro de outro conto, uma história sobre
contar histórias, e nesse sentido nos permite refletir sobre a função que
Chalámov atribuía à literatura. Esse sentido não está na história particular de
Platónov mas na organicidade geral do conto, na relação entre suas duas partes.
Diante da decisão do autor de escrever o conto do amigo, cabe-nos perguntar:
por que contar a história de um outro? Em parte porque esse mesmo outro
gostaria que ela fosse contada, como disse Platónov no diálogo inicial do conto.
Mas, antes de mais nada, essa é uma necessidade do próprio Chalámov, que assim
salva também uma parte de sua história, algo que pertenceu ao seu mundo e que
ele amou.
Varlam Chalámov, em 1980. |
Pode-se
comparar (como já se comparou) a leitura dos Contos de Kolimá a uma descida aos
infernos – há que se atentar ao sentido positivo disto. Quando Ulisses desce ao
Hades, ele ilumina com sua presença aqueles que já não existem senão como
sombras, sem memória do que haviam sido. Platónov “morreu como morreram muitos
outros”, e é provável que tenha também vivido como viveram muitos outros em
Kolimá. Mas, ao contar a história do amigo, Chalámov faz dela um destino
individual, em oposição ao esquecimento generalizado, despersonalizante da
morte e da própria vida nos campos de trabalhos forçados. O sentido que se confere
à história de Platónov é semelhante ao que Ulisses traz consigo e que se
reflete na condição daqueles habitam o mundo inferior. Diz ao herói a sombra de
Aquiles: “Preferiria [eu] viver empregado em trabalhos do campo, sob um senhor
sem recursos, ou mesmo de parcos haveres, a dominar deste modo nos mortos aqui
consumidos”. Essa valorização da vontade de viver orienta boa parte da moral
subjacente aos Contos de Kolimá. O fato de já conhecermos a morte de Platónov,
antes mesmo de ouvir sua história, apenas reforça essa ideia. Sobreviver significa
poder contar sua história; contar histórias pode ser uma forma de sobreviver. Mas
Sherazade e Ulisses, esses dois grandes sobreviventes e contadores de
histórias, também morrerão. Eles querem durar mais um dia, mais uma hora, mas
não aspiram à eternidade. Aquele tipo de glória imortal, pela qual Aquiles e
tantos guerreiros se sacrificaram na Ilíada, não os atrai. Em Platónov nada
fala mais alto, nem mesmo sua dignidade, do que o desejo de viver – desejo que
é, segundo Chalámov, mais forte no homem do que em outros animais, e que se
verifica em cada prisioneiro como prova mesma de sua humanidade.
A decisão de
contar a história de um outro traz em si um problema ético, sobretudo no caso
Chalámov, dada a sua preocupação em não trair a verdade, não a mascarar nem a corrigir. Curiosamente, embora tivesse plena consciência do caráter artístico
de sua obra, o autor não julgava estar fazendo ficção; até certo ponto, não
julgava sequer estar fazendo literatura, ou pelo menos pensava fazer algo muito
diverso do que geralmente se entende por literatura. Ele criticou, por exemplo,
autores de ficção científica como Asimov, dizendo que tendiam a apenas “estreitar
o profundo abismo entre vida e literatura, mas não tentam construir uma ponte
sobre ele”. Chalámov afirmava que a prosa deveria ser um retrato da vida real,
sem qualquer disfarce, mas suas afirmações sobre a realidade são por vezes
contraditórias. Se por um lado ataca a ficção, tem ao mesmo tempo consciência
dos seus próprios (embora não os denomine assim) processos ficcionais,
necessários não simplesmente à representação da realidade, mas à construção de
uma verossimilhança. Ele sabe que o escritor, mais do que apresentar a
realidade, deve ser capaz de fazer o leitor acreditar nela – o que constitui um
dos desafios mais antigos da ficção. Sua tese é que seus contemporâneos já não
se deixam iludir por histórias inventadas; apenas a verdade pessoal do autor, a
vida por ele sofrida, tem o poder de convencê-los. Mas, novamente, essa verdade
não é para ele um fato, passível de ser fotografado, e sim um objetivo
a ser alcançado pela técnica do artista. Além disso, parece mais fácil enxergar
em Chalámov um movimento de continuidade do que de revolta contra uma forma de
narrar “tradicional”. O estilo de seus contos causaria provavelmente menos
estranhamento aos leitores do século XIX do que boa parte dos autores que o
precederam, como Marcel Proust ou Virginia Woolf. Isto porque Chalámov, ao mesmo tempo
que busca atender a certas demandas de sua época e que acredita estar
escrevendo a “prosa do futuro”, reinsere-se numa tradição bem mais antiga do
que as catástrofes do século XX, atualizando para o seu próprio momento a
função que sempre coube aos contadores de histórias profissionais: transmitir
ao ouvinte uma experiência que é (ou parece ser) a da própria vida vivida.
Voltemos,
porém, ao problema de seu conto: como retratar com fidedignidade uma vivência
que não é a sua? Note-se que em “O encantador de serpentes” não há o menor
indício de que Platónov tenha narrado ao autor detalhes ou fatos específicos de
sua temporada no campo de Djankhará. Tudo o que o autor parece saber é que o amigo
sobreviveu contando histórias a bandidos. Terá então Chalámov inventado todo o
resto? Não há dúvida de que inventou uma parte, pois não só o narrador em
terceira pessoa apanha os menores detalhes da realidade que lhe interessa
retratar como conhece em minúcias as reflexões de Platónov no momento exato em
que ele as elabora. Chalámov não trai com isto seus princípios de escritor. Para
ser “fiel” à história de um outro, não se pode querer contá-la tal como ela
aconteceu; afinal, nem mesmo os que a viveram possuem conhecimento tão pleno dos
fatos. Para ser fiel a Platónov, o autor deve recorrer à ficção, ainda que se
imponha a regra de não ultrapassar os limites daquilo que ele mesmo viveu e
conheceu. Ao invés da história da Platónov “tal como ela aconteceu”, oferece-nos
uma história que poderia ser essa história, assim como poderia ser a de
qualquer outro preso. Chalámov resumiu o objetivo de sua obra da seguinte forma:
“escrevo para que alguém, apoiando-se em minha prosa alheia a qualquer mentira,
possa contar sua própria vida, num outro plano”. Para além disso, o leitor
sente que essa poderia ser também a sua história: ela lhe é narrada de tal
forma que, mesmo sabendo antecipadamente da morte de Platónov, seu desfecho
parece incerto, e lhe é fácil assim colocar-se no lugar do personagem, no
momento em que este ainda vive – ao invés de enxergá-lo à distância, com a fria
indiferença com que os vivos olham os mortos, o passado que já se cristalizou.
Alguns
leitores tendem a enfatizar o caráter desesperador da experiência dos Contos de
Kolimá, colocando essa leitura como espécie de provação. De fato, esta pode ser
uma experiência difícil, mas mesmo os que sofrem com ela não deveriam se
esquecer de outro aspecto fundamental dessa obra: sua beleza e sua força de
sedução, que nos arrastam de página em página pelos horrores do campo, sem
outra esperança de redenção que não aquela da arte. Chalámov chegou a afirmar
que cada conto seu, mesmo os mais sombrios, trazem a “superação do mal, o
triunfo do bem, se abordarmos a questão sobre um plano maior, o plano da arte”.
Isto pode ser interpretado de mais de uma forma. A meu ver, um dos aspectos
mais positivos dos Contos de Kolimá está em que eles continuam a representar,
dentro da tradição dos velhos contadores de histórias, a reabilitação do
passado em nosso presente, na medida em que faz dele algo ainda a ser escrito,
ainda a ser traçado, semelhante à própria vida viva, mesmo quando a morte e o
silêncio desde o início se anunciam como a palavra final.
Bibliografia
citada:
CHALÁMOV, Varlam. Contos de Kolimá 1. São Paulo: Editora 34, 2016.
CHALÁMOV, Varlam. “Sobre a
prosa”. In: Contos de Kolimá 3. São Paulo: Editora 34, 2016.
HOMERO. Odisseia.
São Paulo: Hedra, 2011.
LEVI, Primo.
Se é isto um homem. Lisboa: Dom Quixote, 2016.
NIETZSCHE, Friedrich. Além
do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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