Ofício de Paciência, de Eugénio de Andrade
Por Pedro Belo Clara
Eugénio de Andrade. Foto: Rui Uchôa |
Apresentamos e,
com tal gesto, sugerimos um livro da completa maturidade de um dos poetas
portugueses de maior revelo no século XX, tecido numa madurez de expressão que
se poderá classificar de declínio em termos de teor, não pela parca valência da
temática, de todo, mas pelos assuntos trazidos à luz clara do poema, mais vividos
e naturais num indivíduo que conhece o inevitável rumo dos seus dias.
Lançado em 1994, contava o autor com setenta e um anos de idade, é, à
semelhança de outros livros que Eugénio editou em igual período, uma obra de
despedida, como se o poeta estivesse numa constante espera pelo derradeiro
momento, sabendo-o mais perto e, assim, mais provável de lhe perturbar, de
súbito, a placidez dos passos. Contudo, outros viriam, ainda, e com eles o
prazer das simples coisas de sempre, avivado a cada carícia – não obstante, em
contraste, a sombra que nenhum sopro poderá afastar. Mas, diga-se, tal
desenrolar-se-ia sem que o tema se tornasse obsessão, apenas uma inevitabilidade
que cada vez mais aprendeu a abraçar.
Escrevem-te tais impressões e é justo, por isso, que o leitor indague
desde já o porquê das mesmas na sua relação com o título do livro que para hoje
seleccionámos, algo que, e de bom agrado aceitaremos o parecer, ainda não se
apresenta claro.
De facto, o título da obra remete para a construção do poema, a
elaboração lenta e primorosa da parte que mais tarde se anunciará como poética,
o ofício que o autor puxou para si e que durante décadas exerceu com o mais
laborioso brio ("No prato da balança um verso basta / para pesar no outro a
minha vida." – in "Balança".) Diz-se construção mas também se dirá, sem
qualquer agravo, plantação, palavra talvez mais adequada aos laivos líricos e
bucólicos da poesia de Eugénio de Andrade, onde cada poema, antes de publicado,
sofria a paciente poda que o bondoso jardineiro lhe dedicava a bem do seu
completo viço. É nesse gesto que sem dúvida se aceita a expressão "ofício de
paciência", nascida duma intenção confirmada pelo próprio autor no verso
inicial do poema "Teoria do Verso": "De rojo não há poesia".
Essa intenção, sendo claramente transversal a toda a obra do poeta,
torna-se assim um sólido princípio, um carácter poético. O famoso livro de
1964, Ostinato Rigore, que curiosamente contém um poema chamado "O Ofício", e
que para muitos críticos encerra o primeiro ciclo da poesia eugeniana, no
próprio título detém uma secreta referência a esse estilo de abordagem que, no
fundo, mais não é que uma postura perante a forma de arte em causa: um rigor
obstinado. Mesmo que o poeta pouco valorizasse a característica prática do seu
trabalho, não obstante o seu empenho – tal como o poema "A Sílaba" denuncia:
"Toda a manhã procurei uma sílaba. / É pouca coisa, é certo (…) / (…) quase
nada. / Mas faz-me falta". Sobre este aspecto, decerto surgem na memória dos
conhecedores da sua obra as palavras que em prosa registou num louvor ao seu
avô materno, pedreiro de profissão: "Ele usava o granito como material, as suas
casas estão ainda de pé; o neto trabalha com poeira, sem nenhuma pretensão de
desafiar o tempo." (in "Como Longa Despedida", de À Sombra da Memória, 1993.)
A obstinação na prática do ofício era de facto uma extensão do seu
carácter enquanto poeta, possivelmente até enquanto homem e cidadão, pelo que
naturalmente a apreciaria noutros que a cultivassem. Foi sobre o modo do amigo
Carlos de Oliveira encarar o ofício que escreveu: «um trabalho de abelha». Mas
tal preocupação na altura da concepção total do poema não lhe era exclusiva.
Lembremo-nos que em Homem de Palavra(s), de 1970, Ruy Belo deixou-nos os seguintes
versos: "todo o tempo se lhe ia / em polir o seu poema / a melhor coisa que fez
/ ele próprio coisa feita" (in "Cólofon ou Epitáfio".) E já que lembrámos
Carlos de Oliveira, poderemos igualmente resgatar a sua expressão "micro-rigor",
timbrada no poema "Estalactite", de 1968. A respeito do que se aborda,
evoquem-se agora as palavras de Gastão da Cruz, no prefácio a uma edição da
presente obra: "A poesia é essa busca incessante de uma fala".
Há indícios disto um pouco por toda a obra de Eugénio, como já antes se
escreveu. Porém, não deixa de ser curioso como parece existir uma certa
intensificação nos últimos livros. Basta consultar a obra que editou no ano
seguinte, O Sal da Língua (1995), que não obstante o próprio título já remeter
para a linguagem em si, ainda oferece certos poemas onde o leitor mais
interessado pode explorar essa intenção tão firme como a fluidez duma natureza
íntima, algo que de tão natural reprimir-se-ia se negado fosse.
Logo no poema de abertura, por exemplo, lemos: "não tens outro país,
não tens / outro céu. / (…) procura tocar a terra cheia / do teu coração. /
Outra vez." (in "Aproxima a Boca".) Um pouco mais à frente surgem novas
referências, desta vez feitas confissão aberta: "Ele amava a pulsação das sílabas.
/ (…) / Quanta obstinação, quanta incerteza / foi sempre a sua no que fazia /
(…) / (…) mas prosseguia, insatisfeito / ou inseguro, que nem isso sabia." (in "A
Pulsação das Sílabas".)
De tanto lapidar, de perseverar na tentativa de guiar a linguagem do
poema "rente ao dizer" (o título de uma outra obra sua), a sílaba ganhava
revelo e o próprio poema assumia um imenso brilho na brevidade do seu corpo.
Será aquilo a que, de novo, Gastão Cruz referiu-se como "espécie de autonomia
da sílaba dentro do verso", as autênticas "células do poema, incansavelmente
perseguidas por quem o produz". Acrescente-se ainda o seguinte, a bem de melhor
elucidação: "Nelas [as imagens] habita a verdade do texto, um mundo que reside
em cada palavra e em cada sílaba: captá-lo é o ofício (paciente) do poeta".
Mas não nos alonguemos para além do necessário, pois apesar do título
da obra o sugerir nem só da relação do autor com a prática poética se faz este
livro. Há que frisar, como atrás deixámos em aberto, o adensar duma temática de
declínio, uma abordagem onde a memória, a perda e a aproximação natural da
morte têm um lugar de maior destaque.
O poeta do sol, sem perder por completo o brilho, ao ponto de o fazer
mergulhar numa escura noite sem lua, vai lentamente despedindo-se do seu verão,
legando ao vento as mais estimadas memórias, preparando-se como melhor se lhe
poderá parecer para o grande desconhecido que caminha até si – grande vazio ou
esquecimento completo, quem o saberá? Mas a esperança insinua-se, mesmo no
anonimato do seu rosto, apenas um suspiro por algo bom e belo. Repare-se em "A
Pergunta de Stevens": "Em vez de morte, que teremos no paraíso?".
Assim, surgem de novo evocações da figura materna, sempre querida e
nunca ausente ("por mais que escutes, não voltarás / a ouvir a voz de quem, /
há muitos anos, era a delicadeza / da terra a falar (…)" – in "Lugar do Sol"), a
ferida mais visível e profunda no coração do autor que o passar dos anos não
curou de todo, dado o carinho e admiração que por tal figura sempre nutriu: "Como
podias, uma / a uma, suportar as lágrimas / do mundo, ninguém sabia: / o lugar
do sol / era a casa – e ardia." (in "Sobre o Coração".)
Também o assistir à morte de diversos amigos cravou fundo a sua marca.
O poema "Os Difíceis Amigos" confessa-o sem reservas, numa dolorosa aceitação
da maior inevitabilidade de todas: "Esses mortos difíceis / que não acabam de
morrer / dentro de nós (…) / tão difíceis, os amigos." Ideia que, no seu todo,
é reforçada pelo belíssimo “Melancolia”, agora oferecido na íntegra para o seu
prazer, estimado leitor:
O sol mal entra em casa – escrevo
sobre a fugidia
luz de areia,
luz que não encontra morada.
Tudo me dói neste dia
em que os mortos deixam à porta
dos vivos
a corrosiva melancolia.
Resta ainda a memória do tempo mais áureo, a infância – luminosa e
inocente. Aspecto também comum a muitos outros poemas passados, aqui
reafirma-se talvez num contexto de recordação final, uma despedida que se não é
assumida pelo menos trata da sua preparação. Contudo, nada exclui a hipótese de
nova exaltação: "tenho quinze anos, ao espaço / quadrado do pátio / regressa o
canto das cigarras. / Com o sol à roda da cintura / o corpo deixa de ser
hesitação, / corre ao encontro da água / ou doutro corpo, e canta, / canta sem
razão." (in "Com um Verso da Ceifeira".) Mesmo que o poema "Ao Crepúsculo"
venha admitir que essa criança já está morta.
A morte insinua-se, como se vê, e é esse o movimento mais incisivo na
obra. Mas, ainda que o autor, numa aceitação que ultrapassa a mera resignação,
admita a certeza da premonição mais íntima, há tempo para a vida, há lugar para
a canção, há espaço para exercer uma vez mais o prazer dum ofício que de dores
não se livra. Afinal: "(…) para a morte / não tens ainda palavras, / ainda não,
ainda não, ainda não." – in "A Porta".
De facto, nada exclui a oportunidade dada pelo tempo feito presente no
corpo do poema, o tempo onde a vida ainda respira, onde cada elemento seu se
mostra disponível à experiência, ao louvor, ao festejo: "O ar, / em cada rua o
ar, / dança comigo." (in "Canção".) A prova da maturidade no homem, a sensatez
de anos de vivências culmina aqui: "Contenta-te com ser (…) / (…) esta luz
breve." (in "Assim Seja".)
Daqui advém o que se poderá apelidar de "dignidade da queda", uma total
aceitação das leis naturais do mundo, nomeadamente a finitude da matéria, sem
qualquer mácula para a realidade presente, seja lá como for que se apresente.
Uma aceitação que, pela paz que permite, surge igualmente como um sentido respeito
pela vida até aí vivida ("De tão luminosa, essa ferida / já nem dói", in
"Coisas Mudáveis"), não obstante a secreta ansiedade que ainda estimula,
perfeitamente compreendida à luz da natureza humana: "O fim não pode tardar:
oxalá / tenha em conta a sua nobreza", como escreve a respeito da "mão que
escreve os versos", agora observada na inegável evidência do seu envelhecimento
(in "Os Trabalhos da Mão".)
Mas fiquemo-nos, por ora, com os belíssimos versos do poema "De Ramo em
Ramo", que magistralmente demonstram a necessidade de beber toda a água da
fonte antes o que veio se esgote:
Não queiras transformar
em nostalgia
o que foi exaltação,
em lixo o que foi cristal.
A velhice,
o primeiro sinal
de doença da alma,
às vezes contamina o corpo.
Nenhum pássaro
permite à morte dominar
o azul do seu canto.
Faz como eles: dança de ramo
em ramo.
Que venha a morte,
então, quando bem entender: encontrar-nos-á em pleno festejo – eis o que se
poderá extrair dum poema escrito em tom de conselho, um poema com discurso de
duplo sentido: ora para o próprio poeta ora para quem o ler.
São conhecias as simpatias de Eugénio pelo budismo, nomeadamente o zen,
e numa dessas tradições encontramos uma pequena história de essência
praticamente gémea da deste poema. Vejamos, resumidamente: um homem está a ser
perseguido por uma fera e, na tentativa de escapar, tomba num precipício,
agarrando-se em último momento às raízes duma frágil árvore. Em baixo, no fundo
do despenhadeiro, e para cúmulo absoluto, uma outra fera se encontra, também
ela já pronta para o atacar. Num repente, olha em frente e vê um pequeno fruto
maduro, deveras apetecível. Entre duas feras, o que faz o homem? Pois bem, come
o fruto! E deixaremos o demais ao entendimento de cada um.
O coração é "matéria
nobre" e só "a paixão o rouba à morte" (in "Matéria Nobre"), pelo que embora
seja tão humanamente fácil cair numa noite escura, persevera-se ainda,
serenamente, à luz do sol que o alimenta – a mesma substância que, convenhamos,
fez germinar se não toda pelo menos grande parte da obra de Eugénio de Andrade.
É um trabalho de
grande maturidade e digno da sua excelência, este que temos vindo a discutir.
Sobressai naturalmente uma maior depuração dos elementos mais comuns na
temática do autor, não só ao nível do vocábulo como da imagem, fruto de anos
entregues à paciente maturação dos mesmos. Como consequência desse
amadurecimento, os poemas tornaram-se menores (lembre-se a inscrição que
Eugénio escolheu para este livro, uma frase resgatada ao dizer de Mies van der
Rohe: "Menos é mais"), duma leveza crescente e duma cada vez mais admitida
simplicidade de processos, um pouco ainda dentro da lógica antes admitida: o
esforço de levar a linguagem poética para perto da linguagem falada.
O resultado de tudo são os sempre cintilantes poemas que Eugénio
magistralmente assinou e que justamente o elevam como o autor de vários dos
mais belos versos da poesia portuguesa do século XX.
Ouço-o partir, o sol da mão.
O prazer do ofício,
a paciência de areia
abrindo para os caminhos do verão,
também eles a chegar
ao fim. Foi assim que partilhei
o pão, o tão amado
sopro vindo do sul.
Não tardará o sono: já
começou na fala.
É tempo de atirar aos cães
a coroa de lume.
(in "Coroa de Lume")
Comentários
Beijos.