O rei das sombras, de Javier Cercas


Por Pedro Fernandes

Javier Cercas. Foto: Francis Tsang

“se me dessem para escolher entre passar por aquilo de novo ou morrer, eu escolheria morrer”.
(fala de Carme Manyà, sobrevivente da Guerra Civil Espanhola e a última que, talvez, tenha guardado na memória a imagem de Manuel Mena, ao explicar sobre seu silêncio acercado conflito em O rei das sombras)

“adormeci perguntando-me se, como ele, Manuel Mena (o Manuel Mena defunto, mas também o Manuel Mena taciturno e absorto e desencantado e humilde e lúcido e envelhecido e cansado da guerra) não teria preferido ser um servo entre servos vivo a ser um rei morto, perguntando-me se no reino das sombras ele também teria compreendido que não existe vida além da vida dos vivos, que a vida precária da memória não é uma vida normal mas apenas uma lenda efêmera, um sucedâneo vazio da vida, e que só a morte é certa.”
(Javier Cercas, O rei das sombras)

Em 2019 passam-se oito décadas do fim da Guerra Civil Espanhola, acontecimento cujas marcas, passados tantos anos, ainda são visíveis entre os espanhóis. Passado o tempo de silêncio sobre a tragédia, a batalha reacendeu noutros campos, sobretudo no literário. Escritores em sua grande maioria antipáticos ao horror não pouparam tintas em voltar aquele conturbado contexto e oferecer, por ângulo diverso, diversa leitura sobre situações, sejam as registradas pela história oficial ou apenas pela memória de sobreviventes, sobre figuras, históricas e anônimas, os chamados heróis e a gente simples. Tema, contexto, apenas pano de fundo, o fato é que o conflito se tornou uma sombra no imaginário espanhol da qual ninguém pode (e nem deve) fugir dela sem enfrentamentos. Pior que os acontecimentos do front só mesmo aqueles que foram sua consequência: é que o fim do confronto entre Republicanos leais à Segunda República Espanhola e Nacionalistas significou uma ampliação dos horrores com a subida ao poder do general Franco, quem governou com sangue toda Espanha até sua morte em novembro de 1975. Desdobramento tão recente na história dos espanhóis, reside aí um dos motivos de ainda ser esta uma força de embate tão viva. É que num contexto de guerra ou de ditadura é praticamente impossível quem não se envolva direta ou indiretamente, no front ou noutras linhas de frente. A história não nos deixa mentir sobre o envolvimento, por exemplo, daqueles intelectuais mais desinteressados do seu entorno e há quem diga que, em contextos de extremismos quem silencia também participe de alguma maneira dos embates, seja pactuando seja protestando contra a ordem.

Já uma vez Javier Cercas havia visitado o tema da Guerra Civil Espanhola: em Soldados de Salamina. Mas, se é dito que um escritor forja de suas experiências o material com que produz seus universos ficcionais, ainda havia ficado coisas para dizer. Os fantasmas que levaram o escritor a retornar à questão provam que eram maiores e mais complexos e, portanto, impossíveis de apaziguá-los com a ficção. Desses fantasmas, quase todos nós temos os nossos; acontece que nem todos são, como Javier, escritores. A questão, entretanto, não é tão simples. As dimensões incontornáveis de algumas sombras se mostram como desafios aos criadores. Logo, não é o caso de que um escritor seja sempre capaz de transformar seus fantasmas em produto literário. Justifica-se, assim, a razão porque o retorno do escritor espanhol ao doloroso tema do romance de 2001 se constitui sempre um receio que nasce da crítica interrogativa – mais um romance sobre a Guerra Civil – e se transforma em espécie de refrão ao longo de O rei das sombras, numa tentativa de convencimento do próprio autor e, por conseguinte, do leitor, de que este não é mais um romance sobre a Guerra Civil. No início do capítulo 3, o leitor encontra uma conversa entre o próprio escritor e o amigo David Trueba – foi ele quem levou ao cinema o estrondoso sucesso literário de Soldados de Salamina – que assume essa posição inquisitorial do mais um romance sobre a Guerra Civil: “será que não se deu conta de que a guerra não está mais na moda? Por que não escreve uma versão pós-moderna de Sex o no sex ou de Qué gozada de divórcio?!”

Se atento ou não às melindrosas sugestões de David Trueba, Javier Cercas escreve uma versão pós-moderna não de uma obra de tema sexual-amoroso, mas da Guerra Civil. O rei das sombras é, a um só tempo, a história para a possível escrita de um romance, o romance e a análise de um narrador em terceira pessoa, distanciado de tudo, portanto, a perscrutar a própria história aqui recobrada e os embates do escritor com ela. Isto é, suspende-se a acusação de “mais um romance sobre a Guerra Civil” visto que o produto final, a obra, pode ser lida como figuração sobre a possibilidade de um romance. E não apenas porque o escritor investe no manjado truque de bastidor da criação, mas pela tensão criada entre duas ordens que continuamente se enfrentam, a ficção e a história. Assim, o que seria a biografia romanceada da personagem à sombra, o tio-avô Manuel Mena, torna-se em pura tentativa de um romancista em se distanciar do ficcional para a composição de uma narrativa que se quer histórica, ou seja, a biografia em si. O leitor assiste o trânsito desse escritor entre um único registro tornado sombra na sua memória, uma fotografia de estúdio na qual se vê caracterizado de alferes o próprio Manuel Mena, e seu interesse de reproduzir fielmente datas e situações, sobretudo as do front, das quais ainda restam escassos documentos.

O trabalho, diríamos, arqueológico de Javier Cercas faz seu romance aproximar-se e muito da ideia de documentário e finda por provar algo que desde o alvorecer da Nova História se tornou recorrente entre ficcionistas e historiadores, sobretudo para estes últimos: toda história também uma construção. Embora motivada pelo documento, e pela ideia de que contra fatos não há argumentos, nem sempre o documento é portador da verdade indefectível e os fatos falam por si só. Por exemplo, no caso brasileiro, afirmar que existiu um golpe militar e uma ditadura sangrenta nos mesmos moldes de qualquer regime ditatorial é situação inconteste porque contra fatos não há argumentos, já determinar a posição de alguns daqueles que apoiaram o golpe e o regime é algo que nem mesmo as mais acuradas investigações são capazes de oferecer.

O rei das sombras é mesmo sobre isso: não se trata de outra tentativa de reescrever sobre a Guerra Civil Espanhola, mas de sondar as motivações que levaram Manuel Mena, uma figura integrada à mesma ordem social dos menos favorecidos de seu vilarejo, a se voltar contra sua própria ordem, já que, ao invés de uma posição ao lado da República, de interesses urbano-progressista, se debanda para um grupo conservador falangista, maioritariamente aristocrático. A resposta para essa investigação não está em parte alguma e torna-se para Javier Cercas numa espécie de acerto de contas dele com sua própria história: o fato de que seus antepassados tenham sido partidários de um regime tão covarde e bárbaro é só uma das sombras que pairam sobre sua existência. No fim, o escritor parece expor que o homem, em matéria política, é uma eterna incongruência e alguns são capazes de, em nome de suas ideologias ou de seus próprios interesses, assumir posições tão variadas e controversas, muitas vezes, em simultâneo. Outra pergunta que fica é: com qual propósito? O rei das sombras investiga algumas possibilidades, mas como para a primeira pergunta, não existe resposta a nível da razão capaz de justificar esses complexos meandros.



O rei das sombras é escrito ainda como resposta a outra provocação; esta vinda da mãe de Javier Cercas, quem durante muito tempo guarda as histórias que pintam Manuel Mena como o grande herói da família, o jovem imolado em honra do vigor e da glória da nação, o que o escritor chama de kalos thanatos, numa revisitação do termo grego sobre a morte do herói jovem em honra da polis. Para a mãe do escritor, “a pessoa morre e no dia seguinte ninguém se lembra mais dela”. A obsessão pessoal toma, assim de um gesto coletivo, o não apagamento da memória pela escrita. Se não é intuito do escritor tornar esse herói familiar num herói coletivo, é intuito oferecê-lo a outras gerações como espécie de ponto no denso tecido da história. A escrita, portanto, terá alguma função de guardiã da memória e esta de sustentação da eternidade. Que o diga os próprios gregos, temíveis de que o apagamento da memória seria o apagamento de si próprios.

O romance por fazer de Cercas, cujo produto é o próprio romance, torna-se testamento escrito sobre algo estritamente individual, mas não é uma confissão gratuita. A história de Manuel Mena é tomada aqui como um pretexto para uma variada gama de preocupações universais como é possível determinar este tema da memória. Recordá-lo é torná-lo vivo noutras memórias e em gerações totalmente alheias à sua já que, para citar a própria obra, “os romances são sonhos ou pesadelos que não acabam nunca, apenas se transformam em outros pesadelos e sonhos”. Mas é, sobretudo, reavivar algo que é de extrema valia numa ocasião de apagamento da história. A morte de todos aqueles que recordam Manuel Mena pode significar o total desaparecimento do próprio Manuel Mena. Mas não é essa somente a preocupação de Javier Cercas; sua preocupação é com o apagamento da memória sobre o horror. Este apagamento poderá reconduzir as próximas gerações outra vez aos mesmos subterfúgios que justificaram no passado a barbárie. É sintomática a posição de David Trueba a princípio sobre o interesse do amigo em voltar a escavar o passado: “Não importa o que você escreva, alguns o acusarão de idealizar os republicanos por não denunciar seus crimes, e outros o acusarão de revisionista ou de maquiar o franquismo por apresentar os franquistas como pessoas normais e comuns e não como monstros. É simples: a verdade não interessa a ninguém, não percebe isso? Alguns anos atrás, até parecia que interessava, mas foi ilusão. As pessoas não gostam da verdade: gostam das mentiras; melhor nem falar dos políticos e dos intelectuais.”

A neutra posição assumida por Javier Cercas em O rei das sombras não pode servir de acusação relativista ou ainda de justificação pessoal sobre a conduta da personagem em questão. Isso porque o leitor deve percebê-la enquanto signo de alguma coisa que o escritor precisa, ao invés de reprimir, expulsá-la para além de seus próprios limites, levá-la a outros limites fora de seus próprios limites definitivos. É por isso que encontramos em Manuel Mena, de alguma forma, aquilo que reside dentro de nosso próprio tempo – ele se torna espécie de sinal que nos alerta sobre o necessário policiamento das fronteiras que estão prestes a se romper em favor da mesma força do contraditório. O escritor compreende que as oposições significam uma maneira exclusiva das ideologias e é preciso, ao invés de se decidir por esta ou aquela posição, compreendê-las em trânsito. Tal como a realidade não é capaz de explicar a ficção, tampouco a ficção nos deve tentar a impor uma visão específica da realidade. A alternativa oferecida por Javier Cercas é a alternativa oferecida pela literatura – o limiar.

Isso também se mostra na impossibilidade de conter o passado, no sentido de compreendê-lo em sua totalidade. Assim, o que seria a história verdadeira, a biografia, também não o é. É apenas enquanto possibilidade que se alcança alguma compreensão sobre as coisas, incluindo os limites da história.  “Um tanto confuso com essa movimentação toda, pensei que, por mais que eu tivesse investigado a história de Manuel Mena, não só o que ignorava era muito mais do que eu sabia como também que seria sempre assim, como se capturar o passado fosse tão difícil como segurar a água com as mãos; eu me perguntei, então, se não é sempre ou quase sempre assim, se o passando não é, no fundo, um terreno escorregadio e inacessível, e disse a mim mesmo que esse era mais um bom motivo para não tentar contar a verdadeira história de Manuel Mena”.

O rei das sombras ao ser a história possível de um rapaz que lutou por uma causa injusta e morreu do lado errado da história, qual sublinha redutoramente a sinopse da obra, perfaz a compreensão segundo a qual se o passado não altera o presente, ele modifica o sentido e a percepção do futuro, ou para recuperar os termos aqui parafraseados: “Se não é verdade que o futuro altera o passado, é verdade, no entanto, que ele modifica o sentido e a percepção do passado”. A primeira sentença é do leitor, a segunda do escritor. A do escritor recobra sobre a inviabilidade de acesso à verdade histórica; a do leitor é de que o passado pode servir de instrumento a que não se cometa os mesmos erros em nome de idealismos gratuitos. O recado está dado.


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