O enigma Simenon permanece vivo



Por Juan Carlos Galindo

Georges Simenon. Foto: David Montgomery.


Ficou conhecido como o homem das dez mil mulheres e dos quatrocentos livros. O primeiro epíteto pode ser algo exagerado; o segundo, não é. Personagem de biografia impossível, Georges Simenon (Liège, 1903 – Lausana, 1989) deixou para trás uma obra descomunal, um legado literário do qual o comissário Jules Maigret é apenas uma parte e cujo olhar continua oferecendo chaves sobre o ser humano de hoje. Pela passagem dos 90 anos da primeira aparição de Maigret em La Maison de l’inquiétude, criadores e editores recordam no festival Quais du Polar de Lyon a figura que para o Nobel e amigo íntimo seu André Gide era “o romancista maior e mais autêntico”.

“É mesmo um dos poucos se não o único autor de literatura policial reconhecido como grande autor literário. Com grafomania, escrevia a todo tempo – não só as histórias de Maigret mas também os chamados romances duros, que são magníficos – era uma espécie de anomalia. Era um homem que vivia para a literatura e sua capacidade de escrever tanto e tão bem a todo tempo o converte numa espécie de gênio”, resume Stéfanie Delestré, editora da Série Noire da Gallimard.

Nascido numa família belga pequeno-burguesa, este homem precoce em tudo – aos 15 deixou a escola, aos 16 já trabalhava como jornalista e aos 27, antes de publicar seu primeiro livro com seu nome, já conhece o êxito massivo graças aos mais de 150 contos e relatos populares assinados com pseudônimos como George Sims ou Jean Du Perry – encerra um grande paradoxo. Famoso e milionário com gosto para a ostentação, sua vida está construída sob um plano preciso do qual pouco sabemos claramente.

A verdade não está nas entrevistas ou nas memórias as quais se dedicou com profusão quando deixou a ficção em 1972, mas em detalhes, pistas e elementos dispersos por sua obra ficcional. “É visível que lhe fascinava alimentar-se de sua própria vida e metamorfoseá-la em seus romances”, explica Laurent Demoulin, poeta, crítico e responsável pelo arquivo do Centro de Estudos Georges Simenon na Universidade de Liège. Sejam policiais ou romances à sério, nas histórias de Simenon há culpa, solidão, fatalidade, incomunicabilidade, traição, dubiedades e silêncios e algo disso tudo também fez parte na vida do escritor.

John Simenon, Johnny, o filho nascido nos Estados Unidos, é talvez quem melhor representa essa mistura entre a criação e a existência. “Minha relação com a obra de meu pai não é complicada, mas paradoxal. Quando comecei a lê-lo sentia certo mal-estar com alguns elementos que não eram biográficos mas que eu assim os reconhecia. São características das personagens porque as histórias nunca eram autobiográficas. Deixei de lê-lo e quando voltei aos 35 redescobri sua obra de maneira diferente: dei-me conta de como minha educação e minha juventude estiveram marcadas por uma ética e um espírito que estavam em seus livros”. Seus episódios mais obscuros – a relação com sua mãe e seu irmão ou sua atitude durante a ocupação nazista da França – estão também aí, em traços sutis, para quem saiba rastreá-los.

Sua magnífica vida corria paralela à sua obra. Em 1948 vivia no Arizona na mesma casa com sua mulher Tigy, sua amante e secretaria Denyse e sua cozinheira Boule, com quem também mantinha um caso. Só nesse ano produziu dois de seus melhores romances (A neve estava suja e Pedigree) e um de seus mais reconhecidos episódios policiais Maigret e seu morto. Como trabalhava? Sozinho, sempre sozinho. Numa sala sem barulho, na calma, isolado, por isso ninguém o via trabalhando”, diz o filho. “Logo havia um processo de maturação e em algum momento era mais em modo automático. Além disso, antes de começar uma história fazia grandes caminhadas”.

As cifras [em torno de sua obra], como sempre, são grandiosas. É o 17º autor mais traduzido no mundo, o primeiro em francês entre os escritores do século XX e o terceira em toda a história perdendo apenas para Júlio Verne e Alexandre Dumas, segundo a Unesco. Pergunte a quem perguntar, as loas se repetem: “Soube utilizar o gênero policialesco para escrever romances de grande profundidade”, assegura Demoulin. “É o primeiro que não se baseia na busca do culpado mas do ser humano em geral. Graças ao noir chega à exploração da alma humana”, acrescenta o filho John. “Com Simenon é preciso ir desprendendo-se de tudo para deixar apenas a emoção, que é como o alcança”, explica o diretor Bertrand Tavernier.

A ponto de ganhar o Goncourt em 1937, Simenon também sonhou com insistência com o Nobel em 1961, mas seu grande auge literário chegou com a publicação de parte de sua obra na Plêiade em 2003. Precisamente com Gaston Gallimard, Simenon demonstrou que não era um escritor qualquer. Rompeu com o editor que o havia levado à glória para com outro desconhecido ir mais além, uma operação que redefiniu a posição dos escritores no mercado editorial naquele tempo.

Se existe um biógrafo que melhor se aproximou à figura real do escritor, este biógrafo é Pierre Assouline, quem em duas pinceladas define a personagem e o autor. A primeira, no prólogo da coleção Tout Maigret, recém-publicada em francês pela Ómnibus: “Sua genialidade radica em sempre falar do leitor sem interpelar o leitor”. A segunda, em seu livro Simenon (Folio): “Durante muito tempo tem sido apresentado como um fenômeno conhecido por sua notoriedade enquanto o que ele mais queria ser antes de tudo era um romancista e nada mais que isso porque apenas servia para isso”.

A fascinação de Tavernier por uma arte sem álibi

Existem cerca de 70 adaptações para o cinema de histórias escritas por Simenon. A série da televisão francesa é a segunda que mais tem resistido ao tempo na história. Bruno Cremer, Jean Gabin ou agora Rowan Atkinson se colocaram na pele de Maigret. Dentro da tradição iniciada por Jean Renoir em 1932, Bertrand Tavernier tem um papel especial. Grande conhecedor da obra do autor belga, em 1974 adaptou para o seu primeiro longa-metragem um de seus romances em L’Horloger de Saint-Paul (O relojoeiro) e transferiu a trama dos Estados Unidos para Lyon, cidade onde se criou. “Coloquei tudo o que sabia sobre a cidade. Tinha autêntica paixão por ele. Graças ao meu pai comecei por Maigret e o devorei. Há algo extraordinariamente forte e profundo na sua narrativa, é que não necessita de álibis. Em Simenon não existe intriga. O ponto de partida é sensível mas chega sempre a um resultado poderoso que se vê em grandes filmes”, diz o cineasta que recomenda O gato e A cabeça de um homem.

Seis recomendações para uma obra impossível de abarcá-la

É impossível reduzir a extraordinária quantidade de bons romances de Simenon a um pequeno grupo. Propomos estes seis títulos por sua relevância na carreira do escritor e por sua influência e prestígio:

A neve estava suja. Talvez a mais duro dos romances duros. Um olhar cruel sobre a Ocupação – embora não se localize em nenhum lugar concreto –, o colaboracionismo, a ânsia de progredir na vida seja como for, o papel da violência na vida.

O gato. O medo à solidão, a miséria de se tornar grande, a imundície moral era isto. Quase todos os especialistas coincidem em eleger este romance entre os três melhores do autor.

Pedigree. Uma história que não é autobiográfica embora pareça ser e com a qual Simenon conseguiu suas mais altas quotas literárias.

Maigret e seu morto. Marcado por um início magnífico, este é um dos romances da série Maigret em que melhor se revela a complexidade dessa personagem.

O engano de Maigret. Um dos mais adaptados para o cinema e a televisão e uma das narrativas que trazem melhor os ingredientes clássicos do gênero policial e que tem o melhor ritmo.

Maigret em Nova York. Uma oportunidade de ver o comissário e num contexto alheio ao de sua querida Paris. Um lugar em que às vezes se encontra perdido e em que se misturam momentos de grande lucidez com alguns de muito cansaço. Não está entre os melhores liros, mas é um dos mais singulares.

* Este texto é uma tradução livre de "El enigma Simenon sigue vivo", publicado aqui, no El País.

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