O deslocamento como linguagem e caminho
Por Tiago D. Oliveira
Viajar é
pela viagem em si. É para ter o caminho debaixo dos pés.
Adriana
Lisboa, Rakushisha
Pensar a representação de um objeto literário
é o primeiro passo depois da leitura de sua apresentação, o que se desenha com
maiores detalhes quando as páginas do livro chegam ao fim. Stuart Hall afirma
que representação significa utilizar a linguagem para inteligivelmente,
expressar algo sobre o mundo ou representá-lo a outras pessoas, o que aponta em
O papel da representação. Em Sábado, livro publicado pela Editora ParaLeLo13S
em 2018, a editora, poeta e tradutora, Sarah Rebecca Kersley, utiliza a escrita
como registro de sua condição de deslocamento e aos poucos tece uma busca que
faz do caminho a linguagem para uma mensagem pulsante e contínua sobre questões
de identidade, cultura, língua, tradução, literatura e vida.
O livro começa quando Sarah realiza em 2017
uma viagem para visitar a família depois de descobrir um problema de saúde de
seu pai. Seguindo o conselho de uma amiga – aproveite para finalmente pensar
nessas coisas de família – Sarah, que não se interessara pelo passado de sua
família e também não havia se identificado com a religião herdada, – eu sempre
me senti confusa sobre o judaísmo como religião e, dado que qualquer busca mais
profunda na história pessoal estaria intrinsecamente ligada a isso, ou pelo
menos eu a percebia assim, acabei empurrando todos os questionamentos que me deixavam
desconfortável para debaixo do tapete – via agora uma chance de tatear suas
raízes ao encontrar, já na casa de seus pais na Inglaterra, em uma caixa de
antigas lembranças, uma carta de seu avô que trazia o nome de Anatoly Naiman,
poeta russo conhecido como um dos órfãos de Ana Akhmátova, que Sarah veio a
descobrir como seu primo. Tal possibilidade de contato reapresentaria a
religião e outros caminhos herdados e até então alheios. Essa descoberta fez
com que Kersley iniciasse uma sequência de troca de mensagens com Naiman, o que
levou-os a uma partilha de cultura, poemas e trajetórias que se desenharam como
respostas.
O que fica claro na leitura do livro é que as respostas que a autora
busca estão no movimento, o que independe do destino final daquela investigação
por suas raízes familiares. Ao passo em que Sarah vai acessando informações e
remontando as pegadas dos seus, ela também consegue compreender melhor os
motivos que a fizeram sair de seu país e adotar outro com cultura e costumes
bem diferentes, já que vive na capital soteropolitana da Bahia atualmente. A
sua condição no presente, de estrangeira no Brasil, passa a ganhar nova
semântica ao mesmo tempo em que resgata a história de seus antepassados, assim
deslocando o próprio sentido de estar em trânsito para uma condição comum,
herdada e por isso natural. Fica no leitor o desejo de imaginar que Sarah, de
certa forma, continua os passos de seu povo pelo mundo espalhando a força e
beleza que carrega no sangue.
Sua busca é alimentada a cada passo que
dá na procura de entendimento de seu passado. A linguagem que tece a narrativa
carrega a força testemunhal de quem descobre e apresenta, e nessa representação
inaugura novos laços, dessa vez separados pela geografia, mas unidos pela
palavra. Ela e o primo poeta, separados pelo mar, mas unidos agora não só pelo
sangue, mas pelos poemas que podem ser traduzidos em Português, no que
encomenda a uma especialista no Brasil. Kersley também apresenta para Anatoly a
poesia contemporânea brasileira e inicia a tentativa de tradução de poemas do
primo para o português. O que inicialmente não parece ser possível, – Mas creio
que nós dois sabemos que a poesia só existe na língua nativa e que, quando
traduzida, torna-se uma escultura de si mesma. – Anatoly não manifesta vontade
de que seus poemas sejam traduzidos para o português. O que não a desanima a
escrever novamente para ele até receber nova resposta – Por favor, sinta-se à
vontade para usar os meus poemas para qualquer propósito. A tradução dos poemas
acontece, assim como a dessa relação que traça novos caminhos do povo judeu,
agora na Bahia deste século, no lugar em que Sarah escolheu para escrever e
viver. A tradução dos caminhos que começaram em diáspora lá atrás, continuava em condições e motivações diferentes.
Sarah Rebeca Kersley traduzia e grafava agora com seus próprios pés a
continuação de sua história família, só que no outro lado do mundo e em um
contexto espontâneo, escolhido.
Sábado, que faz referência clássica a um
dos costumes do povo judeu, o de guardar no sábado o corpo para o descanso
depois da semana trabalhada, traz postais antigos, fotografias, imagens de
obras de arte, partes do acervo pessoal da família que ajudam a compor e
ilustram o trajeto dessa busca que vai sendo reafirmada pelo próprio caminho. A
sensação é a de que esta ainda segue seu curso, já que o término da viagem
acontece, os poemas são traduzidos para o português e a troca de mensagens com
Anatoly continua, culmina na publicação do livro de Sarah. O livro, que também traz
os poemas na língua original, o russo.
A forte impressão que fica é que o
deslocamento que a autora realiza é a principal ferramenta de entendimento para
a sua busca. A representação de seu livro passa a ser também mais um capítulo
dos ecos da história do povo judeu no mundo. A linguagem representada pelo
movimento de redescoberta e afirmação é permeada por um sentido de poesia nas
horas, durante toda a leitura do livro. Como se este lugar em trânsito fosse o primeiro
elemento motivador para que os dias continuem passando e grafando a beleza e
força do tempo.
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