Leitura crítica do conservadorismo e seus aprendizados
Por Rafael Kafka
Ilustração: Bellow Designer |
Decidi após
as eleições fazer um exercício de leitura mais crítico em relação às posições
contrárias àquilo que defendo. Lembrei-me de um antigo conhecido que na fase de
intelectualidade ingênua vivida por nós ali por 2007 me dizia sentir vontade de
ler a Bíblia, pois gostaria de discutir com mais propriedade crítica os
discursos com os quais não concordava. Inspirado por ele, que não fez aquilo que foi prometido, também tentei ler a Bíblia, mas desisti após me
deparar com o tanto de proibições presentes no Pentateuco e sentir que iria
abandonar minha fé de então se eu seguisse na leitura do texto sagrado cristão.
Após as
eleições, porém, veio-me à mente a ideia de tentar novamente colocar em prática
essa ideia e confesso que tem sido interessante, pois várias posições políticas
mais conservadoras não me parecem mais tão monstruosas, mesmo eu não
concordando com elas. Nos últimos meses, fazendo leituras dos representantes do
pensamento liberal conservador, passei a entender a diferença básica entre dois
tipos de ideias: o tipo com o qual não concordo e o tipo que é realmente
fascismo.
Penso que um
grande erro dos chamados setores progressistas foi justamente misturar tudo
isso numa tentativa de sensacionalismo e peleguismo intelectual nos últimos anos.
Isso funcionou bem no tocante à manutenção de uma base eleitoral fiel pela
ideologia ou pelo medo de “algo pior”, mas falhou grotescamente no tocante à
ampliação desse discurso para camadas mais populares de nossa sociedade. Tais
camadas começaram a ver esse discurso como relincho de pessoas que não sabem
perder ou trocar o bastão de mãos e assim cada ataque ao maior símbolo político
do país no tocante a seus posicionamentos soava como um convite ao voto nele.
Faltou-nos
entender a diferença entre conservadorismo e fascismo. Logo após as eleições,
percebi isso claramente quando num dos primeiros exercícios de crítica leitora
me decidi a ver uma entrevista de Luís Felipe Pondé, considerado por muitos a
maior autoridade do pensamento de direita no país. Sigo discordando do modo
como ele trata as diferenças de gênero por um viés essencialista e fico muito
abismado com a sua fixação nos temas da sexualidade. Ainda assim, fiquei
surpreso de ver em dado momento da entrevista ele afirmando que a lógica óbvia
de nossa sociedade é a de que não devemos nos preocupar com quem dorme
se essa pessoa paga seus impostos.
Naquele
momento, deparei-me com uma verdade chocante. Um conservador não
necessariamente mata homossexuais na rua, um conservador não espanca mulheres
ou é um racista. A lógica do conservadorismo é mais cética, mais confiante nos
processos dialéticos da realidade, não se prendendo tanto a propostas de
mudança mais bruscas e abruptas. Para um conservador, não foi o feminismo quem
conseguiu os direitos das mulheres e sim as mudanças de pensamento de uma
sociedade democrática e representativa.
Por mais que
não concorde plenamente com isso, sou obrigado a reconhecer a coerência interna
desse pensamento. Ela se torna ainda mais palpável quando penso em um dos
grandes inspiradores de Pondé, Nelson Rodrigues, que em seu A cabra vadia,
parece desenvolver um novo conceito nas suas confissões: o homem passeata. Este
homem – aqui no sentido de ser humano – é um sujeito afeiçoado demais a
passeatas por temas grandiloquentes e importantes, como a Guerra do Vietnã,
mas não consegue focar em coisas mais locais, como a fome do Nordeste. Nelson
dizia que os temas mais ligados a Marx e Marcuse eram muito queridos por
sujeitos passeata, porém não se via um operário nos salões granfinos e nos atos
políticos fechando ruas.
Lendo isso
hoje, 50 anos depois de maio de 68, é chocante ver como a esquerda não
conseguiu discutir com as camadas mais populares nas eleições de 2018 e o apoio
que encontro nas famílias de alunos da escola pública onde trabalho é imenso.
Há algumas semanas, fui a um ato contra a reforma da previdência e o mesmo se
deu em um horário e dia da semana no qual a maioria das pessoas pobres não
poderiam ir. Acabou tudo numa espécie de reunião de movimentos de esquerda que
provavelmente soou mais como transtorno para o trabalhador do que uma defesa de
seus direitos.
Ler os
autores conservadores me fez pensar em uma certa repulsa que eu tinha por
movimentos estudantis ali pelos idos de 2008. Eu achava curiosa aquela pose em
uníssono de pessoas gritando e cantando as mesmas palavras de ordem e usando as
mesmas frases para defender seus posicionamentos. Ano passado, descobri em um
livro de Gabeira que o nome disso é centralismo democrático, algo muito comum
dentro dos movimentos políticos e mesmo dentro do funcionalismo público, com
uma determinada posição polidamente imposta sendo vista como decisão de um
coletivo. Uma coisa que esses autores conservadores captam bem no comportamento
da esquerda é justamente seu patrulhamento ideológico, sua moral de rebanho.
Obviamente,
existe isso do outro lado, mas não me preocupo com o outro e sim com o meu. Mas
mesmo nos últimos meses, a dicotomia esquerda x direita tem perdido sentido
para mim. Hoje me considero mais marxista do que de esquerda. Para muitos, isso
pode soar um pleonasmo vicioso, mas as coisas são complexas mesmo e espero ser
questionado e chamado ao debate para expor minhas visões. Não confiando em uma
revolução comunista, penso em formas de tornar a sociedade na qual vivemos mais
justa por meio de direitos fundamentais aos trabalhadores e em discursos meus
já misturo temas como consciência de classe e empreendedorismo. Ocorre que
muitos alunos pobres de escolas e universidades empreendem para sobreviver,
para ter um dinheiro para pagar suas contas e enquanto fazem isso podem muito
bem entender as bases da exploração a qual nós sofremos, não crendo que todos
conseguiremos por meio do empreendedorismo vencer a pobreza.
Mas para ter
essa noção, precisei e sigo precisando estudar mais o liberalismo e o
conservadorismo, para poder discutir até onde aquele argumento é verdade.
Porque de certa forma concordo que a sociedade melhora com o passar do tempo em
alguns aspectos – o direito das mulheres à igualdade, por exemplo –, mas por
outro lado penso que isso se dá também pela pressão de dados grupos sociais nas
ruas, parlamentos e espaços acadêmicos. Nesse sentido, o centralismo democrático
de diversos grupos marxistas é tosco e contraprodutivo, pois a pressão por meio
de debates puxados, de textos difundidos, de visões compartilhadas pode e deve
servir para um processo de mudança mais significativo.
Nos últimos
meses também tenho lido a Bíblia, não para criticar a religião cristã e sim o
fundamentalismo, a tentativa de fazer de uma visão religiosa a régua de nossa
realidade. Como agnóstico, vejo meu ateísmo se debruçando sobre si mesmo e
entendendo o texto bíblico dentro de uma lógica de evolucionismo ontológico
muito rica, algo ignorado por mim durante muito tempo e por boa parte dos
cristãos, os quais veem na Bíblia uma grande injunção de um Deus severo. Por
meio dessa leitura, tenho conseguido travar debates com meus alunos mais focado
na tolerância e na diversidade, mostrando as leituras outras feitas da Bíblia e
possibilidades diferentes de tais leituras.
A leitura
daquilo que vai contra o meu pensamento tem me feito expandir os limites de
minha visão, seja no sentido do modo como vejo as ideias minhas, seja no
sentido de entender como e porquê as defendo. Penso como Nelson Rodrigues haver
muita pose de intelectual revolucionário em muitas pessoas de esquerda as quais
parecem fazer da luta política uma espécie de tripé existencial, como ocorre
com Franz em A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera. Nesse sentido,
a crítica social perpassa também por análise dos comportamentos tribais mesmo
dos setores progressistas, cada vez mais presos em jargões descolados mas em
fiscalização de afetos alheios, como o poliamor por exemplo, ou usando apenas
um discurso politicamente correto ao invés de debater a fundo problemáticas de
linguagem e comportamento opressor.
Essa pose
talvez seja a prova absoluta de que comportamentos totalitários não são
causados por esta ou aquela forma de pensar e sim pelo modo como essa forma de
pensar é criada. Por mais bizarro que pareça, é muito comum dentro do campo da
dialética o dogmatismo tomar conta de nós, pois ao invés de lermos e formamos
nossos pensamentos é muito mais fácil nos prendermos ao que é defendido por um
grupo e a partir dessa pose criarmos a dicotomia bem x mal de forma similar ao
exposto por Sartre em seu Saint Genet. Precisamos ter a coragem e a
disposição de lermos sobre o que defendemos e sobre o que combatemos para
entendermos que do outro lado não um demônio agindo e sim um ser humano que
pensa diferente, tão somente isso.
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