Galáxia Juan José Saer
Por Edgardo Dobry
O sutil e
preciso prólogo escrito por Ricardo Piglia para edição conjunta [publicada em
língua espanhola em 2012] de Responso,
La vuelta completa e Cicatrices se intitula “El lugar de Saer”
[O lugar de Saer]; esse mesmo título havia sido usado por Piglia para uma conferência
apresentada em 2006 na Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona; mas, na verdade, “O
lugar de Saer” foi, muito antes, um breve – e essencial – ensaio de María
Teresa Gramuglio que apareceu como prólogo de Juan José Saer por Juan José Saer (Buenos Aires, 1986). A repetição
não é gratuita: uma das operações obrigatórias da crítica frente a Saer (nascido
em Serodino, Argentina, 1937 – morto em Paris, 2005) é, precisamente a
determinação de seu lugar: descentrado como escritor argentino, porque sua
narrativa não tem quase nunca como cenário Buenos Aires, e porque viveu os últimos
trinta e cinco anos de sua vida em Paris.
Mas, embora sua obra incorpore abertamente
a influência do pensamento e do romance franceses da segunda metade do século XX
seria um tanto ridículo considerá-lo um exilado. Não só porque seu orbe
narrativo tem como centro esse lugar, essa região do litoral fluvial argentino
da qual ele provinha mas porque a literatura rio-platense pós-Borges é incompreensível
sem a figura de Juan José Saer, sem colocar no centro essa mesma tentação pela
periferia que Saer cultivou em toda sua obra. Basta olhar os escritores de sua
geração e das seguintes que lhe rederam tributo explícito para compreender a mudança
de rumo que romances como El limonero
real, O enteado ou Glosa ofereceram para a literatura de Rio
da Prata – esse rio sem margens que ele próprio historiou genialmente seguindo
o modelo de Danúbio, de Claudio Magris
e ficcionalizou no que é por acaso seu romance mais famoso, O enteado.
Borges é
referido de alguma maneira porque foi a partir dele que Saer, a partir de uma
profunda admiração, discutiu – diríamos que quase corpo a corpo – o proverbial
desprezo que o autor de Ficções mantinha pelo romance. “Borges como problema”, é o título de um dos magníficos
ensaios que Saer reuniu em La narración-objeto,
texto no qual tenta desdobrar com precisão o autêntico valor da obra borgeana de
seu mito popular e seus alardes conservadores. Mas, já em 1981, havia escrito
um artigo provocador desde o título, “Borges romancista”, no qual se afirmava
que a recusa de Borges por este gênero era menos uma poética que uma
impossibilidade (ou melhor, uma poética da impossibilidade): “Se Borges não escreveu
romances, é porque pensa, e toda sua obra demonstra isso, que a única maneira para
um escritor do século XX ser romancista consiste em não escrever romances”.
Saer concordava que a poesia é o sistema solar de toda literatura que mereça
ser levada em conta como literatura – ele próprio colocou no coração de sua escrita
um único e criativo livro de poemas, paradoxalmente intitulado El arte de narrar –, mas o romance
poderia ser um gênero maior, tão completo e livre de matéria supérflua como o
mais memorável dos poemas modernos.
A primeira posteridade
de Juan José Saer esteve marcada pela intensa discussão, precisamente, em torno
de um romance não acabado – o mais extenso dos seus, sem dúvida – O grande, publicado pouco depois de sua
morte. Era visto pela primeira vez como uma síntese de seu próprio mundo, um fechamento
coerente sobre sua figura múltipla – a “volta completa”, o ciclo, a retomada, a
odisseia, a sinuosa viagem de regresso – representada por Gutiérrez, um homem
que, depois de trinta anos na Europa, decide voltar ao seu lugar de origem, à
região do interior da Argentina, onde a nostalgia lentamente incubada colide com
uma impossível adequação. Por isso, o romance era também o mais estranho ao
sistema Saer; a mais extensa e explícita de suas grandes ficções impunha
a pergunta sobre como teria sido essa obra se o autor tivesse o tempo de
findá-la e revisá-la. A morte, relativamente repentina, havia feito com que uma
obra construída com tão grande apuro ao longo de quarenta anos ficasse
imperfeita por um acidente? Ou era assim mesmo como Saer havia planejado concluí-la?
Muitos se pronunciaram sobre – em Buenos Aires, México, Paris, Barcelona – sem abolir
todavia a inquietante sedução propiciada por O grande.
Por outro
lado, no âmbito da academia se intensificaram as abordagens sobre a obra de
Saer: na Argentina, um jovem professor da Universidade do Litoral, Paulo Ricci,
compilou num curioso livro (de visível espírito borgeano) Zona de prólogos (Buenos Aires, Seix Barral, 2010), em que
diferentes críticos e escritores – incluindo nomes como Beatriz Sarlo, Alan
Pauls, Sergio Chejfec, Juan Carlos Mondragón, Martín Kohan, Nora Catelli, entre
outros – escreviam prólogos para cada um dos livros de Saer, como numa obra completa
esvaziada da obra. Nesse mesmo ano se publicava – coordenada por Julio Premat, catedrático
da Universidade Paris 8 Saint Denis – a edição crítica, a partir da perspectiva genética,
dois romances de Saer, Glosa e O enteado, na prestigiada coleção Archivos;
um volume cujo importante aparato resgatou alguns relevantes trabalhos críticos
que se encontravam dispersos ou quase inéditos. E no início de 2012 apareceram
os anais das jornadas internacionais dedicadas à obra de Saer na Cité Universitaire
de Paris em junho de 2010. Antes, apresentaram-se também seus artigos publicados
na imprensa no volume Trabajos (Buenos
Aires, Seix Barral, 2006), que esboçavam um mapa de seus interesses como
leitor: seu amigo Alain Robbe-Grillet, quem uma vez escreveu sobre Saer: “Se
fosse buscar um paradigma para o nouveau
roman, Cicatrices seria um nouveau roman exemplar”; o grande poeta
Francis Ponge, cujo “partido tomado
pelas coisas” não podia ser indiferente ao olhar saeriano sobre o mundo
material; a alternância e oposição vanguarda / pós-modernismo (na qual tomava
partido publicamente pela primeira); um elogio do tradutor argentino de Ulysses, J. Salas Subirach – e,
obviamente, do próprio James Joyce, entre tantos outros.
A
posteridade tem respeitado em Saer as características que ele próprio imprimiu
em seu labor intelectual e literário: não seria adequado chamá-lo “baixo perfil”,
pois jamais se negou a nenhum desafio nem deixou de estar onde se sentia convocado,
mas sempre com a máxima exigência, o extremo rigor de um trabalho narrativo
desenvolvido com o compromisso formal de um poeta, de alguém consciente que num romance destinado a perdurar não importa apenas a peripécia mas sobretudo
a construção, sua forma. A galáxia narrativa do século XX onde Saer ganhou um
lugar – Faulkner, Onetti, Proust, Pavese, Joyce, Beckett, Guimarães Rosa ou
Saul Bellow – está repleta de contos e romances em que nada existe sem o como.
Era uma decidida
vocação pela entidade artística do trabalho de escritor, mas também uma forma
de resistência à crescente homogeneização dos elementos narrativos que servem a
qualquer material num modelo único: “Não é preciso esquecer que a literatura é,
antes de tudo, uma arte – como dissenuma entrevista de 1986 a Ricardo
Piglia. E que ante à literatura experimentamos emoções estéticas”. Quando na
passagem da morte de Saer, Beatriz Sarlo escreveu um obituário no qual uma das passagens dizia: “As
disputas eram homéricas (...) Nunca conheci ninguém que fosse mais implacável com
o julgamento sobre a má literatura; não havia artifício da crítica nem
estratégias do mercado capazes de movê-lo de suas convicções”. Um de seus
amigos de toda a vida, o poeta Hugo Gola, membro com Saer do grupo que se iniciou
na literatura em torno do grande poeta Juan L. Ortiz, fala sobre “uma ética rigorosa”.
Referindo-se ao seu primeiro livro, os treze contos de En la zona (1960), acrescenta: “Apesar do título, sua literatura
nada tinha a ver com a literatura de costumes da época. Saer definia, desde o
início, uma linguagem, uma entonação, utilizando os registros da oralidade e a
sintaxe da língua falada que serão característicos também de toda sua obra
posterior”.
O já
referido prólogo de Ricardo Piglia parece sublinhar que a deliberada e
permanente mobilidade entre poesia e prosa foi uma forma, muito irônica, encontrada por Saer para manter
a tensão formal em (e entre) os dois gêneros. E aí provavelmente reside o que,
a esta altura, poderia se chamar o legado saeriano: um olhar muito atento sobre
o mundo físico, que advém em ocasiões nessa extraordinária avidez da descrição,
entre o impressionismo e o hiper-realismo, onde uma tormenta na cidade, alguns
peixes recém-pescados do rio e iluminados por uma lamparina, a bola de futebol que
um menino joga, as “Sombras sobre vidrio esmerilado” (título de um de seus contos
mais memoráveis) ou as ondulações da água numa piscina disparam todo um universo
de sensações, emoções, reflexões que, às vezes, ao invés de se juntar de acordo
com uma lógica automática se desagregam até formar esse inesperado amálgama de
abstração e materialidade, de moralidade e textura que é a irrepetível marca pictórica
– ou também, cinematográfica, já que o cinema foi sempre um estímulo e um assunto
crítico – da prosa de Saer. Um virtuosismo que nunca é fim em si mas que está sempre
a serviço de uma unidade superior, essa narração-objeto sobre a qual refletiu com
grande sutileza em seus dois volumes de ensaios.
Por tudo isso,
se tornou quase lugar-comum falar sobre sua relação com o nouveau roman francês que, no momento de sua chegada a Paris, em
1969 – ia como bolsista para alguns meses mas ficaria ali até o fim da vida –, se encontrava em plena eclosão. E por isso mesmo, também, parece tão
interessante voltar a ler agora seus primeiros romances e seus primeiros livros
de contos. Porque embora seja difícil – e desnecessário, também – negar a influência
do romance francês dos anos sessenta sobre determinados procedimentos de obras como
Glosa, Lo imborrable ou A ocasião
é ainda assim evidente que há um temperamento, um olhar e uma prosa própria de
Saer que já está, de forma contundente, nessas primeiras obras.
A trajetória
foi espiralada: de certo modo Saer conseguiu fazer de Paris a periferia e colocar
no centro essa região de Santa Fé onde se passa ou se mostra todas as suas
ficções. Porque para escrever é preciso estar nessa intempérie, nesse fora. Um fora
em que, definitivamente, é o fim de toda obra depois da morte do autor; no caso
de Saer, um lugar todavia indeterminado e cada vez mais firme, cristalizado ao
fim na convicção, na força e na lenta decantação de uma obra já clássica, ao
menos no sentido solene do termo.
* Esta é uma tradução do texto “Galaxia Saer”, publicado aqui, no jornal El País.
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