Entre a cruz e a máscara. “O crime do padre Amaro” de Eça de Queirós
Por Flaviana
Silva
O crime do padre Amaro foi publicado em 1876 e é
situado em um contexto histórico no qual Portugal passa por grandes
transformações; as informações chegam à capital de forma mais rápida
através das relações com Paris e os jovens lusitanos se interessam cada vez mais
pela comunicação, adotando novos pensamentos. Neste cenário, percebe-se que Eça
de Queirós adotou em seu trabalho o objetivo de constituir pela escrita uma
função social. Transmitindo a exposição de um cenário de problemas, seu realismo
vem como uma apresentação do que ainda significava o grande atraso português, sobretudo aqueles lugares que se distanciam do grande centro; é este algum dos motivos que levam a obra a receber várias críticas no seu tempo, o que só mostra o seu valor em uma sociedade que até hoje se
utiliza de múltiplos disfarces para as suas relações.
O espaço é apresentado de forma muito detalhada: o narrador utiliza de descrições para evidenciar onde se constitui as ações que permeiam a história; sua onisciência permite que tenhamos acesso aos personagens de uma forma que exponha suas intenções referente à conduta de cada um deles. A construção dos enlaces secundários permite uma visão esclarecida sobre a vida das pessoas colocadas em foco principal, e através de uma linguagem dotada de ironia que vamos acompanhando uma narrativa rica em críticas. Se fôssemos resumir o conteúdo da obra diríamos que é uma reunião de múltiplas revelações sobre a hipocrisia religiosa e também social.
A riqueza em detalhes serve ainda na apresentação dos conflitos sociais e religiosos da época de forma objetiva. A escolha do espaço onde a narrativa transcorre parece ter sido resultado da vivência do próprio Eça de
Queirós em Leiria já que se mostram evidências disso na narrativa. A história é construída nesse lugar e essa colocação
permite ao leitor uma formação de verossimilhança muito evidente, isto é, a possibilidade de uma visão muito detalhada dos ambientes a partir da leitura é algo
que se apresenta de maneira interessante para o leitor. Observando a construção
da obra a partir de uma visão geral é perceptível a presença significativa de uma carga
cultural do interior português; viajamos para aquela cidade pequena através da leitura e percebemos
os costumes, a religiosidade e a familiaridade com a vida das pessoas de maneira muito irônica. E nada aí é inocente: essas escolhas são realizadas com o propósito de levantar questões polêmicas
sobre a hipocrisia social.
O enredo se
refere a um enlace principal que ocorre entre um padre jovem chamado Amaro,
recém-chegado em Leiria; ele ocupa posição de protagonista e é apresentado com
um pároco que apesar de fazer parte do clero, tem desejos por mulheres desde a
sua infância. Ao entrar na cidade, é levado pelo padre mestre Cônego Dias para
a casa da senhora D. Joaneira, mãe de uma filha, que aos poucos se revela aos olhos do padre, bonita e desejada. Amélia. Essa aproximação de Amaro com a moça, vai de olhares e situações, encontros com a vizinhança nos jantares corriqueiros na
casa e da própria rotina diária. No decorrer
da leitura acompanhamos várias situações que se tornam essenciais para o
desfecho da história de Amaro e Amélia, é através da mudança de ambiente e das
da relação dos diversos personagens na obra que percebemos uma construção bem
definida da trama da narrativa, oferecendo uma leitura envolvente que transmite
ao leitor curiosidades do início ao fim.
A obra é
constituída por várias células narrativas secundárias que formam os enlaces da
história, são personagens que representam tipos essenciais na composição do
enredo; ou seja, a partir da leitura é notável uma religiosidade muito intensa,
o pensamento de que o clero é dono do domínio maior é muito presente, o
narrador destaca de maneira irônica que apesar deles serem participantes de uma
vida aparentemente cristã vivem à margem dos bons valores pregados pela igreja.
Quando analisamos toda a construção
do romance, notamos evidências do realismo em todos os
detalhes. A fala de Eça de Queirós citada no trabalho de Wankler (2005 p. 14) e
também por outras pesquisas, fala sobre a escola literária que se tornou
representante deixando claro sua noção sobre esse aspecto literário. Segundo o
escritor “O Romantismo era a apoteose do sentimento; o Realismo é a anatomia
do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos olhos - para nos
conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenarmos
o que houve de mau na sociedade.”* Com essa citação do próprio autor, podemos
perceber que em sua obra O crime do Padre Amaro isso é muito enunciado, é
através daquele contexto de pessoas moldadas por uma visão em que o clero era o
dono da verdade que a narrativa evidencia essas ações cheias de má fé e
indolências.
Algo que podemos considerar um diferencial na obra, o que ressalta sua riqueza literária, é que todas as questões que são abordadas
através da leitura não são ultrapassadas, mas atuais, apesar da mudança de
contexto, as questões aí suscitadas são válidas para direcionar nosso olhar para as relações
humanas. No decorrer da narrativa percebe-se um lugar muito próprio de cada
personagem, a visão que a maioria possui é dominada pelos padres, o narrador
deixa bem claro que a falta de preservação dos valores religiosos não está
apenas em Amaro mas na grande parte das personagens que são padres na história.
O final da
obra carrega uma mensagem muito forte: evidencia que aquele que tem o poder
também tem liberdade para agir de acordo com suas próprias vontades e sair
impune. É como se Eça de Queirós representasse em sua obra um exemplo que não
pode ser seguido. Entende-se que esse é o papel da literatura, promover uma
mudança, inquietar o indivíduo através de reflexões sobre suas próprias
condutas.
Concluindo a leitura é importante salientar
que essa obra possui um valor significativo para a compreensão sobre as relações sociais em geral, já que
revela várias problemáticas aí presentes. As ações que são
escondidas para a sociedade e que estão presentes no cotidiano das personagens desse
romance é algo próprio do ser humano. A colocação de um padre dominado pelos seus desejos
carnais foi uma estratégia utilizada para revelar as máscaras e a hipocrisia da ordem social; através
de O crime do padre Amaro, Eça nos coloca ante um espelho; revela-nos a imagem perigosa do que somos: seres entre o vivido e a aparência.
* WANKLER,
Cátia Monteiro. “Apoteose do Sentimento versus Anatomia do Caráter, a Crítica
ao Sentimentalismo em: O Crime do Padre Amaro e o Primo Basílio.” In: Textos
e Debates: Revista de Ciências Humanas da Universidade Federal de Roraima
Centro de Ciências Humanas, Boa Vista, v. 2, n. 9, dez. 2005, p.51-64.
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