Amora, Natalia Borges Polesso: mulheres reais, vivendo vidas reais
Por Amanda Lins
Natalia
Borges Polesso é escritora e tradutora, além de doutora em Teoria da Literatura
pela PUC-RS. Recortes para álbum de fotografia sem gente, seu primeiro livro,
venceu o prêmio Açorianos de 2013, na categoria contos. Ainda em 2019, lançará
outro livro, Controle. Em Amora,
livro vencedor do prêmio Jabuti 2016, na categoria contos e crônicas, além do
Jabuti Escolha do Leitor, você se apaixona, tem seu coração
partido, aprende a se reinventar – ou todos esses ao mesmo tempo – junto com as
protagonistas. São contos sobre mulheres que amam mulheres, mas não só. São mulheres
que caem da escada, que plantam abobrinhas, que aprendem quando criança o que é
uma “machorra”, para depois desaprender. Como nós. Mulheres.
A
perspectiva dada aos fatos, mesmo que cotidianos, revela ao leitor – este que,
por muitas vezes, encontra o personagem LGBTQ+ no lugar-comum do sofrimento,
seja amoroso ou em seus outros âmbitos de vivência – que é possível existir
além. Além da dor na qual muitas das histórias que enquadram estes personagens acabam
presas. Além da narrativa de naturalização de preconceito e opressão que,
apesar de vistos e sentidos cotidianamente, precisam ser discutidos, não
naturalizados. Amora é um manifesto pela vida.
Natalia
transcende o dilema do escritor: devo eu criticar a crueldade e violência de um
mundo fragmentado, cumprindo meu papel social enquanto expoente de denúncia da
realidade, ou devo ser uma voz de esperança, nos retirando de papeis marginais
e mostrando que existe um caminho pelo amor?, e transcende-o fazendo os dois.
Desta maneira, o leitor não trilha por uma narrativa utópica, distanciada da
realidade, enquanto também percebe a ruptura, ou seja: a mulher lésbica não
está presa ao papel em que o estigma do preconceito quer colocá-la. A mulher
lésbica – e a mulher bissexual, a mulher trans, o homem trans, (...) – para
além de tudo isso, não está resumida à sua sexualidade. É um ser humano complexo,
tem profissão, ideias, modos de ver o mundo. E tudo isso transparece nos
contos.
A autora, ao
passo em que se recusa a fechar os olhos para uma sociedade repleta de
preconceitos, traçando o pânico de uma jovem que imagina sua sexualidade a ser
exposta em “vó, a senhora é lésbica?”, também tem a sensibilidade de mostrar a
mesma avó tratando sobre o assunto de maneira serena. A pergunta que intitula o
conto é respondida com simplicidade e clareza: “Sim, disse”. E quando Joana
pergunta, por fim, “A tia Carolina vem aqui hoje?” a resposta é “sim, vem hoje,
vem amanhã, vem todos os dias, como você sabe desde pequena”. A resposta é
“sim, Joana, Luana, Marta, Bianca... sim,
você-que-lê-e-se-pergunta-se-é-possível-amar-viver-ser-feliz. Sim, ela vem, ela
existe, sim, existimos”.
A mesma
delicadeza de narrativa desconstrói o estigma da mulher lésbica com
características masculinas em “Flor, flores, ferro retorcido”. No conto, a amplitude dos papeis de gênero
estabelecidos pelo senso comum é questionada através do olhar de uma criança:
“eu ficava tentando entender o que é uma machorra e por que aquilo tinha
ofendido a vizinha e preocupado a minha mãe”, questionamento que atinge o seu
ápice na conversa entre as duas crianças vizinhas: “vamos ver, por exemplo, tu gosta
mais de boneca ou de carrinho? Depende qual boneca e qual carrinho. A Celoí
revirou os olhos daquele jeito. Prefere dançar Xuxa ou brincar de pegar? Eu não
sabia responder, porque tudo dependia e eu não estava entendendo aonde ela
queria chegar. Tá bem, gosta de rosa ou azul? Gosto de verde”. Inocente e
questionador, o olhar infantil ignora os pressupostos e modifica o foco: “Flor,
o nome dela era Flor. (...) e, naquele momento, ela era a flor mais bonita que
eu já tinha visto”.
Natalia é,
tranquilamente, uma das vozes mais importantes de nossa geração, transformando
com maestria fragmentos do cotidiano em narrativa poética, e discutindo em sua
obra, através de textos leves, questões tão relevantes. O livro mostra mulheres
fortes, existindo, assumindo o protagonismo de suas vidas, amando e sofrendo
por amor e se recuperando e vivendo. Além da abertura para discussões
importantíssimas – principalmente para o momento político que estamos
vivenciando -, o livro é sensível e poético, engraçado e reflexivo. Termina com
“pequenas e ácidas”, uma coleção de pequenos textos onde a poesia transborda.
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