Algumas leituras e a violência encoberta
Por Rafael Kafka
Um dos
grandes dilemas encontrados por mim em minha existência cotidiana é a vontade
de ler muitas coisas ao mesmo tempo. Essa vontade me domina desde
antes dela existir, pois ali por 2008-2009 eu já tentava sem muito sucesso
ler pelo menos dois livros por vez. Não conseguia, pois, morando em ambiente
barulhento, eu lia mais em ônibus indo e voltando da faculdade e pouco tempo
sobrava para mais de uma leitura por vez. Morando sozinho há alguns anos, quase
todos eles foram dedicados à leitura conjunta de títulos, mas confesso que hoje
esbarro demais numa falta de disciplina condicionada pelo meu imenso gosto de
conversar.
Por
mensagens, comentários em postagens ou no revezamento de aparelhos na academia
sou um viciado em boa prosa e isso atrapalha demais meus planos de leitura. Mas, mesmo aos trancos e barrancos eles avançam e eu aos pouco vou percebendo o
grande prazer de fazer isso em minha vida: o de captar as conexões entre textos
diferentes em abordagens. Nesse sentido, a leitura de Shalimar, o
equilibrista, de Salman Rushdie, vai ao encontro em muitos planos com a
leitura de outro texto que tenho feito nesse momento: Violência, de Slavoj Žižek. Posso colocar aí outro título o qual li há algumas semanas: O poder
americano e os novos mandarins, de Noam Chomsky.
Todos esses
livros me fazem pensar na violência simbólica e naquela que perdemos de nossas
vistas e de como, muitas vezes, a reação do oprimido é vista não como reação e
sim como violência. Chomsky foca bem nas conferências e ensaios que compõem seu
livro na Guerra do Vietnã e em como intelectuais liberais de então defendiam
com um racionalismo frio a “defesa da liberdade” feita pelos norte-americanos
por meio de uma política externa que desde então parece se repetir em diversos
pontos. Chomsky cita claramente o Iraque e o Afeganistão, mas facilmente
poderia citar também a Venezuela atualmente, cujo regime político problemático
tem se convertido em mais uma desculpa para os States defenderem a democracia,
do seu jeito, não conseguindo ir tão a fundo nesse propósito devido a outros
gigantes como a China e a Rússia.
Em um nível
macro, vemos atos de terrorismo de Estado e no nível micro também. Se países
como os Estados Unidos bombardeiam outros para a defesa dos ideais liberais e
dos negócios desses ideais, países como o Brasil subjugam seus pobres às mais
degradantes condições possíveis. A reação desses pobres por meio do tráfico de
drogas, de assaltos ou mesmo de rebeliões em busca de direitos básicos são
vistos como violência, como vandalismo. Quando alguma compensação é dada
àqueles que decidem enfrentar o Estado, ela é dada de forma muito bizarra e
tosca, como a Lei de Anistia brasileira, a qual colocou no mesmo balaio de gato
quem derrubou um presidente eleito e os que usaram estratégias como a luta
armada para a derrubada desse regime.
Žižek em
suas reflexões marginais foca bem nesse fato. Nós tendemos a ver na reação
agressiva das pessoas o único gesto de violência, mas a violência geradora de
tudo aquilo é a anomia causada muitas vezes pela vontade deliberada do Estado.
Esse mesmo Estado com seus aparatos de comunicação coloca-nos diante de imagens
que nos fazem crer que os vândalos devem ser parados e que a civilização segue
em passos firmes rumo ao progresso. Ideais revolucionários, aqui uma metonímia
para qualquer crítica social mais aprofundada, são vistos como tolos e a ordem
social das coisas é tida como ordem natural dos fatos. Não há nada a ser mudado
e a violência estatal é vista como a condição humana em si.
Não à toa,
geralmente quem se coloca no espectro mais senso comum de uma visão social diz
que a defesa de uma visão mais crítica não é docência, não é imprensa, não é
jornalismo e sim militância. Militar aqui significa, mesmo que de forma não
tética em seu juízo, colocar a realidade em parênteses, questionar a origem e
dinâmica dos fatos. Militar é simplesmente perguntar por que as coisas são
desse jeito e não de outro. O sujeito sem partido, o sujeito sem ideologia, o
que se percebe assim, não pergunta nada porque para ele as coisas simplesmente
são do jeito que deveriam ser.
Nesse
sentido, é interessante a forma magistral como o enredo de Shalimar, o
equilibrista se desenvolve. Logo de cara, no melhor estilo de O amor nos tempos do cólera, vemos uma das personagens centrais do romance, Max Ophurs,
ser assassinada a sangue frio. O resto do enredo foca em diversos outros
personagens em quatro núcleos narrativos e o tempo é desconstruído de modo a
entendermos as motivações de cada ser nesse imenso texto entrecruzado e como
cada um deles irá cruzar com o outro em dado momento. Ao mesmo tempo, os dramas
pessoais de cada personagem são emaranhados a um imenso complexo de problemas
sociais que se liga aos conflitos entre Paquistão e Índia pela região da
Caxemira e aos conflitos étnicos entre hindus e muçulmanos.
Assim como
Gabriel García Márquez, outro elemento bastante comum no texto de Rushdie é a
relação profunda entre o mundo físico e o mundo sobrenatural. O autor faz esse
outro entrecruzamento por meio de lendas e mitos das regiões nas quais se
passam os conflitos ao mesmo tempo em que fenômenos bizarros são citados com
uma naturalidade impassível. O romance de Rushdie assume um ar ao mesmo tempo
brutal e suave, com um ritmo de leitura bastante agradável.
Em Shalimar, o equilibrista, o próprio mundo líquido com suas fronteiras
movediças é o protagonista. Vemos isso claramente em diversos temas como o do
homem que outrora lutou na Resistência francesa e agora é parte de uma política
externa em defesa da liberdade a qual oprime povos pobres com bombardeios
constantes. Também percebemos isso na moça que decide abrir mão das tradições
de sua aldeia para viver a liberdade no mundo liberal, mas cansada de ser uma
concubina volta para sua aldeia e se desespera ao não encontrar mais as coisas
como eram outrora, antes de ela decidir rompê-las. Mesmo o assassino do
embaixador no começo da história aos poucos se revela em toda sua humanidade e
percebemos que ninguém nesse romance pode e deve ser entendido na lógica
dicotômica do maniqueísmo.
Quando a
filha do embaixador descobre que há uma relação afetiva no passado de seu pai a
qual se liga à política externa de extermínio encabeçada por ele, ela se
encontra no meio do absurdo líquido mais profundo. A sua raiva do assassino
então se sente voltando para o próprio pai, figura que construiu todos os
motivos necessários para a sua morte. Até então, ela via apenas em Max uma
vítima da violência, mas agora precisa aceitar a dura realidade de que seu pai
é na verdade o grande violador, o responsável por milhares de mortes e a sua
traz apenas um pouco de justiça a esse mundo cruel.
Shalimar, o
equilibrista é um romance ousado, pois consegue captar bem o ciclo de
violência exposto por Chomsky e Žižek em seus ensaios e o modo como os
dominadores usam motivos nobres para fazerem sua violência não ser enxergada
como violência, algo que aparentemente tem funcionado bem demais no mundo
ocidental de tantas desigualdades, mas cuja maior preocupação de boa parte das
pessoas é o discurso “revolucionário” ou “militante”, que nada tem a ver com as
causas da desigualdade social e as suas cada vez mais gritantes consequências.
Além disso, o modo como somos obrigados a encarar as personagens, com seus
rompantes de nobreza e podridão, leva-nos a abrir mão das velhas formas de
rotular o outro as quais utilizamos para nos sentirmos em casa nesse mundo.
Essas três
leituras mostram a violência como elemento fundamental de nosso mundo, mas um
elemento mal localizado, mal enxergado. Vemos a violência em paralaxe, julgamos
que ela está aqui quando na verdade ela está em todo canto e sua força motriz,
seu causador, está bem ali. Enxergamos as torres gêmeas sendo derrubadas, porém
não vemos como Osama Bin Laden ganhou poder. Enxergamos os crimes ocorrendo,
mas não vemos a lógica que escraviza mais e mais pessoas ao narcotráfico e como
combater essa lógica, como mudá-la.
Mesmo
morando em uma realidade líquida, ainda queremos uma existência estável e nos
fechamos em dicotomias e fórmulas velhas as quais não dão conta de analisar
nossa realidade. Muitos de nós sofrem ainda com uma modernidade em forma de
luto, não aceitamos a queda de uma velha ordem do real e por conta disso não
damos conta de entender as bases sociais da violência em todas as suas formas.
Pior: passamos a ver esta violência como defesa da liberdade e da cidadania e
aquela como covardia e algo nojento, quando muitas vezes estamos invertendo a
ordem das coisas e considerando o terrorismo de Estado algo nobre.
Salman
Rushdie mostra em seu romance, de forma concreta, o que os dois ensaístas aqui
mencionados discutiram em seus textos. As cenas em que o general Kashiwaha
pensa em como os militantes, aqui na acepção de qualquer defensor da autonomia
da Caxemira, devem ser levados a confessar seus crimes mesmo que a priori digam
que não haja crime algum. A frieza transmitida por meio do discurso indireto
livre nos ajuda a entender um pouco a mente sombria de quem exalta torturador
em um mundo democrático, pois para essas pessoas tudo é válido no sentido de
eliminar visões opostas que firam a ilusão de modernidade, a ilusão de um mundo
estável.
Se eu
pudesse citar mais um autor nesse texto, citaria Bauman que em Modernidade e ambivalência mostra como a racionalidade por trás de projetos como o de
assimilação e extermínio é oriunda de pensamentos modernizantes, de desejo pela
ordem, pela sincronia social perfeita. Cada vez mais eu percebo na violência,
seja a de esquerda ou de direita, o desejo de tornar o mundo uno, o mundo sem
diferença, o mundo ideal para uma determinada categoria social.
Assim, não
devemos mesmo confundir a reação do oprimido com a violência do opressor. Mais do que isso: devemos cada vez mais tornar essa violência visível para se criar
formas de combate a ela, principalmente por meio de uma educação e de um ato
leitor e mediador de leitura que garanta a construção de uma sociedade o mais
próximo possível do modelo democrático que almejamos. Enquanto virmos apenas as
vidraças quebradas ou as ruas fechadas por cidadãos revoltados como violência,
infelizmente estaremos longe de mudar esse cenário.
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