A sátira como recurso da verdade: uma resenha de Bobók
Por Joaquim Serra
A
profundidade de Dostoiévski (1821-1881) é reconhecida nos grandes romances,
principalmente em Crime e castigo (1866), Os demônios, O idiota (1869), O adolescente (1875) e Os irmãos Karamázov (1881). Não só densos quanto ao tema e
a multiplicidade de pontos de vista conflituosos que seus personagens carregam,
mas também são romances de fôlego em que há pouca ação de fato. O próprio autor
dizia que “o novelista, o poeta, tem outras tarefas do que a descrição da
realidade cotidiana: há o universal, o eterno e – parece – as profundezas
sempre inexploráveis do caráter e do espírito humano”, conforme cita René Wellek
no seu História da crítica moderna. O final do século XIX (Editora Herder,
1972).
Já no conto
“Bobók”, é possível ver o traço satírico do escritor. Com um texto que muitas
vezes soa como uma resposta à recepção de Os Demônios. O conto traz como
protagonista um escritor que quando sai à noite para se divertir, acaba ouvindo
a conversa de mortos.
O enigma de
Bobók começa pelo título. Paulo Bezerra escreve em sua tradução crítica
que na edição russa do conto há uma nota dizendo que Bobók refere-se a uma
paródia do nome do escritor russo Boboríkin – que tem seu romance Sacrifício noturno parodiado com Bobók. Paulo Bezerra conclui que esta é uma hipótese
muito justificável pela tendência dostoievskiana para a paródia.
O romance Os demônios foi terminado em dezembro de 1872, o que se deu próximo à entrada de
Dostoiévski no cargo de redator-chefe em um periódico assumidamente de direita.
Bobók é escrito nessas condições e abriga no âmago de sua carnavalização a
projeção desse estado de espírito de Dostoiévski. Logo na abertura do conto, o
escritor desassocia o narrador de si mesmo ao dizer que “desta vez eu publico
as “Notas de uma pessoa”. Essa pessoa não sou eu; é outra bem diferente”¹.
Para essa
penetração do real – ou seja, do momento histórico – que há em “Bobók” e que está
diluído na narrativa, Bakhtin deu o nome de “cultura de fronteiras”, que diz
respeito ao ato de criação do autor que está sempre na fronteira “do mundo
estético, da realidade do que é dado”.
Não por
acaso, o gênero satírico que Dostoiévski buscou para o universo de Bobók,
trata-se de uma mistura em sua natureza: a sátira menipéia. Os diálogos dos
mortos que Ivan escuta remetem, não por acaso, a'O diálogo dos mortos de Luciano
de Samósata. Em “Bobók”, Dostoiévski simula também a forma do Diálogo de
Luciano, mas no conto russo ainda há uma mistura a mais de gênero, já que há o
narrador Ivan Ivánitch que ouve a conversa dos mortos. Os paralelismos são
muitos: o satírico, ao zombar um do outro; o desrespeito à hierarquia; a forma
do diálogo.
Quanto à
hierarquia que é solapada, o mesmo se dá, por exemplo, quando Diógenes
encontra-se com Héracles já morto em O diálogo dos mortos, zomba deste num jogo
lógico sobre não terem morrido por terem deixado suas sombras ainda vivas, o
que igualaria em astúcia e poder Diógenes de Sinope a um semideus.
Porém, o fantástico
do conto de Dostoiévski não deve ser lido somente como tal. Para Dostoiévski o
realismo não era uma escola – como previa a cartilha estética de seu fundador
Belienski –, mas um método de representação. Logo que terminou O idiota (1869),
ele escreveu: “Tenho uma concepção muito diferente de realidade e realismo,
muito diferente daquela de nossos realistas e críticos”, e continua, “meu
idealismo é mais real que o realismo deles”. Segundo o escritor de “Bobók”, os
críticos não hesitariam ao dizer que há fantasia no passado recente russo –
pelas ondas revolucionárias; o adentramento disfarçado do capitalismo –, mas “é
puro, autêntico realismo”, e aprofundado, enquanto o que os críticos veem está
apenas na superfície.
Em “Bobók”,
como é comum na narrativa dostoievskiana, há “uma multiplicidade de vozes na
qual se cruzam ora as vozes das personagens entre si, ora as vozes das
personagens com as do narrador e do próprio autor”. O que também rapidamente salta
aos olhos em “Bobók” é que o registro do personagem principal é truncado, o que
o tradutor Paulo Bezerra atribui ao comportamento tímido que o narrador relega
para si. Com isso o narrador configura na forma aquilo que aparece na abertura
do conto com relação à sua sobriedade – e depois até à sanidade – que é posta à
prova. Assim, o narrador se mostra não só não confiável aos olhos do leitor, como
também é testemunha de algo sobrenatural. A narrativa truncada resgata também
os personagens gogolianos pela situação de inaptidão para o social que os personagens
sugerem com seus diálogos desencontrados e as ofensas mútuas.
Essa
“articulação sinuosa” da linguagem do narrador, como aponta Paulo Bezerra, está
em “homologia com o modo sinuoso como ele resiste à palavra do outro”. O
tradutor aponta como exemplo quando o protagonista Ivan Ivánitch reproduz a
palavra de outro, do crítico Paniútin, que compara Dostoiévski a um louco. Diz
o narrador no conto: “Vá lá, mas, não obstante, logo assim, tão direto na
imprensa?”. O uso da dupla adversativa “mas” e “não obstante”, para o tradutor,
é o movimento de resistência e aceitação da palavra do outro no próprio texto
dostoievskiano.
Isso se dá
pelas árduas críticas, como já dito, ao romance Os demônios. No romance,
Dostoiévski foi acusado de criar personagens “manequins” que não se distinguem
entre si e que são frutos de um delírio unicamente seu, além de receber outras
críticas implacáveis dos críticos mais conhecidos de sua época. Não obstante, é
comparada ao louco de “Diário de um louco” de Gógol, e associado à ala
reacionária, o que o forçaria a negar todo seu passado como simpatizante do
socialismo.
Outro
exemplo de resposta no conto é que o protagonista ainda introduz ao seu fluxo
de pensamento a notícia de que um pintor havia lhe retratado não por causa da
literatura, “mas de duas verrugas simétricas que tenho na testa”, com isso,
fazendo uso daquilo que Bakhtin caracterizou como polifonia – a resposta dentro
do texto –, conclui o narrador: “E como as minhas verrugas saíram no retrato
que ele fez de mim: vivinhas! É isso que eles chamam de realismo”. A crítica de
Dostoiévski ao realismo é evidente. Pelos motivos ditos acima, o autor não
considerava apenas as “verrugas vivinhas” realistas, mas para ele era bem mais
amplo esse conceito.
Essa ideia
de dar veracidade à narrativa, no final do conto, ao voltar-se a si, Ivan
Ivánitch retoma essa questão ao ironizar um semanário no qual haviam publicado
o retrato de um redator-chefe. O que de certo modo refere-se ao começo do
conto, quando o pequeno parágrafo do editor diz aquele texto se tratar das
“notas de uma pessoa”. Dessa forma o escritor dissocia de si aquelas notas, e
também dá veracidade à história.
Ivan
Ivánitch é um escritor que agora está limitado a escrever para anúncios de comerciantes
– um indício da penetração do capitalismo na Rússia –, ou fazer traduções do
francês. E ainda revela que, para os leitores daquela época, não era tempo de
reunir aforismos de Voltaire, pois “é tempo de palerma, não de Voltaire!”.
Assim como
Dostoiévski, Ivan Ivánitch também foi chamado de louco e é através de Ivan que
Dostoiévski exibe o paradoxo da sanidade. Diz ele que “ao trancar o outro numa
casa de loucos você ainda não está provando sua própria inteligência”. Não é
difícil associarmos esse comportamento à dúvida final que acomete o Dr. Simão
Bacamarte em “O Alienista”, de Machado de Assis. A crítica machadiana está no
cientificismo que transforma a mente e o comportamento em, grosso modo, um
código binário, em que não há espaço para o que foge aos manuais.
O próprio
estilo de Dostoiévski é citado na obra. Segundo o narrador, “ontem me apareceu
um amigo: “Teu estilo, diz ele, está mudando, está trucado [...]””,o que pode
dizer respeito à própria narrativa dostoievskiana, que condiz com os temas do
autor, mas levou a crítica da época – até, mais tarde, ao crítico e escritor
Vladimir Nabokov –, a dizer que Dostoiévski escrevia mal.
Já o diálogo
entre os mortos é satírico não só pela natureza a que remetem, como já
dissemos, como é também uma crítica, por meio do riso, aos costumes. Os
aristocratas que só querem aparecer, os comerciantes que cobram dívidas mesmo
depois de mortos, e a máscara social a que todos eles estão submetidos.
Porém não
deixa de haver espaço para o hilário, como quando um jovem chega ao cemitério,
recém-morto, e perguntam-lhe de quê morreu. O recém-morto sequer percebe que
está morto, o que causa riso nos interlocutores, e aceita os conselhos do
general e do funcionário que lhe recomendam um médico de São Petersburgo ao invés
do médico Schultz – nas mãos de quem morreu –, sendo que o jovem conclui que
irá procurá-lo. Esse médico cobra os olhos da cara, diz o general, mas o jovem
entende a frase literalmente e retruca que aquilo não é verdade por se tratar,
assim como ouviu, de um médico muito atencioso.
As próprias
conversas não seguem o agon do diálogo dramático tradicional, ou seja, aquela
relação dialética de pergunta e resposta que é posta em xeque no século XX pelo
teatro do absurdo. Os temas também não seguem uma relação dialética, mas são
sugeridos nas conversas entre os mortos e podem desaparecer no diálogo
seguinte. Como quando um dos mortos entra na conversa e diz que ainda “gostaria
de viver”, e, repentinamente, os interlocutores mudam de assunto e decidem “mexer
com Avdótia Ignátievna”, uma das interlocutoras da alta sociedade que também
está entre eles.
Como aponta
Paulo Bezerra, “é com a inserção das falas dos mortos que o conto retoma
efetivamente o fio da tradição do ciclo dos diálogos no reino dos mortos”. Como
já dito, Dostoiévski foi inspirado principalmente por O diálogo dos mortos, de
Luciano de Samósata. A sátira menipeia, incorporada principalmente por Luciano,
é não só a mistura de gêneros como também um nivelamento do alto e do baixo. Os
personagens, portanto, são colocados no mesmo plano, não há uma hierarquia fixa
– o que permite a sátira entre eles –, mas há uma redução deles à sua função.
Por exemplo,
em “Bobók”, o comerciante cobra a as dívidas de uma dama da alta sociedade que
ainda mantém a pompa mesmo quando morta. É como se na menipeia dostoievskiana
os defuntos não desencarnassem para descanso após morte, mas continuassem suas
vidas, com suas funções, mesmo debaixo da terra.
Na
narrativa, “cheia de paródias e de travestizações, dotada de numerosos
estilos”, (os termos são de Bakhtin em Questões de literatura e estética: a
teoria do romance) não é de se assustar, portanto, a suspensão do narrador Ivan
Ivánitch para dar lugar a uma forma essencialmente teatral, com raras
descrições de um narrador, mas composta de diálogos – muito convenientes, como
já dito –, à sátira menipeia luciânica.
Um dos
personagens, Piotr Pietróvitch, como já morto, não tem papas na língua ao dizer
que quando vivo mentia ao dizer que era conde, e que não passa de “um pulha da
“pseudo-alta sociedade””, e se considera um “amável polisson” [do francês:
vadio]. Conta inclusive um caso de falsificação de dinheiro com a naturalidade
que apenas a falta de julgamento advinda da morte – assim como defunto Brás
Cubas de Machado de Assis também o faz –, poderia lhe dar.
Há o tempo
todo também um ruído do grotesco que se materializa em um cheiro ruim que sai
de um dos mortos, e que ninguém sabe de quem. Piotr Pietróvitch, o fidalgo
mentiroso, não hesita em dizer que é de si mesmo que sai o cheiro, alegando: “é
que me enterraram em um caixão pregado”. Mas, o motivo é respondido apenas pelo
filósofo dos mortos, Platon Nikoláievitch ao revelar que aquilo é “um fedor,
por assim dizer, moral”, que Piotr Pietróvitch já deu ao leitor todos os
motivos de cheirar como cheira.
Já o velho
Tarassiêvitch é pintado como um corrupto que rouba dinheiro público e amansa
com dinheiro à fiscalização. Mas, mesmo com um passado desses, agora morto
percebe cinicamente que “na vida há tanto sofrimento, tanto martírio e tão
pouco castigo”, mas que até agora depois de morto quer desfrutar de tudo.
Os mortos,
portanto, retomam assuntos do mundo dos vivos para gerar a comicidade e a
crítica que o conto sugere. O vendedor não para de cobrar a dívida mesmo depois
de morto, o funcionário bajulador também continua a bajular, e há inclusive,
uma “teoria da morte” – assim como fazem os vivos com a vida –, para explicar o
motivo daquela existência. Essa teoria é explicada pelo filósofo Platon
Nikoláievitch ao dizer que aquele tempo de “consciência” que restava a eles era
a “vida que continua como que por inércia”. Explica também que aquele estado
poderia durar de alguns meses até meio ano, e que a vontade de fazer tudo sem a
vergonha dos vivos – daí advém as confissões desses mortos –, deveria imperar.
Essa análise
de Dostoiévski faz sentido quando Bakhtin diz ser a sátira menipeia uma
contraposição do status quo. Isso se reflete não só na confissão direta de
Piotr Pietróvitch como também na própria forma do romance e do conto
dostoievskiano. Ou seja, assim como a sátira menipeia foi um contraponto ao
mundo fechado e distanciado da épica, a narrativa de Dostoiévski é também um
contraponto ao romance tradicional esperado não só pelo realismo da crítica
radical – de quem recebeu muitos elogios no seu primeiro romance –, como também
para a forma de romance tradicional do século XIX. Em suma, somente com uma
nova forma dialógica, como disse Bakhtin, é que se poderia captar a narrativa
russa, que é satirizada como resposta na forma e no conteúdo em “Bobók”.
No já citado
Questões de literatura e estética, Bakhtin diz que nesse tipo de gênero
sério-cômico está na forma e no conteúdo associado a “uma problemática aguda e
um fantástico utópico”, em que já não há nada “da longínqua representação épica
do passado absoluto”, mas “uma liberdade fantástica e excepcional” do
além-túmulo. Com isso põe à prova e desmascara “ideias e ideólogos” de modo
familiar, e até mesmo com situações propensas à briga.
O diálogo
dos mortos termina com um espirro de Ivan Ivánitch que o tira do transe
profundo que o fez ter acesso àquela conversa. O fantástico não é explicado
sequer pelo hábito de beber do narrador, mas há a aceitação de Ivan com o fato
ocorrido como se a linha entre a verdade e a mentira na narrativa tivesse
desaparecido.
Afinal,
Kliniêvitch, um dos mortos, já revelou o tom geral no conto dostoievskiano. Diz
ele que “vida e mentira são sinônimos”, e que “na terra é impossível viver e
não mentir”. Com isso, o morto propõe uma síntese daquilo que o leitor percebe
desde quando os mortos entram em cena e propõem que “vivamos esses dois meses
na mais desavergonhada verdade”. Verdade despudorada
que agora no além-túmulo esses vários tipos sociais revelam – através da
narrativa publicada pelo editor de Ivan –, para que qualquer um possa ler.
Notas:
¹ Todas as citações
referem-se a edição de Bobók, pela Editora 34 (2013). Ver referências.
Bibliografia:
DOSTOIÉVSKI,
F. Bobók. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2013.
BAKHTIN, M. Questões
de literatura e estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. 4 ed. São Paulo: Houcitec, 1998.
WELLEK, R. História
da crítica moderna. O final do século XIX. São Paulo: Editora Herder, 1972
Comentários