O pecado de Borges
Por José Antonio Montano
Numa obra
tão poderosa como a de Jorge Luis Borges, chama a atenção “O remorso”, um
soneto enfático, patético, autocompassivo (qualidades que o escritor argentino
detestava) e decididamente confessional:
Cometi o
pior dos pecados
Que um homem pode cometer. Não fui
Feliz. Que os glaciares do esquecimento
Me arrastem e me percam, desapiedados.
Meus pais me engendraram para o jogo
Arriscado e formoso da vida,
Para a terra, a água, o ar, o fogo.
Defraudei-os. Não fui feliz. Cumprida
Não foi sua jovem vontade. Minha mente
Se aplicou às simétricas porfias
Da arte, que entretece naderias.
Legaram-me coragem. Não fui valente.
Não me abandona. Sempre está a meu lado
A sombra de ter sido um desgraçado.
O poema pertence
ao livro La moneda de hierro, de
1976. Foi publicado pela primeira vez no jornal La Nación, de Buenos Aires, no dia 21 de setembro de 1975. Segundo disse
o próprio poeta a Joaquín Soler Serrano numa entrevista de A fondo, de 1980, o soneto
foi escrito quatro dias depois da morte de sua mãe. Ela foi, sem dúvida, a
pessoa mais importante na vida de Borges. Não é de se estranhar que à sombra de
sua morte Borges escrevesse, então, seu texto mais triste. A obra do argentino
tende a ser feliz. Que o leitor chegue a esse soneto e se entristeça, ou
presencie um Borges triste, é uma preciosa homenagem dele à sua mãe. Deixou essa
página marcada.
Sua transcendência
vem ressaltada pela terminologia religiosa: as palavras “remorso” e “pecado”, e
essa outra, latente, “confissão”. O soneto constitui uma confissão. Mas utilizei
transcendência em sua acepção mais importante, não a de para além. Aqui a terminologia religiosa está aplicada à vida e só
à vida; só ao mundo: ao sentido da terra. A ética tácita do soneto é que somos
engendrados (mediante o ato físico do sexo) e isso nos traz à existência, cujos
eixos são os elementos materiais (“a terra, a água, o ar, o fogo”) e o imperativo
de gozá-los (“o jogo / Arriscado e formoso da vida”; que na primeira versão era
“o jogo / humano das noites e os dias”) O sujeito não que fazer contas ante
nenhum deus e sim ante seus pais: ante os que o ataram ao fio carnal. Tudo fica
nesse mundo.
É a morte a
mãe (a do pai ocorreu em 1938) que o faz recapitular e o entrega ao remorso. O
pacto que se deduzia do seu nascimento, de acordo com a lógica vitalista, não se
cumpriu. Ao invés de ser feliz, se dedicou “às simétricas porfias / Da arte,
que entretece naderias”. Mas, os que são além de leitores de Borges são
leitores de Nietzsche, recordam-se neste ponto uma das proclamações de seu
Zaratustra: “Há muito tempo que não aspiro já felicidade; aspiro à minha obra”.
Um fragmento póstumo do filósofo alemão diz também: “Compensação do poeta: seus
sofrimentos e o prazer de
expressá-los”. A justificativa de uma vida pode estar na criação: engendrar
obras é outro modo de integrar-se na corrente vital.
O próprio
Borges, na realidade, se mostra várias vezes com essa ideia. “O remorso”,
insistimos, é uma exceção em sua obra. Nesta abundam os prazeres. Não,
certamente, os prazeres intensos do sexo e das paixões; mas sim o do intelecto
e os da sensibilidade. Borges logra uma combinação sábia, como alcançou Montaigne,
do ceticismo, estoicismo e epicurismo. E lhe dá uma sorte de corpo à sua sabedoria:
o que outorga a literatura. Cabe imaginá-lo feliz em suas elaborações, como é
feliz o leitor. Borges se qualificava a si mesmo de “leitor hedonista”. E o hedonismo
do leitor é o estado habitual dos borgianos. O desapego imediato deste soneto é
a confissão de infelicidade por parte de quem tanta felicidade lhe propiciou.
Custa aceitar
a divisão entre literatura e vida em Borges. Ele a menciona em ocasiões, como
na oposição que estabelece neste poema entre “o jogo / Arriscado e famoso da
vida” e “arte, que entretece naderias”. Ou em versos de O ouro dos tigres: “Não ter caído / Como outros do meu sangue / Nessas
batalhas. / Ser na noite mais vã / Aquele que conta as sílabas”. Mas sua
nostalgia da épica não impede que a literatura mesma constitua uma vivência
para ele. No final de O fazedor
escreve: “poucas coisas me aconteceram mais dignas de memória que o
pensamento de Schopenhauer ou a música verbal da Inglaterra”. Na
citada entrevista de 1980 afirma também: “A biblioteca de meu pai foi o
acontecimento principal de minha vida”. Nesta consideração da leitura como algo
que lhe aconteceu talvez se encontre a chave do grande paradoxo, do mistério de
Borges: que praticamente fale só de livros e resulte, por sua vez, um
autor em nada livresco. Pela leitura como experiência e pela vibração sutil de
sua escrita. Como diz Savater: “não há escritor que tenha menos linhas inertes”.
Por outro
lado, esse certo tremendismo com que aborda o pecado em “O remorso” destoa da
serenidade comum em Borges. Pede, como purgação, “os glaciares do esquecimento
/ Me arrastem e me percam, desapiedados”. Mas o esquecimento não é para ele
apenas uma condenação, mas uma absolvição. Em “Fragmentos de um evangelho
apócrifo”, de Elogio da sombra, diz,
por exemplo: “Não falo de vinganças nem de perdões; o esquecimento é a única
vingança e o único perdão”. Este texto termina com um pedido que alguns
consideram irônico, mas que é transparente: “Feliz os felizes”. Trata-se de uma
celebração dos que alcançaram a felicidade. Borges mesmo a alcançou inúmeras vezes.
“Outro poema dos dons”, de O outro, o
mesmo, poderia se considerar como um catálogo feliz. No prólogo de seu
último livro, Os conjurados, fala
sobre “a felicidade de escrever”, e diz: “No correr dos anos observei que a
beleza, como a felicidade, é frequente. Não passa um dia em que não estejamos,
por um instante, no paraíso”.
Deste último
livro é o poema “Cristo na cruz”, em que o crucificado “sabe que não é um deus
e que é um homem / que morre com o dia”. A concepção de Borges é ordenadamente
agnóstica: a dor de Cristo o comove, mas não é mais que dor. Um dor inútil: que
não salva ninguém. “Que pode me servir que aquele homem / tenha sofrido, se eu
sofro agora?” Não há chantagem religiosa em Borges. Tudo, felicidade e
sofrimento, estão na vida. Até que a morte, como escreve noutro poema de Os conjurados, “nos desate do triste
costume de ser alguém e do peso do universo”.
Ligações a esta post:
>>> Borges e sua mãe
* Este texto
é uma tradução de “El pecado de Borges”, publicado inicialmente em Jot Down.
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