O mítico filme de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares
Jorge Luis Borges e Hugo Santiago, o diretor de Invasión |
Para a criação do enredo de Invasión (Invasão, tradução livre), Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Hugo Santiago criaram Aquilea, uma cidade imaginária que está prestes a ser invadida por homens de gabardina que introduzem um maquinário para a invasão em massa. O grupo da cidade é o comandado por um ancião e logo se entende que a resistência está pelo fim e é impossível proteger a cidade. O filme remete a uma batalha entre gangues, no ano de 1957, em meio de uma Aquilea urbana que não tenta dissimular nunca que se trata de Buenos Aires. Logo, não é necessário dizer que foi na capital argentina que os três criadores se inspiraram para a composição deste mítico cenário.
Descrito pelo teórico do cinema Ángel Faretta como a obra mais importante do cinema argentino Cult de vanguarda, Invasión foi construído da interface entre o cinema clássico e a nouvelle vague, de estilo francês. “A cena da milonga de Invasión é um momento único na história do cinema porque para mim este filme é a Pátria. Quando chega uma das personagens e diz que ‘a amizade é uma paixão tanto mais lúcida que o amor’, e quando salta a pergunta ‘Por que morrer por gente que não quer se defender?’, se responde: ‘A cidade é mais que a gente’. Esse é um momento de esplendor”, diz com emoção Mariano Llinás, de sua cadeira fincada justamente de frente para o mapa que parece um grande tabuleiro de xadrez tridimensional, um de seus maiores tesouros assinado por Hugo Santiago e dedicado “aos pampeiros e pampeiras”. Llinás é diretor, dentre outros, de Balnearios (2002), Historias extraordinarias (2008) e La flor (2018)
A primeira
vez o filme estreou comercialmente na Argentina, foi no dia 16 de outubro de 1969. Muitos dos que pagaram uma entrada no cinema Hindú,
da rua Lavalle, pagaram para ver “o filme de Borges e Bioy Casares”, que havia sido divulgado como
“um filme grandioso, uma verdade proibida para menores de 18 anos” nas páginas
do jornal La Nación. Mas, estreou mundialmente bem antes como
abertura da primeira edição da Quinzena dos Diretores do Festival de Cannes; quando chegou
às salas portenhas já havias sido premiado nos festivais de Locarno, Mannheim e
Barcelona.
Na sinopse,
escrita pelo próprio Borges, “Invasión
é a lenda de uma cidade, imaginária e real, sitiada por fortes inimigos e
defendida por alguns poucos homens, que não são heróis. Lutaram até o fim, sem
suspeitar que sua batalha é infinita”. Protagonizada por Lautaro Murúa, Olga
Zubarry, Juan Carlos Paz, Roberto Villanueva, Martín Adjemian e Oscar Cruz,
este filme vanguardista para a época conseguiu competir com filmes de sucesso como
A primeira noite de um homem, com Dustin Hoffman (vencedor de um Oscar)
e Viva a vida! Com Palito Ortega,
Violeta Rivas, Tita Merello, Hugo del Carril e outras figuras da época que só
de figurar seus nomes nas marquises, as salas de cinema se enchiam.
Nesses anos
da ditadura de Onganía, no alvorecer do rock na Argentina com bandas como Almendra,
Manal, Vox Dei e outras que causavam furor na juventude, Invasión recebeu trilha sonora pelo maior nome do tango: Aníbal
Troilo. Pichuco – que havia conseguido
certo grau de confiança com Hugo Santiago porque o diretor queria que “el
Gordo” atuasse num filme sobre um acordeonista – compôs a música da Milonga de Manuel Flores escrita por
Borges, recitada por Roberto Villanueva e transposta para o violão por Roberto
Grela e Ubaldo De Lío.
A seleção cultural
argentina que Hugo Santiago formou para sua obra-prima não impediu que Invasión fosse um fracasso comercial cujo roteiro de Borges e Bioy sequer foi compreendido
pelos atores protagonistas, como disse Olga Zubarry numa entrevista publicada
no site Leedor em 2008, que não entendia uma só palavra do que estávamos fazendo.
“Suponho que
todo mundo passa por isso quando vê Invasión
pela primeira vez. Todos devem se perguntar por que atual assim, de uma maneira
tão rara, que falam quase recitando (exceto Lautaro Murúa). É muito difícil que
você goste porque as atuações decorrem de maneira muito antinatural e às vezes
isso espanta muito, mas, porque vimos de um cinema dos estadunidenses então qualquer
atuação distanciada causa certo estranhamento”, compreende Mariano Llinás que,
em 2015, participou como roteirista de El
cielo del Centauro, que seria o último filme dirigido por Hugo Santiago.
Adolfo Bioy Casares
deixou sua impressão do acontecido no dia da estreia em Buenos Aires em seu
livro Borges (2006). “O filme não chega
aos espectadores; eles riem nos momentos trágicos e se aborrecem muito. Nós
vamos como precipitação, mas as pessoas (algum famoso pela impertinência agressiva)
me para parabenizar. Manucho (Mujica
Lainez), tão cáustico; Dalmiro Sáenz, tão crítico: ambos elogiosos e cordiais.
Interrompo Mastronardi: ‘Entre bois não existe chifradas’ (em seguida duvido do
acerto da frase). ‘O tédio do ano’, afirma tristemente um desconhecido”.
Buenos
Aires, 1967. O rapaz de óculos escuros, com cabelo bem arrumado e comprando sorriso
se aproxima da mesa de entrada da Biblioteca Nacional e pede para falar com o
diretor. “Da parte de quem?” – Perguntam. “Hugo Santiago Muchnik”.
Quando foi
recebido pelo diretor, o jovem contou que tinha sido aluno seu na Faculdade de
Filosofia e Letras e que queria produzir um filme sobre uma cidade sitiada que
se chamaria Aquilea e que seria vítima de uma invasão. “Quero que você escreva
o roteiro”, disse Hugo Santiago, muito sério, para o homem que nesse ano encabeçava
a lista para o Prêmio Nobel de Literatura.
Quando Hugo Santiago
foi convencer Borges vinha depois de trabalhar como cineasta na França com
Robert Bresson, de quem foi assistente por sete anos. Então tinha dirigido dois
curtas: Los contrabandistas (1967), com Federico Luppi e Los taitas (1968), com Lito Cruz.
No já mencionado
livro Borges, Bioy Casares recorda o acontecido
no mês de julho de 1967 enquanto trabalhavam juntos no roteiro do filme: “Borges
e Hugo Santiago Muchnik comem em casa. Digo a Muchnik: ‘Tenho para você uma boa
e uma má notícia. A boa é que concluímos o enredo do filme e disso nos
afastamos para que faça o que quiser. A má é que não faremos o roteiro’. Como um
cavalheiro, como um bom perdedor, Muchnik aceita minhas palavras. Diz que essas
dez páginas que escrevemos são o essencial e graças elas poderão levar adiante
o filme. Nesse mesmo sentido, Borges dirá: ‘Você é um cavalheiro. Não vacilou
em nenhum momento. Quando estiver sozinho em seu quarto poderá chorar. Nós lhe entregamos
um roteiro que parece de Nick Carter ou de Nick Winter, mas na verdade fizemos algo
que parece de Henry James: o fervoroso admirador que descobre que os ídolos têm
pés de barro; que os gigantes são jovenzinhos. A gente subestima nossa capacidade
literária”.
Os cultores
e estudiosos de Invasión fizeram
diferentes leituras sobre o filme. Para alguns antecipou a sangrenta ditadura encabeçada
por Videla,Massera e Agosti e a luta armada dos anos 1970; para outros a cena na
tribuna do Boca, os que resistem são presos na Bombonera, antecipam o que logo
aconteceu com a ditadura de Pinochet e a utilização do Estádio Nacional do Chile
como campo de concentração.
Sem dúvidas
o que contribuiu para alimentar essa leitura foi quando em 1978 – em plena ditadura
militar – foram roubadas as oito bobinas do negativo original que eram
guardadas no laboratório Alex. Isso significou que o filme não existia mais. Estava
perdido.
Tempo depois,
Hugo Santiago lembrou a infundada explicação sobre o desaparecimento da fita. “Nos
disseram que roubavam os negativos para tirar os sais, o nitrato de prata e a
prata, mas o fato é que depois da Segunda Guerra Mundial os negativos não são mais
como eram antes, não se pode fazer isso. É uma parvoíce. Outros diziam que era
para fundi-los e fazer pentes. Não: foi uma operação. Vieram e roubaram”.
Então Invasión foi um filme subversivo para a
Ditadura? Essa resistência dos habitantes de Aquilea poderia incitar os jovens
que o vissem a defender-se contra a opressão militar? Justamente um filme de
Borges que naqueles dias elogiava Videla e se reunia com ele para almoçar?
O mesmo Hugo
Santiago contou na apresentação de El cielo
del Centauro – no BAFICI 2015 – que “começaram a aparecer diferentes
leituras e interpretações que foram mudando com os anos. Há pouco se fez uma
reestreia de Invasión em Paris e jovens
apaixonados começaram a dizer que estavam erradas as leituras políticas feitas
nos anos setenta, porque na verdade era um filme sobre... ecologia! Ou sobre o comércio.
Uma das personagens dizia: ‘Por que Herrera não resiste se as pessoas estão
esperando o que vamos vender?’ E outra diz: ‘As pessoas não se dão contas e as
que se dão contas têm medo como eu’. Isso era uma questão de estilo, pensado
junto com Borges e redigido finalmente por ele. Não havia uma mensagem de uma
linha para outra”.
Para Mariano
Llinás “o filme goza de uma lucidez que coloca por terra – como gosto – todas as
tolices políticas de Borges, toda essa zona sinistra, confundida, perdida, de
Borges nos anos 1970 quando elogiou a ditadura ou quando deu a mão a Pinochet. Toda
essa zona conservadora para mim se desfaz por completo quando escreve uma frase
como ‘a cidade é mais que as pessoas’, que é de muita lucidez política e a
maneira como ele pensa Invasión”.
O certo é
que mesmo Hugo Santiago e seu grande diretor de fotografia, Hugo Aronovich, se
encarregaram de reconstruir um negativo original a partir de cópias que rastrearam
em Buenos Aires e puderam projetar o filme numa versão restaurada no BAFICI 2002.
Até então só circulavam algumas cópias em VHS de má qualidade.
Depois, por
uma iniciativa de Mariano Llinás e sua produtora com o apoio do Malba se editou
uma versão em DVD, com extras reunindo entrevistas de Hugo Santiago e imagens
sobre as locações de Invasión junto com
um livro do pesquisador David Oubiña intitulado Invasión: Borges / Bioy Casares / Santiago.
Nota:
* Extensa parte desse texto são notas de Ulises Rodríguez em “50 años de Invasión: a historia detrás de la mítica película de Borges, Bioy y Hugo Santiago”. Leia este texto para mais informações sobre o filme aqui.
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