O fluir dos lentos rios de metal: A Queda de Gondolin, de J.R.R. Tolkien


Por Guilherme Mazzafera




A publicação brasileira do mais recente livro de J.R.R. Tolkien, A Queda de Gondolin, é algo a ser celebrado. Lançado aqui em 30 de agosto de 2018, no mesmo dia que as edições inglesa, americana e alemã, trata-se de algo absolutamente inédito em nosso país, fato atestado pelo amplo interesse dos leitores que lotaram os eventos de lançamento em diversas capitais.

Em experiência inédita para mim, pude ler a edição brasileira imediatamente após a britânica, o que permite uma melhor fruição da tradução bem como evidencia os efeitos de certas escolhas editoriais De cara, é preciso dizer a versão nacional, altamente convidativa em sua bela capa dura, é única: as folhas de guarda, que não costumam apresentar qualquer tipo de informação, são adornadas com belas representações dos brasões das 12 casas de Gondolin. Além disso, o livro é atravessado, do Sumário às Árvores Genealógicas, por pequenos detalhes em forma de linhas, escudos, flechas, barcos, espadas etc., geralmente posicionados nas partes superior e inferior das páginas e intimamente ligados ao conteúdo das mesmas. 

Cabe, no entanto, uma pequena ressalva deste leitor. Se na resenha da biografia de Humphrey Carpenter eu disse que a ausência de fotos, geralmente presentes nas edições inglesas, acaba se mostrando uma vantagem por instigar a concentração absoluta no texto, esses adornos da edição nacional, sem dúvida belos e delicados, parecem um pouco excessivos, deslocando tenuemente o foco da leitura à medida que os olhos percorrem a página sem encontrar ponto de repouso. Nada que efetivamente atrapalhe a leitura, mas sim algo que talvez possa ser repensado para as próximas publicações, que podem, inclusive, conferir mais destaque a tais adornos a partir de um menor número de ocorrências e, quem sabe, um maior espaçamento entre as linhas. Em um livro que já conta com várias gravuras e ilustrações do magistral Alan Lee – que nos brinda aqui com verdadeiras maravilhas como “A Torre do Rei cai” e “Glorfindel e o Balrog” – os adornos empalidecem um pouco.

Ainda no âmbito dos extras e paratextos, o livro inclui um breve glossário de termos arcaicos, raros e obsoletos (que acaba por auxiliar, na verdade, ao leitor brasileiro da edição inglesa); uma interessante lista de nomes com explicações detalhadas que vão além da etimologia; “Notas adicionais”; duas árvores genealógicas (dos Príncipes dos Noldor e da casa de Bëor) e um mapa. A complicada disposição deste último, infelizmente, precisa ser repensada: espraiado em duas páginas no final do volume, o acesso às informações de seu centro acaba por exigir algum contorcionismo do leitor. A função de um mapa desdobrável, como o que acompanha boa parte das publicações inglesas de Tolkien, não é apenas a de permitir a visualização adequada de cada elemento, mas sim a de ler o livro com o mapa aberto, favorecendo o aspecto imersivo da leitura. Tendo em conta a relevância dos mapas na subcriação tolkieniana e seu efeito de verossimilhança, encontrar uma solução prática não muito onerosa para essa questão, embora bastante difícil, é passo importante.

A Queda de Gondolin representa, ainda, a primeira publicação efetivamente nova – e não uma reedição – do “Projeto Tolkien” da Harper, o que nos permite apreciar de fato o trabalho de tradução, feito com considerável rapidez e obtendo resultados altamente expressivos, que comentaremos adiante. É preciso dizer, para o leitor ainda não acostumado com alguns dos mais recentes livros tolkienianos, que se trata de obra compósita, reunindo pela primeira vez as diversas manifestações de um mesmo núcleo temático ou mitologema, escritas em formas e épocas distintas, algo muito semelhante ao que temos em Beren e Lúthien (publicado originalmente em 2017 e lançado em 10 de novembro no Brasil) e bem diferente do que se dá em Os Filhos de Húrin, obra consideravelmente completa, ainda que com alguma ajuda editorial. A Queda de Gondolin soma-se a estes dois livros para compor a tríade dos Grandes Contos da Terra-média, cuja publicação era um desejo tolkieniano e representa, com quase total certeza, a última contribuição de seu mais importante editor, Christopher Tolkien, atualmente no nonagésimo quarto ano de sua vida. Embora a obra seja inédita enquanto volume, os textos que a compõem não o são, estando dispersos pelos volumes da História da Terra-média e, no caso de um deles, em Contos inacabados, de modo que o grande interesse proporcionado pelo livro é a apreciação de uma mesma história refratada pelo tempo, com as inevitáveis mudanças de enredo, forma e, não menos importante, estilo.

No Prefácio, Christopher repassa brevemente os mais de 40 anos dedicados a devassar a imensa quantidade de inéditos deixada pelo pai. Seu objetivo mais amplo era o de estabelecer uma coerência orgânica entre as lendas dos Dias Antigos, gestadas a partir de uma “natureza literária e imaginativa radicalmente diferente”, e a narrativa de O Senhor dos Anéis, o que foi feito inicialmente em 1977 com a publicação de O Silmarillion, obra cujo caráter “moldado” não é escondido pelo editor. O enlace íntimo entre as duas obras era algo por demais caro a Tolkien, como se nota em sua insistente busca por publicá-las de uma vez, posto que partes de “uma única grande Saga das Joias e dos Anéis”. Três anos mais tarde, o editor dá continuidade ao intuito reunindo novos materiais em Contos Inacabados.

Desde então, o esforço exegético de Christopher em relação ao espólio paterno, como ele bem lembra, assumiu dois modos distintos de aproximação. O primeiro, materializado nos 12 volumes da História da Terra-média (1983-1996), direciona o olhar para o conjunto, procurando acompanhar “todo o movimento narrativo conforme ele evoluía através dos anos”, o que não raro implica o leitor em uma leitura bastante pedregosa e fragmentada. Uma vez finalizado este trabalho, Christopher adota nova estratégia, retomando textos já publicados a partir de sua filiação temática, debruçando-se sobre uma mesma narrativa, de sua versão mais antiga à mais recente. Se em Os Filhos de Húrin (2007) havia uma única narrativa, em grande parte inédita em sua extensão e acompanhada de um apêndice que descreve as principais alterações ao longo dos anos, Beren e Lúthien (2017) permite o acesso integral às diversas versões da história, estejam completas ou não – sendo este último estado uma regra tácita em Tolkien. A Queda, que fecha o ciclo, segue esta proposta.  E, como ressalta Christopher, não deixa de ser curioso que a versão mais completa de “um elemento central em sua imaginação [de Tolkien] da Primeira Era” seja justamente a mais antiga. Eis que, frente à contingência (ou desígnio), resta o expressivo benefício da dúvida:

“Gondolin e Nargothrond foram criadas uma vez, e não recriadas. Continuaram a ser fontes e imagens poderosas – ainda mais poderosas, talvez, porque nunca recriadas, e nunca recriadas, talvez, por serem tão poderosas.”

                                                                   *   *   *

Em termos narrativos, A Queda de Gondolin apresenta 6 instâncias – “O Conto Original”, “O Texto Mais Antigo”, “Turlin e os Exilados de Gondolin”, “A História Contada no Esboço da Mitologia”, “A História Contada no Quenta Noldorinwa” e “A Última Versão” – das quais apenas a primeira e a última possuem grau considerável de extensão e autonomia. As outras quatro instâncias, oscilando entre duas e dezesseis páginas, procuram dar conta das principais mudanças que tal mitologema assume ao longo das constantes revisões do Legendário, compilando páginas soltas sobre aspectos específicos ou resumos de grande condensação, como se dá em “A História Contada no Esboço da Mitologia”, que desloca o Tuor do “Conto Original” para um importante ramo genealógico que o torna filho de Huor e primo de Túrin Turambar, protagonista de Os Filhos de Húrin.

O volume foi traduzido por Reinaldo José Lopes em sua primeira empreitada de tradução tolkieniana publicada (descontando, portanto, seu excelente mestrado com a tradução completa de Árvore e folha), e creio ser justo dizer que estamos em ótimas mãos, pois o que lemos em A Queda de Gondolin é bem diferente do que o leitor brasileiro – sobretudo o da tríade principal O Hobbit, O Senhor dos Anéis e O Silmarillion – já experimentou.

Conforme explicitado pelo próprio Conselho de Tradução da editora para este projeto¹, composto por Reinaldo, Ronald Kyrmse e Gabriel Oliva Brum, além do gerente editorial Samuel Coto, o principal problema das traduções anteriores destas três obras, além de algumas omissões textuais, é o aplainamento ostensivo, em termos de estilo, do que no original é rugoso e nuançado. Em outras palavras, o sabor da linguagem de Tolkien está antes na combinação e aproximação de ingredientes diferentes – e as dietas de Homens, Elfos, Hobbits e Anãos não podem ser idênticas – do que na pureza de um belo fettuccine sem molho. Com bem lembra Antonio Candido, “Toda pureza implica um aspecto de desumanização. É o problema permanente da pureza ressecando a vida”.  
                             
Para uma fruição boa do volume, a leitura de O Silmarillion, embora não compulsória, é bastante recomendada. No caso em questão, o leitor encontrará no capítulo 23 um excelente resumo de dez páginas do que em A Queda se desdobra, com espantosa riqueza de detalhes, em mais de 280 páginas. No entanto, há notável esforço por parte de Christopher em apresentar o volume como independente, incluindo no Prólogo algumas páginas do “Esquema da mitologia”, texto de alta condensação datado de 1926 que, com leves intervenções do editor, expõe aos leitores os pontos essenciais do desenvolvimento do Legendário para um melhor entendimento do mosaico narrativo por vir.

Para o fecho do Prólogo, Christopher selecionou um trecho do poema aliterativo A Fuga dos Noldoli, contendo o “discurso violento” proferido por Fëanor. Tolkien não era apenas um estudioso da aliteração como recurso poético, de abundante presença na tradição literária anglo-saxã, mas um entusiasmado praticante, como atestam alguns versos que permeiam O Senhor dos Anéis – como “O Lamento por Théoden” e “A Longa Lista dos Ents”, – e mesmo poemas inteiros, tais como A Balada dos Filhos de Húrin, A Terra sem Nome (The Nameless Land), A Queda de Arthur, entre outros.  Mais do que isso, tal interesse se refrata, muitas vezes, na própria prosa, como no seguinte trecho de “A Última Versão”, citado aqui no original: “Or would you have guessed it to be but the work of the weathers and the waters of the wilderness?”

Sem enfastiar o leitor com explicações técnicas, basta dizer que a composição tais poemas é extremamente complexa, obedecendo a esquemas mais ou menos fixos em que o ritmo do verso é marcado pela recorrência consonantal. Graficamente, o liame sonoro fica ainda mais perceptível pela separação do verso em duas metades, chamadas hemistíquios. Dado o caráter sintético do inglês, a tradução deste tipo de verso é um dos maiores suplícios a que um tradutor de língua neolatina pode ser submetido. Reinaldo, no entanto, purgou boa parte de seus pecados. Embora o cotejo verso a verso evidencie muitas “derrotas” – e a ideia de manter exatamente o mesmo som na tradução é, obviamente, um despropósito –, os achados são verdadeiramente impressionantes, algo que a disposição bilíngue do excerto permite visualizar com clareza. Do conjunto de 68 versos, destaco três exemplarmente vertidos:

the fate of Faërie    hath found its hour
fero é o Fado    que as Fadas vitima

these leapt with laughter    their lord beside
com riso no rosto    arrimos no pai

than gardens of the Gods    gloom-encircled
que jardins dos Deuses    onde adeja o escuro

As polêmicas escolhas tradutológicas ‘Orques’, ‘Gobelins’ e ‘Anãos’, que apareciam de passagem da biografia de Carpenter, entram aqui com força total. Como já indicado na resenha deste livro, por mais estranhas que pareçam em um primeiro contato, trata-se de opções alicerçadas nos critérios definidos pelo próprio autor em seu “Guide to the Names in The Lord of the Rings³”.As críticas constantes a tais escolhas, sempre bem-vindas desde que superado o mero arbítrio do gosto, têm motivado explicações ainda mais detalhadas por parte da editora e do tradutor. Tendo acompanhado tal discussão nos últimos meses e sopesado seus principais argumentos, penso que se o estranhamento causado pelas escolhas é inevitável – e já digo que elas não me agradem por completo –, qualificá-las como incorretas ou equivocadas e, a partir disso, fomentar uma campanha de desmoralização do trabalho editorial como um todo, é gesto ressentido e perigoso. Talvez não sejam as mais acertadas, mas não são incorretas ou equivocadas, como as explicações de editora e tradutor deixam bem claro. Entre vários, um dos argumentos mais falaciosos é o de que a mudança se faz desnecessária por se tratar de termos já assentados não só em traduções anteriores, mas em todo um “universo” próprio (games, cardgames, rpgs). Ora, nesse caso – tomando alguma liberdade metafórica – Tolkien deveria tornar-se refém dos próprios filhos? Por mais que tenha memórias preciosas de minhas primeiras viagens a Mirkwood, então sob a designação de “Floresta das Trevas”, não vejo a hora de o nome ser finalmente traduzido, recuperando sua imanente estranheza e obscuridade.

Tomando um pouco de distância desse ar rarefeito é possível discernir o aspecto mais interessante da tradução: a adoção de um léxico arcaizante de entrada anterior ao século XVIII em nossa língua, assim como alguns hipérbatos, que conferem à narrativa traduzida uma experiência bem próxima do inglês tolkieniano, sobretudo no caso do “Conto Original”. Mesmo para os já familiarizados com o “estilo Silmarillion”, o sabor deste texto é ainda mais arcaico, contaminando inclusive a própria sintaxe, de feição paratática. Vemos aqui um escritor que em parte tateia, aprendendo com seus modelos – William Morris em especial, influência importante no projeto de escrita da História de Kullervo –, e buscando, gradualmente, sua superação.



Dada a fluidez borbulhante que caracteriza o modo de compor de Tolkien, bem como as infindas revisões a que submete cada pedaço da mitologia, a apreciação de seus textos mais antigos traz sempre algumas dificuldades de identificação. É possível, por exemplo, que o leitor se espante com certo Legolas Verdefolha que, a despeito da imortalidade élfica, não é o afamado amigo de Gimli. Além disso, é preciso confrontar todo o senso comum do mundo primário para entender que os Gnomos que dão as caras neste livro não são nem certo tipo de Anãos, nem pacatos Hobbits (lembrando aqui a desastrada tradução portuguesa das aventuras de Bilbo), mas sim uma forma antiga de se referir aos elfos Noldor, estando as formas inicial e final interligadas por um mesmo alicerce semântico, presente no grego gnṓmē (γνώμη). Outra forma antiga dá-se pela ausência do ‘r’ no nome original do primeiro senhor sombrio, elisão que, ouso dizer, torna Melko não menos iracundo, mas um pouco mais íntimo.
                                                 
*   *   *

Ensaiando o gesto temerário de reportar o enredo do entrecho narrativo mais acabado, “O Conto Original”, digamos apenas que se trata da queda de uma cidade minuciosamente construída para resistir ao mal. Bem-sucedida em sua camuflada arquitetura, a ruína, no entanto, penetra surdamente pela traição de um dos seus. A desolação de Gondolin, descrita de forma espetacular por nosso jovem autor, dá-se ao alvorecer seguinte a uma bela e silente noite de festival. A chegada da luz, proveniente não do leste, mas do norte em toda sua fúria ígnea, transforma em tragédia coletiva o que foi efetivamente um equívoco de direção. Anos antes, instado por Ulmo, o deus das águas que se fez sua deidade tutelar, Tuor, homem de grande habilidade e valor, põe-se em marcha rumo ao Reino Oculto de Gondolin com uma importante mensagem que o Rei-élfico Turgon acaba por desprezar. Ainda que escudado pela vontade dos deuses, Turgon rejeita um confronto direto com o mal, corporificado no senhor sombrio Morgoth e suas hostes, selando a perdição da cidade. O conto, enfim, fala de esperança e coragem em meio ao irremissível desastre. Como alimento perpétuo da coragem, a fidelidade ao que há de bom no mundo, capaz de reverter as ondas do horror, trazendo à tona a possibilidade da eucatástrofe, tão cara a Tolkien e que nesta gestação inicial do Legendário manifesta-se, em certo sentido, a partir de uma orientação geral próxima do escatológico, com forte reminiscência do Rägnarok da tradição nórdica, como se vê na “Conclusão”:

“Quando o mundo estiver muito mais velho e quando os Deuses se cansarem, o Morgoth voltará pela Porta e a última batalha de todas acontecerá. Fionwë lutará com Morgoth na planície e Valinor, e o espírito de Túrin estará a lado dele, há de ser Túrin aquele que, cm sua espada negra, matará Morgoth e assim os filhos de Húrin hão de ser vingados.”

O “Conto Original” nos mostra que é preciso acreditar até o fim, não cedendo ao desespero, como se dá no nobre e obtuso gesto do triste Turgon, que se deixa afundar com a cidade que parcimoniosamente forjara. É preciso não optar jamais pelo mal, mesmo quando sua força vertiginosa corrompe a tudo e a todos. É a fidelidade a essa promessa que permite a Tuor, junto de sua esposa, filho e alguns de seu povo, furtarem-se à destruição. E de sua união com Idril Celebrindal, filha do rei, nasce a última esperança de Homens e Elfos, Eärendil, pai do nosso bom e (muito) velho Elrond Meio-Elfo e personagem central para dar bom termo aos convulsionados eventos da Primeira Era que vemos em O Silmarillion.

A proximidade do “Conto Original” com a experiência de Tolkien na Primeira Guerra é por demais evidente para ser ignorada, ainda mais se pensarmos que foi “a primeira história verdadeira desse mundo imaginário”, finalizada em 1916 ou 1917. Mais do que isso, a poderosa e sugestiva imagem de Tolkien dando início ao Livro dos contos perdidos na cama do hospital não deixa de indiciar uma espécie de cura pela escrita, um anseio de dar expressão honesta a uma experiência complexa que, como bem sabemos, recusa a alegoria como ponto de chegada. À destruição da guerra, Tolkien opõe o anseio de narrar, ou, em seus próprios termos, minuciosamente definidos duas décadas depois: subcriar. E, no caso específico deste subcriador, recordemos a observação sobre a descoberta daquela que considera a melhor forma narrativa: “Um gosto real por história de fadas foi despertado pela filologia no limiar da idade adulta, e estimulado pelo resto da vida pela guerra” (“Sobre histórias de fadas”).

Se um “autor não consegue evitar ser afetado por sua própria experiência, mas os modos pelos quais os germes da história usam o solo da experiência são extremamente complexos”, como nos lembra Tolkien no prefácio à segunda edição de O Senhor dos Anéis (1965), é difícil não perceber a visão mecanicista da guerra, em todo o seu som e fúria – o “horror animal” da guerra de trincheiras que, segundo Carpenter, Tolkien jamais pôde esquecer –, na belíssima descrição da batalha travada em Gondolin. É curioso que o viés moderno e desumano da máquina atinja justamente criaturas essencialmente fantásticas como os dragões – fantástico aqui em sentido tolkieniano, ou seja, algo que causa no contemplador um misto de estranheza e admiração –, criaturas das quais nosso autor tinha verdadeira fome, reconhecendo sem peias que “o mundo que continha até mesmo a imaginação de Fàfnir era mais rico e mais belo, não importava o custo do perigo”. 

No “Conto Original”, Meglin, o traidor, reforçando o caráter inexpugnável de Gondolin, sugere a Melko a criação de algo inaudito: “Da imensidão de sua riqueza de metais e de seus poderes de fogo ele o incitou a fabricar feras como serpentes e dragões de força irresistível”. Os anos se passam, mas a agitação e ódio de Melko não arrefecem. Congregando todos os seus feiticeiros e manipulando ferro e chama, produziu “uma hoste de monstros tal como só naquele tempo se viu e não há de ser vista de novo até o Grande Fim.” O jovem Tolkien, é claro, não se contenta com isso e, ato contínuo, escrutina os diferentes produtos dessa operação industrial. Em uma prosa acumulativa que parece mimetizar a fluidez parcimoniosa dos “rios lentos de metal”, Tolkien finaliza com uma imagem bombástica, que deixaria Peter Jackson salivando pela monstruosa conjunção que propõe:

“Alguns eram todos de ferro, tão habilmente encadeados que podiam fluir como rios lentos de metal ou se enrolar em torno e por cima de todos os obstáculos diante deles, e esses, em suas profundezas mais recônditas, eram cheios dos mais vis Orques, armados com cimitarras e lanças; a outros, de bronze e cobre, foram dados corações e espíritos de fogo ardente e incineravam tudo o que havia diante deles com o terror de seu hálito ou pisoteavam o que quer que escapasse do ardor de sua respiração; ainda outros eram criaturas de chama pura que se retorciam como cordas feitas de metal derretido e levavam à ruína qualquer matéria da qual se aproximavam, e o ferro e a pedra derretiam diante deles e tornavam-se como água, e sobre eles cavalgavam os Balrogs às centenas; e esses eram os mais temíveis de todos os monstros que Melko criara contra Gondolin.”

Mas nem só de fogo vive o homem. Se a batalha e efetiva queda de Gondolin comparecem apenas no “Conto Original”, há uma cena tocante em sua simplicidade, cuja permanência em “A Última Versão” merece comentários. Para isso, contemplemos, no texto de 1916-17, o olhar deslumbrado de Tuor diante do mar, índice do forte pendor pictórico da pena de nosso autor:

“Então Tuor viu-se em uma região agreste, nua de árvores e varrida por um vento vindo do lado do pôr do sol, e todas as moitas e todos os arbustos inclinavam-se para o lado da aurora por causa da prevalência daquele vento. E ali por um tempo vagou ele até que chegou aos penhascos negros perto do mar e viu o oceano e suas ondas pela primeira vez, e naquela hora o sol mergulhou para além da borda da Terra, muito ao longe, no mar, e ele ficou de pé no topo do penhasco de braços abertos, e seu coração encheu-se de um anseio de fato grandíssimo. Ora, alguns dizem que ele foi o primeiro dos Homens a alcançar o Mar e olhar para ele e conhecer o desejo que ele traz, mas não sei se o dizem corretamente.”

Em “A Última Versão”, a cena é basicamente a mesma, mas o modo de contá-la, em face de sua efetiva inserção no Legendário, não pode permanecer inalterado:

“Dessa forma Tuor cruzou as fronteiras de Nevrast, onde outrora habitara Turgon e por fim, desprevenido (pois os topos dos penhascos na beira daquela região eram mais altos que as encostas que levavam a eles) chegou de repente à negra borda da Terra-média e divisou o Grande Mar, Belegaer, o Sem Margens. E naquela hora o Sol se pôs além da beirada do mundo, como um fogo poderoso, e Tuor estava de pé, sozinho, sobre o penhasco, de braços abertos, e um grande anseio encheu-lhe o coração. Diz-se que ele foi o primeiro dos Homens a alcançar o Grande Mar e que ninguém exceto os Eldar chegou a sentir mais fundo a saudade que ele traz.”

O aprimoramento parece evidente. Em uma prosa mais convicta, o sabor de lenda é texturizado em “A Última Versão” pela delimitação precisa dos espaços (Nevrast; Terra-média); pela atualização de um fato passado (“onde habitara Turgon”) que conecta Tuor a seu futuro sogro; e pela força evocativa do objeto contemplado (não apenas mar, mas Belegaer, o Sem Margens). Mais do que isso, ajudado pela tradução³, o delineamento da emoção provocada pela mirada marítima de Tuor adquire ressonância particular (de ‘desejo’ passamos a ‘saudade’, enquanto o original mantém ‘longing’), o que mostra como o tradutor, atento ao cerne vivo do texto e ao vernáculo que lhe é próprio, pode efetivamente deixar sua marca sem usurpar as chinelas do autor. Por fim, nota-se a ausência de dúvida na voz narrativa diante do que narra: embora mantenha a indeterminação do “Diz-se”, parte constitutiva na construção de um corpus mitológico que emula culturas orais e coletivas, não se faz mais necessário ponderar que “não sei se o dizem corretamente”, e, se para toda regra há uma exceção, o anteparo comparativo (“exceto os Eldar”) comparece como elemento intimamente engastado no arcabouço narrativo.

Sem conjecturar explicações obtusas, que fatalmente errariam o alvo, fluido mas seguro como os lentos rios de metal, arrisco um mero palpite. Talvez Tolkien possa finalmente afirmar, em 1951, o que Guimarães Rosa, um espírito consideravelmente afinado com o seu, apesar das distâncias, dizia sobre seu ofício: “Eu não escrevo difícil. Eu sei o nome das coisas.”

Notas:
¹ O leitor pode conferir uma excelente entrevista com o Conselho de Tradução neste vídeo.
² As indicações de Tolkien podem ser lidas aqui.
³ Embora não indicado no livro, a “A Última Versão” corresponde a uma leve atualização do texto “De Tuor e sua chegada a Gondolin”, cuja tradução é de Ronald Kyrmse e integra os Contos Inacabados, publicado pela Martins Fontes em 2002.


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