O eleito, de Thomas Mann
Por Pedro Fernandes
É curioso
que O eleito não figure, de imediato,
entre as obras mais importantes de Thomas Mann; curioso, mas compreensível para
quem escreveu Doutor Fausto, Os Buddenbrook, A montanha mágica ou José e seus
irmãos, obras de grande fôlego que juntas atentam contra toda impossibilidade
de realização de um só homem. A monumental obra do escritor alemão
atesta, aliás, o verdadeiro sentido de um termo hoje tão depreciado quanto o
gesto de ser aplaudido de pé depois de um espetáculo – gênio. Há quase duas
décadas fora de catálogo no Brasil, a obra é reapresentada e abre-se, assim, outra
possibilidade, a de redescoberta, nesse caso diferenciada, que é a de compreendê-la
parte importante do amplo universo de um criador exponencial. As razões para tanto
são diversas, mas basta que se diga uma delas: neste romance está toda a
técnica do escritor e é, portanto, uma oportunidade valiosa para os que ainda
estão à beira de percorrer suas maiores invenções.
História,
mito e fantasia atuam neste romance e formam uma unidade cujo resultado é uma narrativa
de matizes e profundidades diversas. Thomas Mann visita o passado medieval alemão
e recria à maneira que só é capaz pela ficção imaginativa a história de um papa
chamado Gregório (possivelmente Gregório V, o homem que subiu ao papado entre
996 e 999 precocemente e que findou envenenado possivelmente pelos partidários do
papado anterior); no posfácio preparado para esta edição de O eleito, Walnice Nogueira Galvão,
assinala que o escritor alemão tomou o enredo “daquele caldo de cultura que foi
a lenta desagregação da herança da Antiguidade e o nascimento das literaturas
em vernáculo”; assim, este romance teria como fonte Hartmann von Aue, poeta do século
XII nas cortes da Suábia e autor de novelas de cavalaria em versos derivadas de
Chrétien de Troyes. “Gregorius ou O bom pecador
(Gregorius oder Der gute Sünder) descende
da Vie de Saint Grégoire francesa, também
do século XII, imensamente popular e popularizada, logo copiada e glosada em inúmeras
línguas, à moda do tempo”. À história e à ficção, o escritor revisita a própria
literatura da época que registrou o que se formou enquanto matéria cultural e imaginário
acerca desta figura, entrevista por pelo menos dupla via: uma reencarnação dos
poderes divinos na terra ou o produto não menos miraculoso do demônio que deu graças
a uma personagem que na sua gênese foi um enjeitado de Deus e dos homens seus fiéis.
Tudo nessa
biografia com traço hagiografia (ou
hagiografia desconstruída) é grandioso. Logo, é com a mesma força que Mann escolhe
a maneira de contá-la e a linguagem para tanto. Apropria-se de toda a tradição
literária medieval – dos escritos de religiosos do cárcere monasterial, da
novela de aventura e cavalaria, da tradição dos textos de reflexão filosófico-cristã.
A primeira apresentada pela própria voz da narrativa, assim como ela própria se
designa e se institui maliciosamente ao longo do texto constituindo um fio
metaliterário que alinhava o enredo do romance; a segunda presente no tom e nas
situações evocadas; e a terceira, alinhavada entre as presenças em primeira
pessoa da voz narrativa, espécie de olho pedagógico que aí se infiltra e tenta
oferecer ao leitor certa moral dos acontecimentos narrados. Soma-se a isso certo
caráter travesso e zombeteiro com que algumas situações são trabalhadas, a começar
pela instância que as rememora: alguém que reafirma continuamente sua relação
respeitosa e circunspecta com o sagrado, mas que não deixa de cometer certos
deslizes – seja o de se admirar com a rica genitália de Víligus, o futuro pai
de Gregório, seja a vida mundana dos homens para a força bélica ou a disputas
de força.
Mas, por que
razão o escritor dedica-se ao ardiloso trabalho de reengendrar o mito e a
história para rejuvenescer a história deste homem? Com riso no canto lábio, o
narrador de O eleito responde que bem
poderia contar qualquer outra história, mas esta é de grande moral edificante e
bem mais humana que as já conhecidas narrativas
de conversão. Qualquer razão poderá
servir de resposta a esta pergunta, incluindo a grandiosidade do biografado. Mas,
é muito provável que tenha sido outro e não especificamente este o motivo principal
de Thomas Mann para a escrita do romance. Atencioso às ambivalências da alma
humana, no quanto essas criaturas padecem no mundo de um destino com o qual elas
não têm muitas vezes possibilidade de escolha e desafiador do ideal cristão
oferecido por certas alas do cristianismo, pareceu-lhe interessante (ao menos
aos nossos olhos) reavivar uma história designada para o fatalismo e com resultado
totalmente oposto – e ainda melhor, completamente invisível aos olhos dos de
seu tempo, como se uma dessas ciladas propositais dos deuses que vez ou outra
dizem que a verdade está embaixo de nossos olhos mas não conseguimos fazer caso
e as situações decorrem do seu bel-prazer.
Gregório, como
vimos chamando, ou Gregorius, como chama o narrador, ou ainda Grigoross e Gregórjos,
Gregor com o é identificado pelas outras figuras em passagens distintas da
narrativa, apesar herdar seu nome de batismo do monge que toma para si as vezes
de preceptor, não deixa, por força indesculpável do destino de carregar consigo
a herança de maldição de seu passado. A etimologia discerne que Gregorius em latim
significa Vigilantus, isto é, vigilante, mesmo radical do nome de seu
pai, Víligus – embora ninguém no tempo do batismo saiba ao certo a história do
bebê ou a família de sua gênese.
É que a
personagem principal desse romance é fruto do incestuoso relacionamento entre os
gêmeos filhos do casal Grimaldo e Baduhenna. Presos numa redoma de narcisos, a culpa
deixada pelo pai de Gregório recai sobre o filho proibido que depois abandonado
se descobrirá um alheado na terra, incapaz de se compreender enquanto totalidade
e impulsionado a reinaugurar o périplo da errância a fim de, simultaneamente,
reconhecer-se enquanto homem entre homens e livrar-se da culpa herdada do erro
dos pais.
A este tema que
nos remete de imediato ao Sófocles de Édipo
rei – o rito da narrativa, aliás, perfaz, por vias diferentes o mesmo caminho
da tragédia grega – soma-se ainda a desconstrução da ideia de desígnio divino
ou maldição diabólica. Tanto que, ao fatalismo do destino – ou daquilo que a
consciência humana designa enquanto tal, já que o filho do narcisismo, da
luxúria e que desafia todas as ordens morais e religiosas, entregue ao destino é,
depois de sobreviver a todas as alcunhas designado como o “o eleito”; ou o escolhido
de Deus, se formos ao sentido do termo que intitula este romance, retirado do
que significa o rito papal. É, logo, para repetirmos a voz da narrativa, sem cairmos
nas suas ardilosas ciladas, qual história seria mais edificante que esta – a da
contradição dos desígnios divinos? Quer dizer, se por um lado o contraditório
refunda o triunfo do sentido para a sentença segundo a qual Deus escreve certo
por linhas tortas, por outro, se coloca em xeque toda a tradição do pecado e
reitera o homem enquanto parte fundamental pelas rédeas de seu destino.
Se olharmos sobretudo
para o segundo périplo que levará Gregório à santidade, logo reconheceremos como
por sob o ideal de libação moral da carne e do espírito se mostra certo desafio
ou mesmo brincadeira do herói para com Deus. Thomas Mann volta à tradição do herói
épico e seu papel de questionador da ordem imposta pelos deuses, mas, agora, para
colocar em cena o homem em questão a Deus, abalando a estrutura da noção de homo religiosus ou da ideia de santificação
do homem pela observação autopunitiva, piedosa e redentora daqueles outros que
antecederam.
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