Iris, Iris, a esplêndida rainha do baile
Por Antonio J. Rodríguez
Retrataram-na
como uma burguesa que levava uma vida intelectual indiferente. Suas maneiras
eram elitizadas e parecia carregar um orgulho disso. Era o tipo de pessoa que
defendia que o bom homem vê as coisas de maneira diferente do homem medíocre.
Que não tinha
vindo ao mundo para ser de muitos amigos, é algo que gostava de deixar claro de
imediato. Houve quem a descreveu como uma Vênus depredadora e cruel – embora como
sempre acontece, também não são escassos testemunhos previsivelmente mais amáveis.
No verão de
1990, Jeffrey Meyers publicou na Paris Review
uma entrevista que revelava a temível
Iris Murdoch (1919-1999) em seu esplendor. Admitiu que havia sido militante no
Partido Comunista e que logo se cansou; soube aí o quão “espantoso” era o
marxismo. Esquivou-se da bipolaridade de seu mundo passando por cima das duas
grandes ideologias dominantes e assim foi parar no Oriente: “O budismo deixa claro
que é possível ter uma religião sem Deus, que a religião é melhor sem Deus”.
De vez em quando deixava escapar o tom que entregava sua relação com o mundo. Quando Meyers lhe perguntou se o escritor devia ser um moralista, ela contestou o que ninguém espera em tempos de boas vibrações e bondade etílica: “Sim. Um romancista precisa expressar valores e precisa ser consciente de que é, de certa maneira, um moralista forçado. A questão é como fazê-lo. Se você não vai fazer direito, melhor que não faça”.
De vez em quando deixava escapar o tom que entregava sua relação com o mundo. Quando Meyers lhe perguntou se o escritor devia ser um moralista, ela contestou o que ninguém espera em tempos de boas vibrações e bondade etílica: “Sim. Um romancista precisa expressar valores e precisa ser consciente de que é, de certa maneira, um moralista forçado. A questão é como fazê-lo. Se você não vai fazer direito, melhor que não faça”.
Na sua
opinião, a arte elevada se vinculava à coragem e à honestidade. “Com independência
de seu estilo, a arte elevada tem as qualidades da dureza, firmeza, realismo, clareza,
objetividade, justiça e verdade. É obra de uma imaginação livre, sem reservas,
que não está corrompida. Enquanto a arte ruim é o trabalho desordenado,
autoindulgente e submisso de uma fantasia escrava”. No momento, dizia ser amiga
dos russos e dos ingleses do século XIX.
Apesar de sua obsessão pela moral, todo o tempo se esforçava em se distanciar da filosofia e da abstração para se concentrar nos domínios da narrativa pura. Falava de si mesma como uma minuciosa roteirista que gostava de planejar tudo e para a qual as histórias constituem uma forma elementar do pensamento humano.
Apesar de sua obsessão pela moral, todo o tempo se esforçava em se distanciar da filosofia e da abstração para se concentrar nos domínios da narrativa pura. Falava de si mesma como uma minuciosa roteirista que gostava de planejar tudo e para a qual as histórias constituem uma forma elementar do pensamento humano.
De inclinações
budistas e liberais, encarnação do indivíduo superior, desdenhosa com os sem
atitude e fiel à narrativa pura, Iris Murdoch tinha o encanto e merecia o
respeito de uma semideusa.
Harold Bloom
lhe dedicou alguns de seus memoráveis elogios envenenados. Quando publicou The Good Apprentice (O bom aprendiz, em tradução livre), o crítico revolveu uma agressão a Sartre que datava de 1953, quando Murdoch lamentou a incapacidade
do francês para escrever um grande romance. “Sua própria incapacidade – disse Bloom
– se estende já ao longo de 22 romances”.
Isso foi em
1986 e então Bloom soube ver que Murdoch estava dizendo as coisas à sua
maneira: “Os tempos de Samuel Beckett e Thomas Pynchon, pós-joyceanos e
pós-faulknerianos, são deixados de lado pela senhora Murdoch”; logo precisou que
“ela é tão fantasiosa como realista” e “como em seus 22 romances, o bom aprendiz da senhora Murdoch possui
uma superfície que constitui um entretenimento brilhante, uma comédia social escrita
por e para os mais entendidos”.
Bloom a incorporou
no seu altar de Gênios, insistiu que
era o tipo de autora que não havia conseguido cristalizar seu talento numa única
obra-prima e concordou com a própria Murdoch quando se propôs a detectar o calcanhar
de Aquiles de sua literatura: “Meu problema é não ser genial. Estou na segunda
fila, não entre os deuses como Jane Austen, Henry James e Tolstói. Minhas
personagens não são tão memoráveis como as deles”.
Em sua
introdução à edição de O mar, o mar
publicada em 2004 em língua espanhola pela Lumen, Álvaro Pombo a apresentou como
uma obra fundamental para qualquer escritor em desenvolvimento e a destacou como
exemplo do “indispensável equilíbrio que é preciso obter em todo grande romance
entre o tom, o estilo, a verbalização e o conteúdo temático e dramático”. Tem razão.
É impossível não se descobrir aplaudindo em segredo o curso das linhas de Iris
e sua exuberância narrativa. Quem se atreve a ser leitor ideal de Iris inexoravelmente
se sentirá como que patinando no gelo numa coreografia olímpica, com a famosa
valsa de Aram Khachaturian ao fundo.
Quer dizer, mais
ou menos.
Pombo também
chamava atenção aí para se colocar um ponto final no desconhecimento sobre
Murdoch entre os leitores, mas é este um feitiço que apesar dos esforços de uns
e de outros nunca deixou de ser desfeito.
Os romances
de Iris poderiam começar como a rapidez de um disparo nos despachos de Whitehall
(Amigos e amantes), ou com a suave
lentidão do mar que rompe contra a costa
britânica ante os olhos de um dramaturgo (O
mar, o mar). Ou ainda ser a luz que ilumina uma revolução sexual a caminho
(A cabeça decepada).
Este último confirma
que a sofisticada prosa de Iris esteve pouco condenada a escorrer por entre os
dedos dos críticos mais severos e limitados, pois a escritora desdobra-se em
simplificações mais nocivas próximas do que foi a literatura do século
anterior.
Há algumas
semanas, o influente crítico James Wood assegurava na New Yorker que alguns romancistas contemporâneos, “claramente não
tradicionais e claramente não experimentais, nem flagrantemente autobiográficos,
tampouco alegremente fantásticos” estavam fazendo tirar faíscas dos fantasmas
das velhas classificações do pós-guerra. O talento desta geração descansava
sobre sua habilidade como “contadores de histórias que parecem ficticiamente
reais, sutilmente vivas”.
Cabe suspeitar
que foi isso mesmo o que não se entendeu na prosa de Iris, nem agora, nem há quantas
décadas, quando ela própria advogava pelas tramas de sempre em tempos pós-joyceanos
e pós-faulknerianos, “tão realista como fantasiosa”.
Tampouco a
natureza nem sua peripécia lhe deram a desenvoltura necessária para passar a
ser figura entre as lendas que servem de inspiração para as novas gerações de
leitores e escritores e quem sabe se é este outro mal responsável por sua
negligente impopularidade. Morreu em idade avançada e durantes anos carregou o
Alzheimer. Isto é, não se matou. Se examinarmos suas fotografias, Plath, Sexton
ou Nïn, sim, mereceram o autêntico toque de Midas. Parker passaria pela Vanity Fair e pela New Yorker e soube da glamourosa vida da Nova York dos anos 20. Ela,
por sua vez, publicou complicados ensaios acadêmicos de filosofia, escolheu uma
amante que qualquer buscador de imagens contempla como um Einstein antipático,
rechonchudo e nada galanteador (Elias Canetti) e logo esteve casada por mais de
quarenta anos. Antes da sua, a efígie de Virginia sempre se prestaria de adorno
em pastas contendo notas universitárias de literatura inglesa. Seu cabelo era curto,
sua presença impositiva e era invasora. Tinha o dom de imobilizar seus interlocutores
disparando raios laser com o olhar, e isso apesar de algum ou outro fotógrafo expor
em situações relaxadas ou melancólicas, seguramente nota-se seu peso. A erosão do
tempo agravou a dureza e circularidade de seu rosto; seu pitoresco nariz
engordou, mas nada disso serviu para que a grande dama dublinense perdesse a
mais ínfima fração de seu encanto e carisma.
Tenho a impressão
de que no voluptuoso baile da literatura do século XX, eu escolheria dançar com
Iris. A decisão não é simples. Estou seguro de que não sou o único.
* Este texto é uma tradução de "Iris, Iris, la espléndida reínha del baile", publicado inicialmente em Jot Down.
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