Günter Grass e seu pior segredo

Por Hermann Tertsch




No Verão de 2006, um grupo muito seleto de críticos literários e amigos de Günter Grass recebia os exemplares de uma pequeníssima tiragem de apresentação de seu novo e muito esperado livro: Beim Häuten der Zwiebel (Nas peles da cebola). “Apenas para uso pessoal. Críticas suspensas até 1º de setembro”, advertia-se na capa. Era, ninguém negou mesmo nos debates mais duros que seguiram durante os meses seguintes, um novo e grande livro do escritor de língua alemã mais famoso, lido e influente desde Thomas Mann. Semelhante ao autor de Os Bruddenbrook, Grass havia conseguido juntar sua celebridade e glória como autor ao seu prestígio como intelectual comprometido e uma aura de autoridade moral que carregava o levava a emitir opiniões com grande repercussão sobre muitas questões políticas, sociais, econômicas e morais.

Várias gerações de alemães foram educadas e cresceram com os livros e as opiniões de Günter Grass, especialmente no que se refere ao passado nacional-socialista da Alemanha. A imensa quebra moral que foi o triunfo do hitlerismo para o povo alemão, que de forma muito majoritária o apoiou primeiro em seu projeto político criminoso e depois nas suas guerras de agressão, fez com que, depois de anos de ocupação e reconstrução, o exercício da memória se convertesse na maior obsessão cultural e política deste país, especialmente na parte ocidental, que logo retornou à democracia e pode ter acesso à liberdade de expressão, de debate e criação. Deste então, ao abrir-se este processo de revisitação ou superação da história (Vergangenheitsbewältigung) nos anos 1960, Grass, já bastante reconhecido por uma carreira literária que em 1999 o levaria aos prêmios Nobel e Príncipe de Astúrias, estava na primeira linha de frente na demanda implacável de recuperação da memória e entre os que queriam fazer esquecer seu passado nazista individual ou coletivo.

Quando neste verão se anunciava o novo livro para o outono, o sucesso editorial estava mais que assegurado. Grass não necessitava de escândalos para promover alguns dos livros com os quais havia ganhado fortunas que ele nunca podia gastar com seus muito simples gostos e hábitos de intelectual esquerdista e ecopacifista. Sua muito sólida vaidade não demanda mais que reconhecimento. O resto é dinheiro. O celebrado autor de O tambor, romance com o qual em 1959 alcançou a glória literária e que depois confirmou com uma grande obra que marcou como nenhuma outra a literatura e o cenário cultural geral da Alemanha do pós-guerra, voltava com um livro já plenamente instalado no gênero autobiográfico. Logo alguns o leram e encontraram algo mais que boa literatura alemã.

Não tardou, muito antes de 1º de setembro – data muito simbólica em que Hitler decide começar uma guerra contra a Polônia precisamente com o pretexto de uma agressão à cidade natal da Grass, Danzig, atualmente Gdansk –, estourava a bomba: o caso Grass. Em 12 de agosto, o diário Frankfurter Allgemeine Zeitung publicava uma entrevista com Grass em que, pela primeira vez, ele reconhecia haver pertencido às Waffen-SS, uma das unidades de elite nazista às ordens de Heinrich Himmler, catalogadas nos processos do Tribunal de Nuremberg como “organização criminosa”. A Divisão Fundsberg – pela qual Grass passou, segundo sua própria revelação, nos últimos meses da guerra – foi responsável por muitas atrocidades precisamente naquela fase final do conflito, quando se dedicou à execução de prisioneiros russos e alemães acusados de fracasso ou deserção.

A revelação de Grass casou estupor no mundo inteiro. Pela natureza e pela forma. O grande pai das letras alemães contemporâneas revelava que havia estado numa das organizações nazistas mais assassinas e que havia ocultado isso durante sessenta anos “porque não sabia de que maneira poderia dizer”. A partir daí, as contradições não tomaram outro rumo se não o da multiplicação, e se um dia atacava a todos os que reprovavam, o que não era difícil de considerar, agora a falta de honestidade e coerência apagava o valor de sua confissão; no dia seguinte estava quase pedindo comiseração pelo terrível erro que havia tido que carregar como seu maior segredo.

Mas Grass não seria ele se agora silenciasse suas opiniões por medo de que destacassem suas incoerências. É verdade que seu pedestal como autoridade moral ficou marcado por rachaduras. E não por ter ocultado a condição ridícula de ter sido um fanático aos quinze ou dezesseis anos numa divisão assassina de um regime, mas por um ato de suprema hipocrisia continuado durante seis décadas e com toda publicidade de um gênio da literatura e Nobel de uma geração.

À direita, Günter Grass em 1944. Aos dezesseis. Foto: Karl-Heinz Kalkbrenner


O drama de Grass neste ano fez correr rios de tinta; gerado depreciações, desqualificações gratuitas, injúrias, rumores, meias-verdades; desatou afãs de vingança e também despertou muitos e muitos genuínos esforços de afrontar com honestidade intelectual com uma verdade maior que a revelada neste livro por Grass. Sobre a responsabilidade individual, o respeito à verdade, a ocultação desta, o direito ao pudor, à memória e suas armadilhas, a hipocrisia e a debilidade humana; isto é, um grande debate sobre o homem.

O que nem sempre foi segredo

Num texto para a imprensa alemã, em 2007, Klaus Wagenbach recorda de alguns apontamentos do verão de 1963 com o título de Monografia de Grass; o material havia sido cedido pelo amigo quando num encontro na casa de férias dos sogros de Günter Grass, em Tesino. Wagenbach fora ainda durante alguns anos seu editor, quando o escritor alemão já era um conhecido e traduzido em muitos idiomas, mais ainda não existia nenhuma biografia sua. O amigo relata que realizou várias entrevistas e acumulou várias anotações a partir dessas conversas, mas o projeto de biografar só chegou até 1953, quando ficou esquecido.
  
Mas, ao ler estas notas, recorda que encontrou algo inesperado: “A maioria da turma se alistou na Marinha (também G.), mas acabou nos tanques. G. acabou num regimento blindado da SS. Primeiro Dresden, depois Tchecoslováquia e as regiões de Luneburgo. Janeiro / fevereiro de 45, ordem para a companhia marchar primeiro sobre Silésia, depois (Grupo Steiner, SS) o primeiro ataque sobre Berlim, março / abril”.

No mesmo texto, Wagenbarch se pergunta porque Grass terá deixado de falar sobre seus três meses nas Waffen-SS a partir de meados dos anos 1960. E coloca ao menos dois motivos:

“1. Aproximadamente até meados dos anos sessenta, Günter Grass podia confiar em qualquer alemão, por proximidade temporal ou geracional, sabia perfeitamente que os nazistas haviam recrutado soldados no fim da guerra ante a iminente derrota. Simples soldados. Dava quase o mesmo se se tratava de ‘auxiliares de artilharia antiaérea’, de ‘Volksturm’, ou de ‘Waffen-SS’; Grass (como muito gente em Danzigue e entre eles seus companheiros de escola) quis no começo se alistar na Marinha. Mas esta havia deixado praticamente de existir nesta época, assim acabou indo para os tanques e conseguiu sobreviver por conta própria.

Depois, Grass já não podia contar estas ideias assumidas (alguns poemas de 1967 mostram como Grass teve que aceitar também isso). Mas depois, apareceram aqueles de duras convicções, que exigiam de seus mais velhos biografias fora de suspeita que eles próprios não podiam ter. Mas, sobretudo, porque nas décadas posteriores ao fim da guerra, outros haviam se encarregado (com êxito) de negar seu próprio passado e reinventá-lo. Inclusive alguns conseguiram mediante uma decisão judicial (coisa não muito difícil a partir de então, uma vez que depois de 1945 nenhum juiz nazista foi suspenso de suas funções) que não os declarassem cúmplices mas apenas simpatizantes, como ocorreu com o que mais tarde foi o presidente do esquadrão, Schleyer. Para este fim, este fez acreditar que tinha três categorias menos a de oficial das SS. Este ‘alto funcionário’ voltava assim a estar bem-resolvido socialmente.

2. Foi só a partir dos anos sessenta quando começou a se difundir na Alemanha a real dimensão do papel criminoso das SS, principalmente através do processo de Auschwitz, iniciado de maneira significativa por um repatriado: o fiscal general de Estado de Frankfurt  Fritz Bauer. Este processo dividiu a Alemanha entre cidadãos que se envergonhavam deles próprios e outros que não.

Grass começou a se envergonhar muito antes e eu posso certificá-lo. Em suas viagens à Polônia chegou a ver um documento terrível, o chamado Informe Stroop. Era algo parecido com um álbum de fotografias com o título de Já não existe bairro judeu em Varsóvia, em que o general Jürgen Stroop relatava o extermínio do gueto de Varsóvia. Este documento foi publicado em 1960 por iniciativa de Günter Grass em sua editora.”


* Este texto é uma tradução de “Grass confiesa su peor secreto”, publicado no jornal El País, aqui

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