Críticas de adultos a jovens não leitores e a visão meritocrática
Por Rafael Kafka
Ilustração: Irene Rinaldi |
Ouço por
demais de colegas de trabalho e adultos em geral que jovens e criança não
gostam de ler. Em meus tempos de criança e adolescente muito se criticava o
hábito do videogame e, mais frequentemente, o da televisão. Hoje em dia, o
debate ou simulacro dele se volta para a crítica mordaz dos aparelhos
eletrônicos: pelo excesso de foco neles, os jovens cada vez leem menos e
escrevem pessimamente, o que se reflete na desenvoltura dos estudos ou falta
dela.
Essas falas
são feitas, quase sempre, por adultos que não leem de forma muito assídua, bem
como por pessoas que passam bastante tempo em aparelhos eletrônicos. Nesta
curiosa projeção, judicativa, percebo que na verdade estamos lendo quando na
verdade não estamos plenamente lendo.
Digo isso
porque sem percebermos ficamos toda hora diante de recursos como smartphones,
tablets e computadores por meio dos quais acessamos diversas informações
escritas de forma verbal ou não. Poucos momentos, há, porém, em que focamos
realmente na leitura de um texto, deixando nosso cérebro se envolver com o
objeto lido e abrindo-se para todas as possibilidades afetivas de tédio ou
prazer.
Lemos as
mensagens das redes sociais e grupos de aplicativos de mensagens, mas pouco
conseguimos focar em textos maiores e mais densos que exigem de nós um grau de
atenção maior. Diante do cansaço cotidiano, o êxtase das imagens e mensagens em
profusão nos acalma e nos deleita e cada vez mais cedo crianças têm acesso aos
smartphones e tablets como forma de distração rápida e tranquila para adultos
que querem relaxar da energia dos infantes, como vejo em rodas familiares em
locais familiares com adultos falando
sobre a última grande bomba de WhatsApp enquanto os pequenos veem vídeos o
jogam controlados em suas cadeiras.
Nessa
estranha projeção, o adulto não se enxerga como não leitor e não entende a
noção de mediação. Os seus atos desde a comunicação mais elementar influenciam
a aquisição simbólica do mundo pela criança. Recordo a mãe que relata à
professora Cecília Meireles que está surpresa com o fato de sua filha de quinze
anos já demonstrar um comportamento ardiloso e dissimulado. Quando mais jovem,
essa mãe dizia a sua filha para dizer a dada pessoa, quando ela viesse a casa
delas, que ela não estava.
Nesse
sentido, Gramsci tem razão ao dizer que os educadores precisam ser educados. A
ignorância a uma série de conceitos faz o adulto não entender que ele é o
mediador do mundo para a criança e esta iniciará suas andanças pelo mundo a
partir dos passos incentivados pelo pai e pela mãe e familiares mais próximos.
Destarte,
uma criança o que se vê rodeado de livros em algum momento pegará esses para
leitura o passará por uma série de atos que incentivarão ou não a perseverança
nesse caminho. Caso haja uma figura leitora ao seu lado, seja no sentido de
contar a ela histórias ou de ler-lhe pequenos contos, tal caminho já se mostra
profundamente pavimentado.
Penso no
jovem que se depara com livros e se decide a ir a caminho da leitura. Penso se
ele possui essa pessoa incentivadora ou alguém que tão somente o contemple
desperdiçando tempo por meio da leitura. Eu indago de minha imaginação se ele
consegue em silêncio, se ele consegue ler paz ou se toda hora alguém o manda
fazer algo mais viril ou produtivo e se isso encontra tantas negativas no
reforço positivo, consegue persistir e a que ponto de seus esforços deve chegar
para tanto.
Caso esse
jovem persista em seu percurso leitor, como terá acesso aos livros. A sua
família possui recursos e se os têm considera válido gastá-los em algo como
livros – objetos vistos como supérfluos para diversos trabalhadores das camadas
mais populares que cresceram sem acesso a eles e se julgam autossuficientes? Há
espaços como salas de leitura e bibliotecas os quais garantem-lhe o contato com
livros e outros leitores, mesmo sem recurso e de modo a dialogar sobre o que
lê, atitude motivadora por si só do ato de leitura?
Quando
adultos reclamam de jovens não leitores eles falam muito de suas próprias
existências como leitores. Mas é uma fala marcada pela negatividade, uma falam
marcada também pela transformação da leitura em algo mais meritocrático: basta
querer ler e se consegue ler, mesmo que nós mesmos ao falarmos isso nos
coloquemos em risco de termos a pergunta “quando você leu pela última vez?
voltada para nós. Ao transformar a leitura em ato meritocrático, os adultos a
tornam algo pueril e jovens, que ainda não trabalham e “só” estudam, devem ler.
Lembro de pedir a uma amiga que lesse um pequeno texto sobre direitos para
debatermos dado tema. Dias depois, perguntei-lhe sobre a leitura e ela, após
afirmar não ter lido, disse que sua vida de mãe e trabalhadora não era livre e
desocupada como a minha para se fazer leitura. Longe de ignorar como o excesso de
trabalho realmente afeta práticas de leitura, mas o interessante nessa fala
como a leitura é associada a uma ideia de tempo ocioso e tal tempo é tido como
algo a ser usado de forma mais produtivo.
Tal amiga,
dias depois, manifestou prazer em ver o seu filho lendo um grande sucesso entre
o público jovem dentro do âmbito da literatura. Essa amiga quer seu filho
estudando, tendo um futuro e sendo homem de bem e sério. Se nas camadas
populares, a leitura é perda de tempo e prazer negado pelas condições materiais,
nas classes com algum poder aquisitivo ela é o primeiro passo para a vida série
e a estabilidade econômica. Quando se julga que o indivíduo atingiu a ambas, a
leitura volta a ser lazer acessório e muitas pessoas com labuta difícil não
enxergam de modo diferente a realidade naturalizando a falta de tempo nesta
para a leitura, desejando ainda assim jovens focados em leitura e depois em
estudo, sem desperdiçar tempo com tantos aparatos tecnológicos.
A visão
meritocrática da leitura a empobrece como ato e não debate a sério os problemas
de acesso ao ato de ler. Afinal, leitura para essa visão é algo simples de
fazer que eu não faço devido a minha vida atribulada, série e sem tempo para
prazeres acessórios que acho importantes, porém, que nossos jovens promissores
tenham em suas vidas.
Comentários