Assombrações, de Domenico Starnone
Por Pedro Fernandes
Laços foi o romance que deu abriu ao
leitor brasileiro as portas para o universo ficcional de Domenico Starnone. Nele,
descobrimos, pelo vigor e precisão da narrativa, uma renovação das
possibilidades vitais desta forma narrativa em perscrutar os elementos constitutivos
de nossas individualidades a partir daquilo que sobra, ou a rusga na aparência que
se constitui numa aspereza entre o eu e o outro e, logo, o desgastar de seus
vínculos. Quer dizer, o romance estabelece com o leitor um pacto em falso, pois, mesmo que os laços se constituam
em elemento principal no desenvolvimento da narração, o que vigora é o que nele
se esconde.
A
importância de ressaltar essa observação se dá por dois motivos: o primeiro é o
conceito de rusga e o segundo é porque em Assombrações,
qual sugere o título – e agora o romancista não trapaceia seu leitor –, Domenico
Starnone mergulha ainda mais profundamente no aparente para encontrar sob a
rusga aquilo que a determina. Sem denunciar os desfechos das situações-motivo
dos dois romances, o que diferencia este daquele é a possibilidade de reconhecimento
do eu sobre a tal pequena sobra e o aplainar da rusga, distanciando do fim
trágico para o qual sempre os indivíduos são arrastados. Tal redenção se manifesta
no segundo romance pelo mesmo tropo da queda do herói.
O enredo de Assombrações é bastante simples. A
objetividade do escritor italiano não se resume ao plano morfossintático,
expande-se ainda para a conformação da narrativa; isso porque se dedica à minúcia,
a uma escrita do reparo, razão aliás fundamental para o exercício de exploração
sobre a profundidade das situações e como os pequenos gestos não são casualidades
e sim forças fundamentais para levar os indivíduos às condições menos esperadas.
Se considerarmos as obras aqui citadas, logo compreenderemos que para Domenico
Starnone o acaso é motivado. Isso difere, portanto, de outras recorrências do tipo
na literatura. Em José Saramago, por exemplo, este é produzido por forças
impossíveis de serem determinadas pelo homem e quanto mais este investiga suas condições
de produção mais enredado permanecerá; comparando com o que se passa nas obras
de Starnone, o acaso também não perde a força do inexplicável para o homem, mas
o narrador, inconscientemente, finda por nos revelar os elementos que o
determinam.
Há uma
situação em Assombrações importante
de sublinhar porque revelará a um só tempo as compreensões que se determinam
neste texto: a compreensão sobre o conceito de rusga, quais forças o determinam
(neste romance) e agora como o acaso se manifesta enquanto produção do próprio
homem a partir de um emaranhado de situações triviais. Até chegarmos a estas
leituras, a situação nos levará ainda a outras duas questões fundamentais aqui:
o sentimento de precariedade do sujeito e o tema do duplo, outra dentre as recorrências
literárias retomadas por Domenico Starnone no romance lido. A situação,
dizíamos, se passa entre o final do segundo capítulo e início do seguinte.
Daniele Mallarico, tomado por um medo descomunal de colocar seu senso de
responsabilidade em crise, tem a rápida sensação de que o neto poderá ter, num
ímpeto de ira pelo avô, se lançado para o vazio pela varanda do quarto, corre
ao local possível da tragédia e, num rompante (não se sabe se produzido pela
própria criança ou pelos ventos do acaso, é uma dúvida interessante que abrirá
para aqueles debates seculares muito comuns em obras-primas da literatura), a porta
se fecha. Preso pelo lado de fora do apartamento, a narrativa reabilita, como
movida por um torvelinho, todo o complexo jogo de intriga entre avô e neto sinalizado
desde a chegada de Daniele à casa da filha, convocado por esta ao que ele
próprio denomina serviços de avô.
A sacada
onde Daniele fica preso é descrita pela primeira vez pelo narrador quando da
sua chegada à casa da filha. “Era um lugar que assustava muito minha mãe, ela
só se aproximava dele com cautela e não queria que meus irmãos mais novos
fossem ali sozinhos. Abri a porta-balcão nova, reluzente. A sacada era anômala,
todas as sacadas daquele lado eram assim, em forma de trapézio: se estreitavam
à medida que avançavam sobre o vazio. Nosso apartamento ficava no sexto e
último andar, e por isso talvez minha mãe, que em geral não sofria de vertigem,
mal suportasse o efeito de contratura, dizia que, ao olhar para baixo, se
sentia mal.” Agora, em oposição aquele menino que “dava um salto até a
extremidade da sacada e começava a pular, fazendo vibrar a plataforma e a grade”
vivencia, tomado pelo mesmo medo, como se por uma vingança do destino, aquele terror
que propiciava à mãe. Há um termo que narrador utiliza para descrever sua
situação, entre o medo, o assombro e certo ódio pelo neto, fundamental de destacar:
“Tronei a ficar de pé, mas não me mexi, não me fiava naquela laje artificialmente
estendida sobre o vazio que vibrava com o tráfego dos automóveis, dos trens. Na
verdade, naquele momento não me fiava em nada, nem no ferro, nem no cimento,
nem em todos os edifícios da cidade. Estava reemergindo o sentimento da precariedade de tudo o que Nápoles me
transmitira desde a adolescência e que aos vinte anos me fizera ir embora”. A
palavra é esta que colocamos em destaque. E ela pode bem servir para uma
síntese sobre Assombrações: este é um
romance sobre sujeitos entregues à precariedade da existência.
Esse espaço
para o vazio, parte e não parte do espaço de abrigo que é a casa, significa não
apenas a condição de Daniele como a daqueles que estão no seu entorno. Nele, a
precariedade que nessa situação se determina a olho nu na narrativa – trata-se,
como ele próprio reconhece, de um homem de setenta e cinco anos de idade que
sempre manteve uma segurança muito racional desde quando decidiu romper com seu
destino para a construção de uma carreira de renome, agora esgotado em todas as
forças, ensopado pela chuva torrencial, cuja única alternativa é se reduzir,
por entre todo o ódio que só aumenta pelo neto, à ridícula condição de infante,
seja em fazer com que Mario consiga de alguma maneira na brincadeira libertá-lo
da situação, seja em fazer subir e descer um balde de plástico com que o neto
envia brinquedos para a criança do primeiro andar, motivo contínuo de discórdia
entre as duas famílias.
Daniele não
está suspenso apenas no vazio físico que o espaço representa, todo ele é
desamparo. Adquire feições complexas do que poderíamos chamar de sujeito encalacrado.
Embora ele não perceba, apesar de ser quem narra tudo o que o levou à essa condição
em que a existência beira à míngua o fim, todas as situações encaminharam-no
para o acaso da prisão. Decorre da
sua obsessão, a compreensão de que o mundo gira e serve-lhe aos seus próprios
interesses; isso ele reconhece, mas não os procedimentos que o levam à condição
de total desamparo: travar a porta de saída do apartamento para que o neto não
fuja para o apartamento dos malquistos vizinhos; deixar a porta da varanda
aberta para fazer circular o pesado ar que nos apartamentos fechados lhe dão
mal-estar; não se preocupar em devolver à base de origem o telefone sem fio, o
que denuncia sua desorganização que instaura outro dos impasses com o neto, extremamente
cuidadoso com a ordem das coisas; esconder no mais alto possível o próprio celular
para que o neto não alcance; e tudo para que Mario não o atrapalhe na
realização de seu trabalho de ilustrar um conto de Henry James.
A precariedade
de Daniele, entretanto, não é manifestada apenas nessa situação. Esta constitui
um limite. A todo tempo ele reflete sobre a condição da velhice e, além disso,
ao assumir o interesse pelo trabalho, enfrenta uma crise de criatividade só ampliada
pelas situações para as quais é arrastado quando precisa deixar Milão por
Nápoles durante uma semana para cuidar do neto enquanto o genro e Betta viajam
a Cagliare para um importante congresso de matemática. Numa das ocasiões,
quando reflete sobre sua falta de interesse ou impossibilidade de criação, já
na sua terra natal, depois de acompanharmos várias descrições que o apresenta um
convalescente, reafirma-se aquilo que se acentua na narrativa: “Pouco a pouco cresceu
em mim uma mania de autodepreciação lúcida. Vi de repente um velho sem
qualidades, quase sem forças, o passo incerto, a vista ofuscada, suores frios
repentinos, um crescente abatimento rompido apenas por uma fraca força de
vontade, entusiasmos falsos, melancolias reais.” Eis sua precariedade, e o curso
de sua ampliação, quando momentos depois reflete que “já não posso ignorar os
sinais do declínio, violentos como esses sons que, sozinhos, arrebentam
vidraças: o telefonema ofensivo do meu contratante; aquele exaurimento da
imaginação do qual eu não conseguia sair; e minha filha, minha única filha, que
me aprisionara sem que eu percebesse no papel do velho avô”.
E, a estas
situações, o julgamento ao acaso de Mario que acusa as ilustrações do avô de serem
escuras; noutras palavras, pouco condizentes com o universo lúdico infantil. E
está pronta a condição em crise do sujeito que se reflete nas demais
personagens do romance de maneira diversa: Betta atravessa um momento importante
na sua carreira e é incompreendida pelo marido, que também espera alcançar,
talvez antes dela, tal momento. E, o próprio Mario, levado, pelo interesse
profundo dos pais em suas próprias individualidades a se tornar um adulto em
miniatura, capaz de se virar sozinho em tudo, pulando, quase em definitivo a condição
infante. Ao citar o elevado interesse dessas personagens com suas próprias existências
situamo-nos no elemento indiciador da rusga, que o leitor já terá compreendido como
aquele pequeno excesso que ao sobrar em um entra em atrito com o outro e ambos
são levados apenas à função de proteladores dos incômodos até beirar a
explosão. Notável é, como Domenico Startone, ao colocar todos na mesma condição
escolhe ilustrar a necessária tomada de consciência sobre a aspereza das
relações subjetivas com Daniele e Mario – o velho e a criança como se quisesse
determinar pela diferença aquilo que em um e no outro se repete. Nada sabemos
sobre a apara das arestas entre Betta e Saverio, mas tendemos a induzir pelo
drama vivido entre as duas personagens principais da narrativa.
É necessário,
portanto, recorrer à leitura do conto de Henry James, o qual atormenta
profundamente Daniele. Trata-se de um dos últimos textos do escritor britânico (consideramos
que o autor dos mais importantes para o realismo em língua inglesa foi, apesar
de nascido nos Estados Unidos, naturalizado no Reino Unido); The jolly corner, traduzido no Brasil como
A bela esquina foi publicado em
meados de 1908. Após mais de três décadas vivendo na Inglaterra, Brydon volta
aos Estados Unidos, sua terra natal. O retorno, para negociar a venda de uma casa
que fica numa esquina bem localizada de Nova York (qual a casa que fora de
Daniele e agora é da filha, numa boa esquina que dá para a Praça Giuseppi
Garibaldi), leva-o a encontrar Alice Staverton, uma velha amiga do passado. Recordando
o convívio entre os dois, Alice o impulsiona a especular como seria a vida dos
dois se Brydon não tivesse ido embora para Londres. A investigação o leva a
enredar-se com os fantasmas do passado, sobretudo depois de perceber, que no imóvel
disposto para venda alguém ali terá vivido sua vida.
Como era de
se esperar, o conto de Henry James estabelece profundas ligações com o
imbróglio narrativo de Assombrações,
afinal, Daniele perfaz quase os mesmos passos do próprio Brydon, que, por sua vez
repetia os próprios passos do escritor britânico, que retorna à terra natal
quatro antes da publicação de The jolly corner,
uma viagem que não o terá impressionado positivamente. Daniele também se enredará
com os fantasmas do passado: da mãe, de sua namorada Ada que o abandona porque
não queria viver com um homem ligado mais a fabulações que à vida hodierna, e,
principalmente o do pai, um viciado no jogo que depreda até à morte o patrimônio
familiar e é a encarnação do homem napolitano, achegado à violência desbragada.
De alguma
maneira, o artista plástico, ao retornar anos depois à casa que foi de sua
infância e juventude e a recuperar todas as assombrações possíveis, encontrará
no neto seu próprio retrato. Embora, o tempo todo note em Mario nada que o
assemelhe com a mãe e por sua vez se pareça consigo, é preciso sublinhar que o
reconhecimento de Daniele se dá pela diferença. O neto encarna tudo aquilo que
o avô não foi e talvez gostasse de ter sido: principalmente dono de uma
destreza descomunal para a vida e marcado pela maturidade criativa, que agora,
é integralmente colocada em risco. Quer dizer, a partir das relações do duplicado
em Henry James e da rusga assumida entre Daniele e Mario é possível compreender
estas duas personagens pela ordem do duplo. Encontramos assim uma leitura para
o complexo duelo em que os dois estão metidos, marcado sempre por uma
competitividade levada muito à sério pelo avô e como Mario assume as feições –
recorrentes ao longo da narrativa – de assombração. O adulto em miniatura é
entrevisto pelo narrador como anão, homúnculo onisciente, e grande homem,
quando chegamos à situação descrita no início deste texto, quando se inverte
totalmente (e simbolicamente mediados por um vidro) as posições ou imagens dos
envolvidos no duelo de duplos; isto é, Daniele rebaixa-se à condição do infante
e Mario eleva-se à condição do adulto. Mas, curiosamente, o infante Daniele é
um duplicado de sua própria precariedade de adulto e o adulto Mario um duplicado
de sua própria altivez de infante.
Para avivar
melhor a ideia de imagem distorcida das duas personagens é fundamental destacar
como o avô, preso do lado de fora do apartamento, passa a ver o neto; o menino
assume aos olhos dele a condição terrífica do puro cruel. Sem acesso à consciência
de Mario, o leitor, enredado por Daniele, é induzido a ver na criança toda uma
estratégia de ordem maligna: o que propositalmente levou um velho em situação
precária a perecer à míngua, à própria sorte, enquanto não é capaz de encontrar
a saída definitiva para a situação de desamparo.
Mas, sem
entrar em questões éticas – perfeitamente possíveis de se discutir, mas noutra
ocasião – não é possível exigir de uma criança de quatro anos a capacidade intelectual
e física do adulto. Toda a agilidade, destreza desse menino é condicionada, não
é algo que se constitua pela ordem de seu tempo. O próprio avô, encantado com a
independência do neto, não deixará de refletir noutra ocasião como as crianças
a partir da geração de sua filha foram educadas pelo condicionamento ao ponto
de apagar ou negar a própria linguagem do seu tempo em detrimento de uma
linguagem tão bem depurada que parece adquirida diretamente dos padrões livrescos.
Ao ver Mario
como assombração o que Daniele projeta é sua própria imagem; ele próprio é a
assombração, não a criança. Revelação que na narrativa se apresenta pelo
desenho de qualidade inquestionável produzido pelo menino: a criatura horrenda
para a qual o artista cujo eu foi secundarizado por uma possibilidade do eu não consegue reproduzir e já reparada pela criança
quando compara um desenho do avô com uma fotografia dele num antigo álbum de
família. Ao revelar o próprio monstro que Daniele não vê em si, Mario é que o
rompe em definitivo com uma conclusão que ganha forma na desistência do avô
pelo projeto de ilustrar The jolly corner
e que o tempo todo o assusta – destaque-se a ocasião quando o funcionário de um
bar admirado pelo talento de Daniele diz que no passado ele também desenhava “depois
me passou” e como isso amplia os fantasmas de não conseguir ir adiante com o
projeto das ilustrações para o conto de Henry James. É que, possivelmente, o
leitor se dê conta aqui da diferença entre o gênio e o genioso. Mario é o que consegue
captar perfeitamente o seu redor – nota-se sua compreensão sobre o sentido das cores,
da luminosidade, da ordem de tudo; tem consigo o sopro do gênio. Enquanto o avô
é apenas o genioso, aquele que buscou na arte uma maneira de se refugiar de suas
elucubrações e do imaginado destino trágico; tem consigo apenas o sopro da técnica.
O que este romance também tematiza, portanto, é o tormento da expressão.
A maneira como
Domenico Starnone organiza toda a ossatura da narrativa arrebata o leitor
profundamente para aquelas fronteiras menos imagináveis. Aliás, o trabalho
ardiloso do escritor italiano em prender atrair toda atenção do leitor para a situação-limite,
tornando-a em algo que impressiona é sua marca – ao menos neste romance e em Laços. Estamos diante um criador em
pleno domínio das ferramentas de narrar, condição sempre rara na literatura.
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